Justiça Tributária

Patentes inconstitucionalidades da Medida Provisória nº 1.202/2023

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22 de janeiro de 2024, 8h00

Em 29 de dezembro de 2023, o presidente da República, no uso da atribuição que lhe confere o artigo 62 da Constituição, editou a Medida Provisória nº 1.202/2023, que, mediante o seu artigo 4º, acrescentou à Lei nº 9.430/2023 o inciso X ao §3º do artigo 74 e o artigo 74-A. A citada MP normatizou outros dois temas relevantes, os quais, contudo, não serão objeto de análise neste momento.

Referidas inovações, conforme restará demonstrado de forma mais detalhada no presente artigo, teve como objetivo precípuo limitar a compensação do crédito superior a dez milhões de reais decorrente de decisão judicial transitada em julgado por meio de ato do Ministro de Estado da Fazenda.

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O ato em questão, por sua vez, é a Portaria Normativa do Ministério da Fazenda nº 14/2024, em vigor desde 05 de janeiro de 2024, que, em brevíssima síntese, instituiu faixas quantitativas e mensais para a utilização dos créditos a serem observadas pelo credor.

Na prática, o valor mensal a ser compensado pelos contribuintes passou a ser limitado ao valor do crédito atualizado até a data da primeira declaração de compensação dividido pela quantidade de meses. A título de exemplo, na primeira faixa, os créditos cujo valor total seja de 10MM-99MM deverão ser compensados no prazo mínimo de 12 meses (artigo 1º, §1º, I da Portaria nº 14/2024).

Entende-se que a iniciativa do presidente da República em limitar a compensação de tais créditos se deve, sobretudo, ao alegado impacto nos cofres públicos em decorrência do Tema nº 69/STF. Com a exclusão do ICMS da base do PIS e da Cofins, fato é que diversos contribuintes passaram a ocupar a posição de credor da União em razão dos indébitos a serem repetidos — seja pela via administrativa, mediante o instituto da compensação, seja pela via judicial, por meio do regime de precatórios, a depender da preferência do credor.

Uma vez demonstrado o escopo da Medida Provisória e da respectiva Portaria, cabe traçar algumas das diversas consequências desfavoráveis que acabaram sendo causadas em razão das inovações em comento.

De início, não há dúvidas de que a nova previsão intensifica a questão do acúmulo de créditos — cenário desvantajoso este que desde sempre é enfrentado por diversos contribuintes e que, agora, com a referida alteração, poderá se agravar.

À vista disso, surge para a sociedade uma nova problemática, qual seja: o aumento do preço final dos serviços e mercadorias. Isso porque, uma vez que os contribuintes não conseguem dar vazão aos seus créditos em razão de uma limitação legal — e não necessariamente por excesso de crédito —, passam a estar obrigados a desembolsar novos recursos, perdendo fluxo de caixa, para quitar suas obrigações tributárias, sendo certo que tal impacto financeiro acabará sendo repassado ao consumidor final.

Para além das consequências práticas citadas, tem-se que a medida provisória se resume à instrumento de exceção, tendo em vista ser uma medida conferida ao presidente da República apenas em caso de relevância e urgência.

Ocorre que, no caso da MP nº 1.202/23, há indícios de que o presidente poderia ter desconsiderado tais requisitos, servindo-se da sua condição, ao se valer de instrumento de exceção para modificar o funcionamento do instituto da compensação, o qual era sólido e vigente há décadas.

Referida conclusão decorre, sobretudo, da exposição de motivos da MP, a qual teve o quesito da “urgência” fundado em fatos que aconteceram há anos, isto é, o julgamento do Tema nº 69/STF e o consequente aumento das compensações em 2019. Fato é que, entre a definição de que o ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins e a data de publicação da MP, não há dúvidas de que houve tempo suficiente para que a matéria fosse regularmente submetida ao rito ordinário do processo legislativo.

No que tange às ofensas ao ordenamento vigente perpetradas pela Medida Provisória nº 1.202/2023, pode-se destacar, de início, a desconsideração à reserva de lei, tendo em vista que, nos termos do artigo 146, III, b c/c art. 62, §1º, III da CF, a matéria em questão deveria ser delimitada por lei complementar.

O artigo 4º da MP, ao alterar a Lei nº 9.430/1996, que dispõe sobre a legislação tributária federal e o processo administrativo, adentra, inquestionavelmente, em matéria de direito processual — a qual não pode ser objeto de medida provisória, por força da aplicação analógica do artigo 62, §1º, I, b da Constituição.

Viola, ainda, o princípio do não confisco (artigo 150, IV, da CF), tendo em vista que, como adiantado alhures, não só faz com que os contribuintes sejam obrigados a desembolsar novos recursos para satisfazer suas obrigações tributárias — obrigações estas que poderiam ser quitadas pela via da compensação —, mas também induz o perdimento de créditos em razão da dificuldade de aproveitá-los dentro do prazo de cinco anos. Referido cenário, por vezes, obriga os credores a recorrerem ao regime de precatórios, postergando por incontáveis anos o aproveitamento dos seus créditos.

Para acalmar os contribuintes, cumpre ressaltar que o STF deverá analisar a possível inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 1.202/2023 em breve, tendo em vista a distribuição da ADI nº 7587, em 9 de janeiro de 2024, pelo partido Novo.

Nas razões aduzidas pelo partido estão, dentre outras, a violação à propriedade (artigo 5º, inc. XXII, da CF) na medida que a MP acaba por obstar um dos aspectos da propriedade, qual seja: o exercício de disposição do credor sobre bem intangível (isto é, o crédito).

De igual modo, a ADI aponta também a patente violação à coisa julgada (artio 5º, inciso XXXVI, da CF), tendo em vista que, ao limitar a fruição do crédito decorrente da decisão judicial transitada em julgado, acaba, em última instância, colocando o referido crédito em posição de desigualdade com o crédito administrativo – este último que, por ter origem diversa do primeiro, não está acobertado pela MP e, portanto, poderá ser aproveitado em sua integralidade, sem limitações.

Nesse sentido, a relevante reflexão que a ADI nos traz é: como pode o crédito certo, disponível e amparado pelo trânsito em julgado não poder ser usufruído em toda a sua potencialidade, sendo que, do outro lado, o crédito administrativo, que sequer goza da força e estabilidade da coisa julgada, pode ser integralmente aproveitado? E mais: em que momento o credor perdeu a titularidade e discricionaridade sobre o seu próprio crédito para o devedor que, através da criação de uma “contabilidade criativa”, limita e molda a sua própria dívida?

Neste momento, a ADI nº 7587 se encontra conclusa ao relator,  ministro Cristiano Zanin, sendo certo que seguiremos acompanhando de perto todos os desdobramentos deste novo entrave que se inicia.

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