Opinião

Medidas executivas atípicas coercitivas e os direitos fundamentais dos devedores

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  • é advogada no Granito Boneli e Andery Advogados Associados bacharela em Direito pela PUC-Campinas e pós-graduanda em Direito Processual Civil pela PUC-Campinas.

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  • é advogado no Granito Boneli e Andery Advogados Associados bacharel em direito pela PUC-Campinas e pós-graduando em Direito Processual Civil pela PUC-Campinas.

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18 de janeiro de 2024, 11h14

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade das medidas atípicas, previstas na redação do inciso IV do artigo 139 do Código de Processo Civil de 2015, as quais emergiram como alternativa às tradicionais formas de execução de dívidas, buscando conferir maior efetividade às decisões judiciais diante das manobras legais adotadas pelos devedores em adiar ou evitar o cumprimento de suas obrigações com a proteção de seu patrimônio.

A inclusão deste dispositivo no sistema jurídico representou uma resposta legislativa à necessidade de modernizar o processo de execução, capacitando os magistrados a explorarem abordagens não convencionais quando as medidas tradicionais se mostrassem insuficientes, podendo ser compreendidas como aquelas que decorrem da prerrogativa do poder-dever dado pelo legislador ao julgador.

Embora a redação que concedeu ao juiz a autoridade de adotar “todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial” esteja presente no ordenamento jurídico brasileiro desde a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, foi com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.941, que o tema voltou às discussões jurídicas de maneira exacerbada em meados de fevereiro de 2023.

A corte reconheceu a importância dessas medidas na busca pela efetividade das decisões judiciais e na garantia de que os devedores cumpram suas obrigações perante a justiça. No entanto, o tribunal também enfatizou que a aplicação das medidas atípicas deve ser criteriosa e analisada caso a caso, levando em consideração os direitos fundamentais do devedor, buscando a satisfação da execução pelos meios menos gravosos a este.

Os ministros do STF ressaltaram, no julgamento da ADI, a necessidade de equilibrar a efetividade do processo de execução com a proteção dos direitos individuais, como a dignidade da pessoa humana e o direito de ir e vir, de modo que a sua aplicação deve ser feita com a devida ponderação dos direitos fundamentais dos envolvidos.

Após aproximadamente oito anos da entrada em vigor do Código de Processo Civil 2015, verifica-se que as medidas atípicas coercitivas têm sido aplicadas em uma variedade de situações, incluindo a apreensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e do passaporte do devedor, a suspensão do direito de dirigir, a proibição de participação em concursos públicos e licitações, entre outras. Tais medidas visam compelir o devedor a cumprir suas obrigações, independentemente das formas tradicionais de execução.

Em detrimento disso, surgiu à tona questionamentos quanto a aplicação de tais medidas, as quais devem ser pautadas pela proporcionalidade e razoabilidade, observando o princípio da menor onerosidade da execução ao devedor e, consequentemente, a proibição do excesso desta.

Há de se considerar que, segundo o último senso de 2023 do CNJ “Justiça em Números 2023 [1]“, no Brasil há aproximadamente 42 milhões de processos de execução pendentes de julgamento, ou seja, na aplicação desenfreada das medidas atípicas coercitivas certamente milhares — senão milhões — de devedores serão severamente prejudicados em esfera que supera a expropriação de bens.

Sendo assim, verifica-se a necessidade em identificar e resguardar os direitos fundamentais dispostos na Constituição, tais como a dignidade da pessoa humana, o direito de ir e vir e o devido processo legal, a fim de assegurar ao devedor a não violação a estes.

Em que pese os tribunais de justiça e as cortes superiores ressaltem a importância nas decisões judiciais quanto ao resguardo de tais princípios, especialmente no que diz respeito a dignidade da pessoa humana, observa-se que as medidas atípicas podem caracterizar, em determinados casos, uma afronta a estes.

Isso porque, ao possibilitar a restrição do direito básico da liberdade de locomoção do devedor, o direito de ir e vir é restringindo e, consequentemente, a dignidade da pessoa humana é ferida diante da restrição da liberdade.

No que diz respeito à apreensão da CNH ou do passaporte, estas medidas podem ter repercussões sociais significativas dado que limita severamente e, por vezes, de forma desproporcional, a liberdade de locomoção do devedor, violando não só direito de ir e vir, mas também o da dignidade da pessoa.

Somado a isso, a apreensão da CNH ocasiona impactos severos sobre o devedor, restringindo-o fisicamente a dirigir, afetando, em alguns casos, a capacidade de cumprir as obrigações familiares e acessar serviços básicos essenciais, como acesso à saúde. Além disso, pode ocorrer também a restrição profissional, uma vez que diversos cidadãos dependem da CNH para executarem as atividades laborais, podendo resultar em perda do emprego e, consequentemente, agravar a precariedade da situação financeira.

Logo, além dos prejuízos indicados, tais medidas podem ser vistas como vexatórias, expondo o devedor a constrangimentos e situações humilhantes, afetando também o seu bem-estar.

Assim, as medidas atípicas deverão ser aplicadas de forma excepcional e subsidiária às ferramentas dispostas em lei, assegurando o equilíbrio do ordenamento jurídico quanto a proteção dos direitos fundamentais e o bem-estar social do devedor, devendo, para tanto, ser a aplicação das medidas atípicas avaliada em cada caso.

Isso porque, a aplicação indiscriminada e inadequada dessas ferramentas pode conduzir a situações em que a busca pela eficácia das decisões judiciais resulta na violação dos direitos do devedor.

À vista disso, visando assegurar a efetividade das decisões e o resguardo dos direitos fundamentais do devedor, deve o magistrado estimular a realização de medidas para solução do litígio, como a mediação e a conciliação, preservando a dignidade das partes envolvidas, permitindo que estas tenham controle sobre o resultado do litígio.

Dessa forma, embora tenha o Supremo Tribunal Federal reconhecido sobre a validade das medidas atípicas coercitivas, nota-se a essencialidade quanto à ponderação dos princípios constitucionais, de modo a não violar os direitos fundamentais garantidos e protegidos constitucionalmente. Em suma, a busca pelas alternativas menos onerosas e agressivas ao devedor deve ser priorizada visando a equilibrar os interesses das partes de maneira justa, assegurando que a justiça seja alcançada sem o comprometimento da dignidade da pessoa humana.


[1] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/08/justica-em-numeros-2023.pdf

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