Opinião

Flip de ações: hora da virada?

Autores

  • Felipe Saraiva

    é advogado bacharel em direito (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) mestre em direito (LLM) pela University of California Berkeley – School of Law e associado do PAG Law PLLC.

  • Victor Hugo Brito

    é sócio das áreas de societário e M&A do BBL Advogados com experiência em assessoramento de empresas e fundos de investimento em operações de M&A venture capital e private equity graduado em Direito pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e LLM em Direito Civil Empresarial pela PUC-MG especialista em compliance pela PUC-RJ membro do Comitê de Empreendedorismo e Startups na Associação Nacional de Advogados do Direito Digital (Anadd) ex-membro do Corporate M&A Group da Mackrell International do Reino Unido professor convidado de instituições como Ibmec e Faculdade Cers.

14 de janeiro de 2024, 11h26

O acesso ao capital privado no geral, e ao venture capital em específico, tornou-se mais caro e difícil nos últimos anos — o que já vem sido repetido exaustivamente — sem sinais de maior disponibilidade de recursos em um futuro próximo. Empreendedores brasileiros e latino-americanos não devem, nesse cenário, restringir sua busca por investimentos ao capital nacional diante de discrepante disponibilidade em comparação ao mercado internacional, principalmente no que tange à maior sofisticação e disponibilidade de recursos do mercado norte-americano quanto a investimentos em venture capital no ecossistema das empresas de tecnologia.

Apesar de certos fundos de venture capital aceitarem aportar seus investimentos em entidades estrangeiras latino-americanas, usualmente na forma de Safes (Simple Agreement for Future Equity), a maioria dos investidores mais sofisticados prefere investir em estruturas alinhadas com a prática internacional por meio de uma holding em Delaware, Flórida, ou mesmo nas Ilhas Cayman, mantendo-se afastados das inseguranças jurídicas, econômicas e burocráticas de mercados considerados emergentes. No limite, ao decidir pela realização de rodadas de investimentos, a empresa (podendo ser sociedades ou companhias) deverá ter em mente onde estão seus investidores chave, e esses irão ditar onde sua estrutura societária deverá ser formada, com base em práticas internas, situação fiscal ou estratégia. O empreendedor segue o capital.

Tornando-se a captação de investimentos internacionais uma realidade iminente para a empresa, em especial ao nos referirmos a startups e empresas emergentes, um “flip” de ações é a resposta que se torna cada vez mais padrão entre empreendedores em expansão. Termo que pode ser traduzido do inglês como “virar” ou “girar”, no âmbito societário, o flip funciona por meio da transferência de todo o quadro societário e da governança corporativa da empresa nacional a uma holding estrangeira a ser constituída, a qual passa, então, a deter a integralidade da primeira. Um flip para Delaware será seguido como nosso exemplo padrão nesse texto, sendo também o mais utilizado nesse ecossistema — quando poderíamos também nos referir a um flip para a Flórida, Massachusetts, ou Cayman, por exemplo, sendo a já mencionada necessidade de escolha da jurisdição da companhia a primeira decisão a ser tomada pelos empreendedores visando à captação de recursos estrangeiros.

Pedimos licença para descrever o processo do flip em forma de narrativa, quando um gráfico seria mais conveniente. Os sócios da companhia nacional, envolvendo tanto os fundadores quanto outros investidores iniciais (geralmente anjos), devem transferir a totalidade de suas ações (ou quotas, mas dê-nos a liberdade de nos referirmos a ambas de maneira intercambiável) àquela holding estrangeira, recebendo então ações dessa holding como consideração pelas nacionais, e tornando-se os únicos sócios diretos de tal holding. A exata estrutura desta transferência, contudo, poderá ser feita por caminhos plurais, seja por meio de contribuição de capital na companhia estrangeira, seja por meio de permuta de ativos, e dependerá das conclusões de uma análise jurídica e tributária dos instrumentos a serem utilizados.

A comum escolha que investidores e empreendedores fazem por Delaware como jurisdição da companhia decorre de uma lista de fatores: sua legislação societária robusta e flexível, principalmente no que tange à reestruturações societárias, a experiência da Court of Chancery, tribunal responsável pela resolução de conflitos no estado e produtor de considerável jurisprudência em matéria societária, garantindo maior segurança jurídica às transações; a celeridade e simplicidade no processo de arquivamento de atos societários; a confidencialidade conferida aos sócios das companhias ali constituídas; além da óbvia preferência dos investidores por manterem-se dentro das práticas de mercado, o qual tem em Delaware a sua escolha padrão — e sabemos o quanto o mercado aprecia padrões.

Uma segunda questão a ser enfrentada por empreendedores, além da jurisdição onde ser formada a sua entidade, seria o tipo dessa entidade a ser formada. Frisamos a importância da consulta a um advogado internacional e a um consultor tributário no momento de realizar tal escolha, a qual, de modo geral, envolve escolher entre a incorporação de uma C-Corp (com terminação “Inc.”, mais proximamente equivalente às sociedades anônimas) ou a formação de uma Limited Liability Company (“LLC”, talvez mais próxima a uma sociedade limitada — mas ainda uma comparação falha).

Convencionalmente, uma companhia que aspira a obter investimentos de venture capital nos Estados Unidos, que seja operante e que tenha seus acionistas nos EUA escolheria por estruturar-se como uma C-Corp. Fundos de investimentos dos EUA e investidores institucionais geralmente resistem a investir em uma LLC, visando a evitar a renda “pass-through”. No entanto, antes de incorporar uma C-Corp como empresa controladora, um empreendedor brasileiro ou latino-americano deve ter em mente que muitas empresas de tecnologia latino-americanas não estarão inicialmente envolvidas em negócios nos Estados Unidos, não terão uma porcentagem significativa de acionistas norte-americanos e provavelmente não receberão financiamento inicial de venture capital nesse país. Esses empreendedores enfrentarão: dupla tributação nos EUA — ou seja, os ganhos globais estarão sujeitos ao imposto de renda de pessoa jurídica dos Estados Unidos e ao imposto de retenção sobre dividendos dos Estados Unidos; em muitos casos, a tributação nos EUA, caso os acionistas desejem realocar tal holding para fora dos Estados Unidos, e o pagamento de impostos nos EUA sobre a renda de suas subsidiárias não americanas.

Nesse sentido, a formação de uma LLC é costumeiramente a melhor opção inicial para os founders, que permite, inclusive, a futura conversão em uma C-Corp, caso haja uma mudança de circunstâncias. O contrário, contudo, no caso de uma conversão de uma C-Corp para uma LLC, seria tratado como uma venda de fato da companhia e, portanto, tributável nos EUA — o que pode gerar certos contratempos ao empreendedor incorrendo custos em dólares americanos.

Após a constituição da holding estrangeira e transferência do quadro acionário da companhia nacional, devemos seguir o processo para tornar tal holding sócia direta da sociedade operacional brasileira. Dentre as etapas necessárias, destacamos a inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) e a realização do registro do investimento estrangeiro (RDE-IED) perante o Banco Central do Brasil para garantir a rastreabilidade e a transparência das operações financeiras internacionais, além de fornecer informações relevantes ao governo nacional sobre o ingresso de capital estrangeiro. Em seguida, devem ser elaborados os atos societários da companhia nacional, necessários para a aprovação de tal reestruturação, como minutas de reunião do conselho de administração ou assembleia geral, dependendo da governança corporativa da sociedade, de modo a autorizar e formalizar o ingresso da holding estrangeira como sócia detentora de 100% de sua participação societária. Deve-se, ainda, realizar o registro das operações cambiais e a execução de contratos de câmbio simbólico relacionados à conferência internacional de quotas ou ações.

A estrutura de flip, como previamente descrita, muitas vezes é referida no mercado como a Delaware “tostada” (ou “torrada”), em comparação com o flip que tem por fim a estruturação de um “Cayman/Delaware Sandwich”. Nesse modelo, incluímos uma holding acima da Delaware LLC, em uma terceira jurisdição, geralmente nas Ilhas Cayman. Teremos, aqui, três camadas de sociedades:

  • Entidade nas Ilhas Cayman detida por todos os sócios originais, onde os empreendedores (i.e. a companhia) receberiam os investimentos internacionais;
  • LLC em Delaware detida pela entidade das Ilhas Cayman, sem qualquer operação ou empregados; e
  • Companhia nacional, detida pela entidade de Delaware.

A utilização do Cayman/Delaware Sandwich será escolhida basicamente por motivos de planejamento tributário — como muito deve surpreender você, leitor —, mantendo a LLC de Delaware como uma entidade “pass through” para fins de tributos nos Estados Unidos, e visará a um nicho de investidores atraídos pela ausência de corporate tax e de tributação à renda auferida fora das Ilhas Cayman. Como no Brasil, as Ilhas Cayman também não cobram impostos sobre a distribuição de dividendos — ressaltando que é fundamental a análise de possíveis obrigações tributárias impostas ao acionista nacional no Brasil.

O flip de ações pode proporcionar uma série de vantagens para empresas nacionais, como segurança jurídica, acesso à captação de investimentos internacionais, maior agilidade em operações societárias e eficiência tributária. No entanto, como de praxe, tal operação deve ser estudada e aprofundada com base nas situações individuais de cada empreendedor, com auxílio de advogados brasileiros e internacionais, para que, de fato, tal estratégia desencadeie o esperado crescimento e sucesso em um cenário global.

Autores

  • é advogado, bacharel em direito (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), mestre em direito (LLM) pela University of California, Berkeley – School of Law e associado do PAG Law PLLC.

  • é sócio das áreas de societário e M&A, com experiência em assessoramento de empresas e fundos de investimento em operações de M&A, venture capital e private equity, graduado em Direito pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e LLM em Direito Civil Empresarial pela PUC-MG, especialista em compliance pela PUC-RJ, membro do Comitê de Empreendedorismo e Startups na Associação Nacional de Advogados do Direito Digital (Anadd), ex-membro do Corporate M&A Group da Mackrell International, do Reino Unido, professor convidado de instituições como Ibmec e Faculdade Cers.

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