Prescrição virtual, a impossibilidade de antecipação de um fim certo
6 de janeiro de 2024, 13h49
Qual a finalidade do processo penal?
Objetivamente, dentre as possíveis respostas, Tucci [1] diz: a um, tutelar a liberdade do acusado, e a dois, é garantia da sociedade.
Precipuamente, nenhum cidadão será segregado de sua liberdade sem o devido processo penal, grosso modo, para que haja condenação deve haver, necessariamente, procedimento penal. Contudo, afirmar que processo é apenas procedimento seria equivalente a desprezar aspectos secundários inerentes ao feito.
Lembra-nos Jacinto Coutinho [2] que processo não é só procedimento, mas também relação jurídica. Daí dizer que o caso penal abarca vários elementos, os quais incluem: a forma como a sociedade percebe a quem responde ao processo penal, e, com mais razão explica Liebman [3] “la relazione existente tra i suoi atti e quella che si stabilisce tra i suoi soggetti”.
A garantia constitucional, no entanto, não protege o indivíduo de estar no processo, digo de sofrer, e aqui, também, traduzido no sentido físico, de sofrer as mazelas inerentes por quem está na ação penal.
Quem responde a procedimento criminal tem contra si a aflição da marca, da submissão, ainda que incerta ou projetada, da condenação. Daí dizer que as consequências são dúplices, uma vez que o fato de ser apontado como possível culpado já impõe, antes de ter-se tolhida a liberdade, a letra escarlate do “réu em processo criminal”.
Alguns aspectos culturais, dada sua importância, precisam ser ressalvados. Primeiro, aos olhos dos cidadãos comuns, o olhar etiquetado de culpado é anterior ao fim do processo, e quase de maneira absoluta, o inverso não é verdadeiro, inocente até que se prove o contrário. Expressões do senso comum tais quais como: “Ninguém é processado à toa”, e “se tem processo contra ele é porque alguma coisa fez”, são ditos populares que introjetam no sujeito o sentimento de “réu marcado”.
Para além das críticas criminológicas, a necessidade de condicionantes para nascimento do processo penal faz-se necessária porque elas vedam, em um primeiro momento, juízos de pessoalidade e eventual vingança privada do agente público. Dito de outro modo, são estabelecidas premissas para ação, as quais, impõem regras para juízo de admissibilidade do processo.
Ultrapassada as barreiras dos pressupostos processuais e das condições, busca-se com os atos processuais, ou seja, tem-se como finalidade no processo a reconstrução de fato do passado, que pode ou não ser crime, através da instrução probatória. Em outras palavras “o processo penal serve para verificar se uma pessoa deve ser punida”, sendo a jurisdição o veículo necessário a essa verificação [4].
O problema é que o juiz ao selecionar uma das hipóteses no conflito judicial (defesa vs. acusação), ainda que no intuito de melhor servir a jurisdição, pode resultar na implicação de forte traço inquisitivo. Em outras palavras, o juiz que se permite ir além do alegado pelas partes, ainda que tenha boas razões pode, ou não, entrar em seara que não deveria ser sua. Ainda assim, o que deve-se ter em mente são os fundamentos que o levam a isso: “el interés del Estado en implementar sus políticas y programas puede posponer los intereses de las partes en resolver su disputa” [5]. Por isso, a postura de mover o timão além das direções pré-ordenadas pelas partes está vinculada ao modo ideológico com que o Estado lida com o processo, algo como mais ou menos adequado a políticas criminais valoradas na Constituição [6].
Ainda que não criado com esse intuito, ou melhor, bem lembrado por Dworkin [7], não se trata em buscar identificar a intenção do legislador, na busca de efetiva igualdade democrática, institutos como o da absolvição sumária (artigo 397 e incisos, do Código de Processo Penal), tentam abreviar que acusados respondam a custoso processo criminal, quando perceptíveis, de plano, situação que gera(ria) a não culpa deste.
Situação objeto do presente texto é a pretensão de tratar a perda do interesse de agir do titular constitucional da ação penal, após iniciada a instrução processual, como se condição da ação fosse, para evitar processo entendido como desnecessário. Especificamente, quando vislumbrada aplicação de prescrição projetada.
Vênia ao magistério de Silveira, para quem “o interesse de agir não é condição (de admissibilidade ou de procedência) da demanda com a qual o Ministério Público promove a ação penal’, e tendo o processo penal como meio idôneo — portanto, necessário — para a aplicação da pena, o interesse de agir não se presta a limitar a admissibilidade da ação penal” [8], entendemos que a falta de interesse de agir do Órgão Acusador pode ser identificada durante o trâmite processual, e nesses casos, ser entendida condição de prosseguibilidade da ação penal.
Farta doutrina, e maciça jurisprudência pátria são dominantes em afirmar que o Ministério Público não pode desistir da ação penal. Há forte corrente dizendo, inclusive, que o Código de Processo Penal define que a ação penal é de prosseguimento obrigatória.
Não nos olvidamos da Súmula 438 do STJ, a qual veda a aplicação desta espécie prescricional.
O problema pragmático é: se o agente Ministerial não mais tiver interesse processual, aqui traduzido em inócua continuidade de processo, poder-se-ia tratar tal processo de maneira diferente? Digo, suponhamos que o Ministério Público não tenha interesse em prosseguir com ação penal, pois visível a configuração da prescrição virtual, qual seria a melhor solução para o réu?
Nestes casos, estaria o Estado/juiz autorizado a decidir pelo não prosseguimento do processo?
Nos rememora Divan, que o magistrado, enquanto agente do sistema jurídico-penal, nos é apontado, por ser “o último dos atores jurídico-processuais que pode exercer alguma função de ‘controle’ do próprio exercício interventor” [9], ou seja, o único ator processual que pode antecipar o instituto da prescrição projetada é aquele que tem interesse e legitimidade para objetivar o fim do processo.
O princípio da mínima ofensividade, mormente, por seu caráter proibitivo de incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico, pode ser traduzido, e projetado no processo penal, pois, como dito acima, responder a procedimento no qual o resultado será inócuo tem um único produto, fazer com que o acusado sofra suas mazelas desnecessariamente.
Pode-se observar a maneira que o Estado procede nas práticas punitivas, as quais, inseridas em um modelo processual penal próprio de cada um, traduzem sua maneira de ser destes [10]. Os atos estatais advêm do princípio fundador e para ele caminham, no sentido fático, na busca de implementação de seus mandamentos significante [11]. Com maior razão, compreender a conceituação de princípio como espécie de força gravitacional [12] com a qual uma série de temas são relacionados ao princípio unificador, no sentido de destinar o processo para determinada finalidade [13].
A debatida prescrição projetada é, em verdade, caso de falta de interesse de agir, vênia do posicionamento contrário, porque: em primeiro lugar, vislumbrada qual a pena a ser aplicada ao caso, sopesados os dados do processo; em seguida, constata a real possibilidade de vermos reconhecida a prescrição retroativa ao final, tem-se desnecessária a ação penal. Rogério Greco, esclarece, neste sentido, que: “Qual seria a utilidade da ação penal que movimentaria toda a complexa e burocrática máquina judiciária, quando, de antemão, já se tem conhecimento de que ao final da instrução processual, quando o julgador fosse aplicar a pena, a quantidade seria suficiente para que fosse declarada a extinção da punibilidade com base na prescrição da pretensão punitiva estatal? Seria fazer com que todos os envolvidos no processo penal trabalhassem em vão.” [14]
Por conseguinte, chamamos novamente atenção ao problema: é razoável dar prosseguimento a processo penal, no qual se sabe que não surtirá efeitos práticos? A antecipação da extinção da punibilidade ante a prescrição projetada atende melhor aos princípios e políticas criminais do Estado Brasileiro?
Tentamos responder aos questionamentos anteriores dizemos não haver razoabilidade em se continuar processo prescrito virtualmente por afronta aos princípios de política criminal inseridos na Carta Magna.
Fazendo remissão a doutrina de Marco Antônio para quem “a natureza inócua de sentença eivada de prescrição, ainda que projetada: em poucas palavras, seria uma antecipação mental de uma ‘provável’, pena e, portanto, uma antecipação mental de uma ‘provável’ prescrição retroativa”. [15]
Por fim, ressalto não se tratar de caso exclusivamente doutrinário, ainda que pouco usual, existente decisões da 1ª Vara Criminal Especializada do Júri da Comarca de Passo Fundo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, nas quais, decidiu-se:
“Frisa-se que a decisão que reconhecer a prescrição retroativa de forma como antecipada (prescrição projetada) não gerará qualquer consequência negativa ao acusado, sendo afastados todos os efeitos principais, secundários, penais e extrapenais de eventual condenação: o acusado volta a ser tecnicamente primário e sem qualquer registro contra seus antecedentes criminais. (…) Uma vez presentes as hipóteses acima, mostra-se desnecessária a ação penal, não mais subsistindo o interesse de agir do Estado.”
(AÇÃO PENAL – PROCEDIMENTO ORDINÁRIO Nº 5005194-41.2018.8.21.0021/RS)
No mesmo sentido:
“em função da perda do interesse de agir do Órgão Acusador – condição para o exercício da ação penal em sua prosseguibilidade – declaro extinto processo, por falta de condição para seu exercício.”
(AÇÃO PENAL – PROCEDIMENTO ORDINÁRIO Nº 5003672 – 76.2018.8.21.0021/RS).
Evitar vedações oriundas de posição sumulada, como a que proíbe aplicação da prescrição virtual, e impedimentos de desistência da ação penal pelo órgão acusador podem ser solucionadas, pragmaticamente, com a extinção da ação por falta de condição da ação, que aqui é traduzida como ausência superveniente de condição de prosseguibilidade para seu exercício.
Entendemos interesse de agir pode ser traduzido, no processo penal pátrio, como verificação da necessidade da tutela jurisdicional em evitar um injusto.
Ou seja, não há razão lógica para prosseguir com processo penal no qual o Ministério Público não tem interesse em seu prosseguimento. Com mais razão, quando este explicita tal posição ante a impossibilidade de punir a réu em processo prescrito, ainda que virtualmente. Por isso, assim tratado o interesse, no caso, sua falta, como condição de prosseguibilidade da ação penal.
Ausente o interesse superveniente do MP, inexistente necessidade de prosseguir com processo penal que somente impõe mazelas desnecessárias ao réu.
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[1] TUCCI, Rogério Lauria. Persecução Penal, Prisão e Liberdade, São Paulo: Saraiva, 1980.
[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Crítica à teoria geral do direito processual penal. Coordenador Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
[3] LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di diritto processuale civile: principi. Quinta Edizione. Milano: Giuffrè Editore, 1992, p. 35.
[4] CORDERO, Franco. Procedura penale. Milão: Giuffrè, 1966, p. 8, tradução livre.
[5] DAMASKA, Mirjan R. Las caras de la justicia y el poder del Estado: análisis comparado del proceso legal. Tradução de Andrea Morales Vidal. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1986, p. 193.
[6] GIACOMOLLI, José Nereu. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
[7] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio; tradução Luís Carlos Borges. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[8] SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes. As condições da ação no direito processual penal: sobre a inadequação das condições da ação processual civil ao juízo de admissibilidade da acusação. 1ª ed. Florianópolis, SC: Empório do Direito, 2016, p. 167.
[9] DIVAN, Gabriel Antionolfi. Processo Penal e política criminal: uma reconfiguração da justa causa para ação penal. Porto Alegre, RS: Elegantia Juris, 2015, p. 391
[10] IHERING, Rudolph Von. A luta pelo Direito. Tradução de Dominique Makins. São Paulo: Hunter Books, 2012, p. 91.
[11] BOURDIEU, Pierre. La distinction. Paris: Minuit, 1980.
[12] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio; tradução Luís Carlos Borges. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[13] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Crítica à teoria geral do direito processual penal. Coordenador Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
[14] GRECO, Rogério. Código penal comentado. 8.ed. Niterói: Editora Impetus, 2014, p. 281.
[15] SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes. As condições da ação no direito processual penal: sobre a inadequação das condições da ação processual civil ao juízo de admissibilidade da acusação. 1ª ed. Florianópolis, SC: Empório do Direito, 2016, p. 157.
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