Adimplemento substancial e a jurisprudência dos tribunais
24 de fevereiro de 2024, 9h23
Advinda da doutrina anglo-saxônica [1], a teoria do adimplemento substancial propõe, em síntese, que o credor seja impedido de obter a resolução do vínculo obrigacional ou invocar a exceção do contrato não cumprido quando o descumprimento se afigure de pequena relevância [2]. Pondera-se o inadimplemento e suas repercussões, por meio do controle do exercício do direito à resolução contratual, considerado como um remédio rigoroso.
Dessa forma, o adimplemento substancial não representa a possibilidade de sobreposição do interesse do devedor sobre o interesse do credor, mas sim a possibilidade de conceder ao credor outros mecanismos capazes de tutelar seu interesse no curso da relação obrigacional [3], permitindo o manejo do programa contratual.
Atualmente, a doutrina enfrenta desafios no que se refere à fixação de parâmetros que possibilitem o Poder Judiciário determinar, em cada caso concreto, se o adimplemento se afigura significativo, substancial, tendo em vista os efeitos pretendidos pelas partes na celebração do contrato. Nesse sentido, as cortes brasileiras têm se mostrado tímidas e invocado o adimplemento substancial apenas em abordagem quantitativa [4].
Assim, a jurisprudência já reconheceu a configuração do adimplemento substancial quando verificado o cumprimento do contrato “com a falta apenas da última prestação” [5], ou o pagamento por parte do devedor de “28 das 36 parcelas financiadas” [6], ou até mesmo sustentam a inaplicabilidade da teoria do adimplemento substancial a contratos de cunho sucessivo [7], visto que o adimplemento de parte significativa das parcelas não ensejaria a substancialidade do contrato.
Em outros casos
Os tribunais já decidiram com base numa aferição percentual, atestando substancial o adimplemento nos casos “em que a parcela contratual inadimplida representa apenas 8,33% do valor total das prestações devidas” [8], ou quando o “adimplemento do pagamento representa 62,43% da prestação cumprida”.
Dessa forma, verifica-se inexistente uma análise qualitativa do adimplemento da obrigação, imprescindível para saber se o cumprimento não-integral ou imperfeito alcançou a função que seria desempenhada pelo negócio jurídico em concreto [9].
Nesse sentido, urge reconhecer uma abordagem qualitativa, a fim de construir uma ótica funcional no desempenho do cumprimento da prestação, almejando a essencialidade da obrigação pactuada.
Além disso, deve-se introduzir o interesse útil do credor na satisfação da obrigação, desprezando um parâmetro numérico, que oferta pouco suporte analítico no estudo do inadimplemento das obrigações.
A título exemplificativo, tem-se o devedor que cumpriu 80% da obrigação acordada, restando pendente os 20%. Contudo, o credor apresenta interesse jurídico no cumprimento da porcentagem pendente.
Sob minha perspectiva, não se afigura interessante a resolução contratual, ainda que não atendidos os interesses do credor no curso do desempenho da prestação, sendo necessário ponderar a utilidade da extinção do vínculo obrigacional e o prejuízo que resultaria para o devedor e para terceiros a partir da resolução.
Caberia possibilidade de conceder ao credor outros mecanismos capazes de tutelar seu interesse no curso da relação obrigacional, como o ressarcimento por perda e danos [10] referente a parte da obrigação inadimplida.
Nessa esteira, o artigo 475 do Código Civil [11] traz uma ideia de inadimplemento subsidiário, isto é, tem-se o descumprimento da obrigação. Contudo, poderá o credor exigir a resolução do contrato, com devolução das prestações anteriormente efetuadas e a liquidação das perdas e danos, ou, se preferir, como lhe faculta o aludido no dispositivo, exigir o seu cumprimento pelo valor equivalente [12].
Assim, observa-se a existência de remédios capazes de tutelar o interesse do credor no adimplemento das obrigações, muito embora haja a possibilidade de resolução contratual, que deveria ser a ultima ratio para sanar o inadimplemento.
Assim, em tom de informalidade, “é hora de sentar e de negociar”, observando os efeitos pretendidos pelo credor e pelo devedor, a fim de buscar uma maneira menos rigorosa para manejar o programa contratual.
Portanto, se torna imprescindível uma reforma do entendimento das cortes brasileiras, no que concerne o adimplemento substancial, que busca manter determinada relação obrigacional levando em consideração os efeitos que as partes buscaram auferir com a realização de determinado negócio jurídico [13]. Logo, faz-se necessário introduzir uma perspectiva que enseje a análise funcional in concreto da substancialidade da obrigação, no curso de seu adimplemento.
[1] Sobre o tema, v. E. Allan Farnsworth, William F. Young e Carol Sanger, Contracts – Cases and Materials, New York: Foundation Press, 2001, pp. 700-707, especialmente os esclarecedores comentários às decisões proferidas em Jacob & Youngs v. Kent (Court Appeals of New York, 1921); e Plante v. Jacobs (Supreme Court of Wisconsin, 1960)
[2] Anderson Schreiber, Manual do Direito Civil Contemporâneo, Rio de Janeiro, 2018, p. 358.
[3] “Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode certamente, o credor, valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título.”(STJ, 4a. T., REsp 1.051.270/RS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, julg 4.8.2011, publ. Dj. 5.9.2011)
[4] Gustavo Tepedino, Anderson Schreiber. Fundamentos do Direito Civil, Obrigações, 2a ed., p. 340.
[5] STJ, REsp 272.739/MG, julg. 1-3-2001.
[6] “À vista do exposto, e considerando o fato do devedor ter adimplido quase a totalidade do financiamento, ou seja, 36 (trinta e seis) parcelas, havendo apenas 08 (sete) parcelas em atraso, entendo que houve adimplemento substancial, diante do pagamento de aproximadamente 80% das parcelas, sendo a busca e a apreensão do bem medida desproporcional, podendo o credor valer-se de meios menos gravosos para a satisfação de seu crédito.”(TJAL, 1a Câmara Cível, Apelação Cível 0733140-62.2014.8.02.0001, julg. 19.7.2023)
[7] STJ, AgInt no AREsp n. 1.967.559/DF, Rel. Min. Marco Buzzi, 4a. T., julg. 22.2.2022, publ. Dje 10.3.2022.
[8] TJDF, 4a Câmara Cível, Apelação Cível 2004.01.1.025119-0, julg. 9.5.2005.
[9] Gustavo Tepedino, Anderson Schreiber. Fundamentos do Direito Civil: Obrigações, 2a ed., p. 340.
[10] “Não se está a afirmar que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título.”(ST, 4a. T., REsp 1.051.270/RS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, julg.4.8.2011, publ. Dje 5.9.2011)
[11] Art. 475 do Código Civil: “A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.”
[12] Gustavo Tepedino, Anderson Schreiber. Fundamentos do Direito Civil, Obrigações, 2a ed., p. 368.
[13] Pietro Perlingieri. Manuale di diritto civile. Napoli: EST, 1997. p. 370.
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