Opinião

Pena privada também pode ser acumulada com indenização por dano patrimonial

Autor

  • Tiago Bitencourt De David

    é juiz federal substituto da 3ª Região mestre em Direito (PUC-RS) especialista em Direito Processual Civil (UniRitter) especialista em Contratos e Responsabilidade Civil (Escola Verbo Jurídico) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM Toledo/Espanha).

10 de janeiro de 2024, 7h12

Foi instaurada pelo Senado uma comissão de juristas para a atualização do Código Civil, e essa iniciativa é louvável. Melhor ainda, isso está sendo feito inclusive com a realização de debates públicos, estabelecendo diálogo efetivo com a comunidade jurídica.

O texto do Código Civil não emerge do século 21, mas deita raízes ainda no final da década de 1960. As disposições da codificação não precisaram enfrentar, assim, pouco mais de duas décadas, mas sua concepção efetiva data de cerca de meio século.

Não se trata, portanto, de um código que envelheceu mal, mas de uma codificação que veio ao mundo jurídico já obsoleta em alguns aspectos.

Note-se, ainda, que a necessária filtragem constitucional realizada no exercício da jurisdição constitucional não se constitui em panaceia, pois a verificação da validade da norma infraconstitucional é necessária, mas não substitui o necessário debate político e a realização de leis em conformidade com o seu tempo.

Felizmente, agora, o Senado busca entregar ao país um Código Civil em sintonia com a sociedade contemporânea.

Todavia, apesar de ser atitude elogiável, a proposição das atualizações não pode ser infensa às críticas, oportunas sempre que direcionadas sinceramente ao aperfeiçoamento da novel redação que é ofertada pela insigne subcomissão de juristas.

Nessa linha, escreve-se este singelo artigo para criticar construtivamente o texto sugerido pela subcomissão temática ocupada da parte de obrigações e responsabilidade civil que diz respeito à proposta de consagração legal da aplicação de pena privada conjuntamente com a indenização pelo dano extrapatrimonial (artigo 951, §§ 2º a 5º) [1].

Rememore-se que, atualmente, o Código Civil prevê apenas a indenização na medida da extensão do dano (artigo 944, caput) que poderá ser, excepcionalmente, reduzida, nos casos de “excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano” (artigo 944, parágrafo único). Não há, na redação atual do Código Civil, a previsão de multa civil a ser aplicada cumulativamente à indenização do dano [2].

Agora, por meio da devida atualização legislativa, a impossibilidade de aplicação de verdadeira pena privada está próxima de ser superada.

Contudo, a solução proposta pode ser aperfeiçoada.

Isso porque não se justifica a aplicação de pena privada quando da responsabilização civil ficar acoplada à indenização pelo dano extrapatrimonial.

A fixação de sanção deve ser um acréscimo distinto da compensação do dano e de modo algum faz sentido que se aplique somente no caso de haver dano extrapatrimonial.

De certa forma, infelizmente, a redação proposta, apesar de distinguir (corretamente) entre o valor da indenização do dano extrapatrimonial e a pena privada aplicável, ainda repete o cacoete mental encontrado na doutrina e na jurisprudência de que a reprimenda se correlacionaria intrinsecamente com a compensação pelo dano imaterial.

A ligação entre dano moral e punição decorre muito mais de uma época na qual se tinha incerteza sobre o caráter autônomo de uma indenização por dano imaterial do que de uma real natureza híbrida da indenização [3]. Hoje, sem dúvida alguma, o dano não-patrimonial é indenizável per se, o que torna altamente duvidosa a utilidade e a correção do recurso ao caráter punitivo que pode assumir o direito privado.

Por sua vez, se a sanção pecuniária se justifica, seja por punir, seja por prevenir novos danos, não há razão para que, somente quando houver dano extrapatrimonial, seja aplicada a reprimenda.

Assim, a pena privada é aplicável cumulativamente com dano material ou imaterial. [4] [5] Poderia até mesmo ser prevista sanção civil ante a absoluta ausência de dano, no caso de prática de um ilícito que gere especial necessidade de reação do direito (note-se que a consagração da tutela inibitória e a afirmação de uma função preventiva da responsabilidade civil autorizam que se trilhe esse caminho).

Nem se diga, ainda, que a consagração legislativa da responsabilidade pelo lucro derivado da atuação ilícita previsto no proposto segundo parágrafo do artigo 947 [6] justificaria a opção pela sanção civil restar circunscrita ao caso de ocorrência de dano extrapatrimonial. Nesse sentido, Paula Meira Lourenço [7] acerta ao aduzir que a retirada do patrimônio do quanto existente, por força de lucro ilicitamente obtido, tem pressuposto diverso dos punitive damages, pois estes independem da obtenção de vantagem patrimonial.

Não se concorda, por outro lado, com o reconhecimento de uma feição punitiva ao dever de entregar o lucro ilicitamente obtido [8], pois, salvo melhor juízo, trata-se apenas de consequência financeira do dano gerado a quem teve seu direito violado. O lucro de intervenção deve ser entregue ao lesado, não enquanto punição, mas por força do caráter ilícito do enriquecimento que adveio de uma lesão a direito de outrem.

Por isso, ao invés de atrelar-se a sanção à compensação pelo dano extrapatrimonial — como sugerido no novo artigo 951 —, a previsão legal da reprimenda ficaria melhor posicionada enquanto parágrafo do atual 944 [9] ou, ainda, enquanto artigo autônomo em face daquelas que regem a indenização.

Isso posto, cumpre lembrar que a punição, diferentemente do que ocorre com as compensações, reparações e restituições, depende de uma razão muito mais intensa para ser justificada, uma vez que deriva de juízo repressivo — e não da reposição do status quo ante. A repreensão, assim, emerge de uma aferição circunstanciada da ação, do resultado e da motivação — cognição dispensável no âmbito tradicional do direito privado.

Ainda que aplicável a pena privada mesmo em situações nas quais a responsabilidade civil reveste-se de natureza objetiva, os pressupostos justificadores da aplicação da reprimenda são outros, fundando-se, não na compensação do dano e na internalização do custo econômico pelo ofensor, mas sim na reprovação jurídica de determinado comportamento [10].

Nessa linha, a proposta de alteração do Código Civil bem aponta a necessidade de utilização de critérios distintos ao punir-se e prevenir-se a falta civil. Elege como fatores a especial gravidade das circunstâncias do caso, a gravidade da culpa, a indiferença do ofensor em relação à vítima (especialmente sua segurança), a irreversibilidade dos danos causados e a multiplicidade de consequências danosas.

A sugestão da subcomissão aponta a aplicação de pena privada até o quádruplo do valor da indenização pelo dano (extrapatrimonial) causado, sendo critérios para a dosimetria da reprimenda a condição econômica do ofensor, a reiteração da conduta ou atividade danosa, bem como a existência de outra condenação ou multa administrativa pelo mesmo fato.

Por fim, em proposta salutar, mas cuja redação enseja fundadas dúvidas, está a preocupação com a destinação do valor da pena privada, autorizando o legislador que o julgador destine parte do montante para “fundos públicos destinados à proteção de interesses difusos ou estabelecimento idôneo de benemerência”. O problema é definir em que hipóteses e qual a proporção que será destinada à vítima e quanto irá para outros destinatários. Nesse tipo de questão, o tratamento legislativo lacônico, ao invés de contribuir para a constante atualização do sistema jurídico, acaba por gerar insegurança jurídica e pode exacerbar ainda mais os conflitos.


[1] Art. 951. Na quantificação do dano extrapatrimonial, observar-se-á:

I – Em sua valoração, a natureza do bem jurídico violado e os parâmetros de valores de indenização adotados por tribunais em casos semelhantes;

II – Em sua extensão, as peculiaridades do caso, podendo a indenização ser fixada além ou aquém do valor relativo ao inciso I.

  • 1º. No caso do inciso II, serão observados os seguintes parâmetros:
  1. a) Nível de afetação em projetos de vida relativos ao trabalho, lazer, âmbito familiar e/ou social, afazeres cotidianos e domésticos, dentre outros;
  2. b) Grau de reversibilidade;
  3. c) Grau de ofensa ao bem jurídico;
  • 2º. Ao estabelecer a indenização por danos extrapatrimoniais, o juiz poderá acrescer uma sanção pecuniária, em caráter dissuasório, pedagógico e punitivo, nos casos de especial gravidade, em situação de culpa grave ou quando o ofensor manifestar indiferença perante a situação da vítima, sua segurança, tendo-se também em vista a irreversibilidade e a multiplicidade das consequências danosas.
  • 3. O acréscimo a que se refere o § 2. será proporcional à gravidade da falta e poderá ser agravado até o quádruplo dos danos fixados com base nos critérios do caput e § 1º , considerando-se a condição econômica do ofensor e a reiteração da conduta ou atividade danosa, a ser demonstrada nos autos do processo.
  • 4º – Na fixação do montante a que se refere o § 3º, o juiz levará em consideração eventual condenação anterior do ofensor pelo mesmo fato, ou imposição definitiva de multas administrativas pela mesma conduta.
  • 5º Respeitadas as exigências processuais e o devido processo legal, o juiz poderá reverter parte do acréscimo em favor de fundos públicos destinados à proteção de interesses difusos ou estabelecimento idôneo de benemerência.

[2] Isso não significa, porém, que a codificação não tenha consagrado penas privadas quando da normatização de outras espécies de relações jurídicas, tal como ocorre, por exemplo, no art. 1.992 (Art.1.992. O herdeiro que sonegar bens da herança, não os descrevendo no inventário quando estejam em seu poder, ou, com o seu conhecimento, no de outrem, ou que os omitir na colação, a que os deva levar, ou que deixar de restituí-los, perderá o direito que sobre eles lhe cabia.).

[3] No mesmo sentido: MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana: Estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 351.

[4] Em que pese isso ser notado por poucos, deve-se apontar que não passou despercebido por: ROSENVALD, Nelson. As funções da Reponsabilidade Civil: a reparação e a pena civil. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 208-215. Ainda é digna de nota a crítica feita por: VENTURI, Thaís G. Pascoaloto. A doutrina dos punitive damages e a fixação dos danos morais no sistema de justiça brasileiro. Migalhas, 23.11.2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/336745/a-doutrina-dos-punitive-damages-e-a-fixacao-dos-danos-morais-no-sistema-de-justica-brasileiro. Acesso em: 18 jan. 2021. Ainda, no mesmo sentido, inclusive apontando que o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados n° 6.960/02 vinculava a punição à indenização do dano extrapatrimonial, ao passo que o Projeto de Lei do Senado n° 413/2007, acertadamente, previa a possibilidade de aplicação de pena privada também nos casos de ocorrência de dano patrimonial: VAZ, Caroline.  Funções da Responsabilidade Civil: da reparação à punição e dissuasão. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 81.

[5] Note-se que o artigo 16 do Código de Defesa do Consumidor – que foi vetado – previa a aplicação de uma multa civil e não a vinculava à ocorrência de dano extrapatrimonial, mencionado tendo em vista a concretização de um “dano” sem especificar seu caráter material ou imaterial.

[6] Texto sugerido pela subcomissão: Art. 947. A indenização mede-se pela extensão do dano. §1º Se houver excessiva desproporção entre a conduta praticada pelo agente e a extensão do dano dela decorrente, segundo os ditames da boa-fé, ou se a indenização prevista neste artigo privar do necessário o ofensor ou as pessoas que dele dependem, poderá o juiz reduzir equitativamente a indenização, inclusive em casos de responsabilidade objetiva. §2º Em alternativa à reparação de danos patrimoniais, a critério do lesado, a indenização compreenderá uma soma razoável correspondente à violação de um direito ou, quando necessário, a remoção dos lucros ou vantagens auferidas pelo lesante em conexão com a prática do ilícito.

[7] LOURENÇO, Paula Meira. A função punitiva da responsabilidade civil. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 425.

[8] LOURENÇO, Paula Meira. A função punitiva da responsabilidade civil. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 400-406.

[9] Essa inclusive era o lugar no qual se propunha a consagração legal da pena privada no Projeto 6.960/02 originado na Câmara dos Deputados. Todavia, essa proposta consagrava a aplicação da multa civil apenas nos casos de dano extrapatrimonial, postura com a qual não se concorda.

[10] GALLO, Paolo. Pene private e responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1996, p. 63, 64 e 185.

Autores

  • é juiz federal substituto da 3ª Região, mestre em Direito (PUCRS), especialista em Direito Processual Civil (UniRitter) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo/Espanha).

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