Opinião

Constitucionalismo, os direitos fundamentais e as novas tecnologias da informação

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28 de fevereiro de 2024, 12h18

O rápido avanço tecnológico supera a capacidade do direito (e das leis) de lidar com novos e complexos desafios. Não há nada de novo nessa afirmação, mas ela é um bom ponto de partida para que possamos compreender os impactos jurídicos (e sociais) de ferramentas tecnológicas contemporâneas como as redes sociais digitais e inteligência artificial.

Ao discutirmos esses avanços no âmbito constitucional, abrimos um espaço para que seja avaliada a necessidade de “atualizações constitucionais” — nas leis infraconstitucionais, na interpretação do direito e no próprio texto constitucional — capazes de efetivamente refletir as realidades contemporâneas e garantir a relevância e eficácia dos direitos humanos. Não é sem motivo que hoje muito se fala em constitucionalismo digital, regulamentação das Big Techs e até mesmo limites éticos no desenvolvimento da inteligência artificial (temas que serão melhor abordados nos próximos textos).

É sempre importante destacar: novas tecnologias mudam o rumo da sociedade, da mesma forma que mudam os hábitos, costumes e, consequentemente as leis e a própria Constituição. Com o advento da imprensa, rádio, televisão e, posteriormente, a internet, houve uma alteração drástica quanto à experiência humana e até mesmo a recriação de uma sensação de proximidade. Nos dizeres de Marshall McLuhan [1] (ao final da década de 1960), a televisão desempenhou um papel crucial para essa alteração. Ele acreditava que a transmissão de informações e entretenimento através desse meio de comunicação estava rompendo as barreiras geográficas e culturais, permitindo que pessoas de diferentes partes do mundo experimentassem os mesmos eventos de forma simultânea.

O mesmo autor foi responsável por cunhar o termo “aldeia global”, utilizado para ilustrar um espaço imaginário no qual o uso dessas novas tecnologias de informação e comunicação fosse capaz de efetivamente cumprir tal papel de encurtar as distâncias (sejam elas geográficas ou até mesmo culturais). A aldeia acarretaria em uma transformação inédita na vida dos indivíduos dentro de uma verdadeira comunidade globalizada [2].

Importa dizer que esse novo modelo de vida também seria caracterizado pelo enfraquecimento do poder exercido pelos Estados nacionais já que, em algum momento, não mais seria possível falar na viabilidade das tradicionais estruturas cívicas e estatais.

Não obstante as conjecturas do autor canadense, foi a internet a ferramenta que verdadeiramente ampliou esses efeitos, tornando-se um catalisador fundamental para a transformação da sociedade como hoje conhecemos. O advento da internet redefiniu (e continua a redefinir) a maneira como as pessoas interagem, “consomem informações” e participam ativamente da cultura global.

Violação de direitos
A rede mundial de computadores, ao permitir que os usuários participem ativamente da construção global da cultura, também pode vir a permitir alguns atos nocivos e até violadores de direitos.

Por exemplo, o termo “fake news” começou a se popularizar no final da década de 2010, muito embora a expressão tenha sido utilizada de forma mais ampla (e até mais frequente) a partir do ano de 2016 (um ano que englobou eventos significativos como as eleições presidenciais nos Estados Unidos e o referendo sobre o Brexit no Reino Unido).  Nos últimos anos, tornou-se possível falar em rede de desinformação tendo em vista a facilidade de compartilhamento e disseminação de conteúdo nas redes sociais e plataformas digitais. Tudo isso criou um ambiente propício para a propagação de informações enganosas, muitas vezes visando manipular opiniões, distorcer fatos ou promover agendas específicas.

Não obstante, conforme temos visto a todo momento, esse tipo de informação (ou desinformação) contribui para uma já existente polarização. Na perspectiva de Körner [3], a desinformação digital é capaz de erodir a confiança cidadã nas instituições democráticas, bem como destruir a frágil coesão social, dificultando a construção de um consenso (ou bom senso) necessário em uma sociedade democrática saudável.

Essa disseminação constante de informações distorcidas tem o condão de minar a capacidade dos cidadãos de tomarem decisões coerentes e informadas. Tal fenômeno compromete diretamente uma série de direitos fundamentais, como o direito à informação, um direito necessário (em verdade, fundamental) para a participação cidadã no processo democrático.

A desinformação é, portanto, um grande desafio que reacende discussões quanto à promoção e desenvolvimento de direitos constitucionalmente previstos nos ambientes virtuais. A discussão até aí já é complexa o suficiente, mas ainda nem mencionamos de forma aprofundada as ferramentas ligadas ao que comumente é chamado de inteligências artificiais, que surgiram como uma incrível ferramenta, mas com um poder destrutivo impressionante em relação a direitos e possivelmente da própria democracia.

Consequência do uso das novas tecnologias
Ainda assim, não é mais possível pensar em Constituição ou no próprio direito sem que pensemos nas consequências do uso e desenvolvimento dessas novas tecnologias. O sistema vigente, conforme já afirmamos alhures, do Estado Democrático de Direito, fundamentado no constitucionalismo brasileiro promulgado em 1988, permanece arraigado nos princípios da propriedade privada e da livre economia, sem abordar efetivamente as disparidades sociais e sem enfrentar os desafios subjacentes de uma sociedade marcada pela exclusão.

Dessa forma, é esperado que nos deparemos cada vez mais com o tema “constitucionalismo digital”, mas é necessário que tal expressão não seja tratada de forma simplista, haja vista as várias camadas e divergências que a acompanham.

Apesar de uma exploração mais profunda sobre o assunto estar reservada para textos futuros, é evidente a urgência de uma análise crítica do constitucionalismo. Tal análise deve ser capaz de identificar as lacunas e contradições nas constituições, bem como propor análises e soluções que busquem fortalecer a defesa dos direitos humanos, garantir a inclusão de comunidades historicamente marginalizadas e compreender quais os efeitos sociais e jurídicos do desenvolvimento de novas tecnologias.

Importa ressaltar, por fim, que pensar em um constitucionalismo digital não é apenas trabalhar a proteção de direitos no âmbito virtual. Corroborando com que já foi afirmado no texto, Pereira e Keller [4] argumentam que o conceito de “constitucionalismo digital” abarca a preservação dos direitos constitucionais em diversos contextos tecnológicos. Essa abordagem não se restringe meramente à discussão sobre a internet e plataformas digitais, mas também aborda questões relacionadas à inteligência artificial, proteção de dados e, mais recentemente, tecnologias quânticas.


[1] MCLHUAN, H.; FIORE, Q. O meio são as mensagens: inventário de efeitos. Rio de Janeiro: Record. 1969.

[2] Idem.

[3] KÖRNER, K. Digital Politics: AI, big data and the future of democracy. In: EU MONITOR, ago. 2019.

[4] PEREIRA, J. R. G.; KELLER, C. I.. Constitucionalismo Digital: contradições de um conceito impreciso. In: Revista Direito e Práxis, v. 13, n. 4, p. 2648–2689, out. 2022.

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