Opinião

Human Rights Act 1998: o controle de compatibilidade britânico

Autor

  • é advogada especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional mestre em Direito Internacional titular de LLM em Direito Francês e Europeu ambos na na Universidade Paris 1 Panthéon - Sorbonne mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda em Direito Internacional Público na Faculdade de Direito de Lisboa.

    Ver todos os posts

16 de fevereiro de 2024, 7h02

No Reino Unido, a Revolução Gloriosa consolidou o ideal da soberania do Parlamento, o respeito ao Rule of Law [1]. A despeito de não ter uma constituição escrita, as principais fontes do Direito Constitucional inglês são a Magna Carta (1215), o Petition of Rights (1628), a Bill of Rights (1689), o Ato de União, com a Escócia (1707) e com a Irlanda (1800), além do Estatuto de Westminster (1931).

O Reform Act 1832 consolidou a separação entre a Coroa (a chefia de Estado hereditária) e o Governo (ministros provenientes de eleição) e fixou as bases de uma Administração Pública, que, na passagem do século 19 para o século 20, ganharia a autonomia necessária frente ao Governo.

Neste progresso, o diálogo do direito inglês com o direito internacional contou com os acordos multilaterais da década de 1950, que impactaram o Direito Constitucional Britânico, rumo ao controle de compatibilidade:

(a) European Economic Community;
(b) European Coal and Steel Community;
(c) European Atomic Energy Community;
(d) Tratado de Maastricht, o qual incorporou, em seu texto, além dos acordos multilaterais já citados, as emendas dos Tratados de Amsterdã, Nice e Lisboa;
(e) European Convention on Human Rigths – ECHR;
(f) Human Rights Act (HRA) – 1998;
(g) Reform Act 2005, o qual formalmente criou a Suprema Corte do Reino Unido, o Controle de Constitucionalidade e a efetiva independência da Câmara dos Lordes; (h) Ato do Parlamento Britânico, denominado European Communities Act 1972, documentos internacionais que afetaram a tradicional doutrina da Soberania do Parlamento imposta pela Revolução Gloriosa.

Entre as décadas de 1970 e 1998, diversos foram os apelos para que o Reino Unido tivesse sua própria Declaração de Direitos. Em outubro de 1997, o então governo propôs a introdução de uma Lei de Direitos Humanos com a incorporação da Convenção Europeia de Direitos Humanos à legislação do Reino Unido.

Suprema Corte do Reino Unido

O Projeto de Lei de Direitos Humanos foi apresentado ao Parlamento em 23 de outubro de 1997 e o Human Rights Act (HRA) recebeu o Royal Assent em 9 de novembro de 1998, com entrada em vigor em 2 de outubro de 2000.

A declaração de compatibilidade
Em 1951 o Reino Unido assinou a Convenção Europeia de Direitos do Homem de 1950. No entanto, apenas em 1998 foi editado pelo Parlamento inglês o Human Rights Act – HRA, que visou a incorporação das disposições presentes na Convenção Europeia de Direitos do Homem de 1950 e o reconhecimento da jurisdição da Corte Europeia de Direitos do Homem [2].

A Convenção Europeia, incorporada pelo Human Rights Act-HRA, introduziu no processo legislativo duas diretrizes:

i) a obrigação do Judiciário, ao interpretar e aplicar as leis, esforçar-se, ao máximo, para compatibilizá-las com a Convenção (Section 3 do HRA); e
ii) somente na absoluta impossibilidade de efetivar a compatibilização é que as Cortes estariam autorizadas a declararem a incompatibilidade. Neste contexto, apenas de forma subsidiária o juiz poderia declarar que a norma do common law não estaria em conformidade com o previsto no Human Rights Act.

Em caso de conflito de normas, o HRA dispõe de dois mecanismos para a sua resolução:

i) a declaração de compatibilidade perante o Parlamento deve ser utilizada durante o processo legislativo, ficando o parlamentar responsável por apresentar tema para votação, devendo realizar uma declaração de compatibilidade assegurando que o regramento apresentado está em conformidade com as previsões do Human Rights Act e

ii) a declaração de incompatibilidade pleiteada em juízo — ao analisar o caso concreto, o juiz pode declarar a incompatibilidade entre a lei inglesa e a norma prevista no HRA, entretanto, deve aplicar a lei inglesa e comunicar ao Ministro competente a respeito da incompatibilidade existente [3].

A Seção 4 do HRA estabelece que, se um tribunal superior (como o High Court, o Court of Appeal ou o Supreme Court) considerar que uma disposição de uma lei do Parlamento é incompatível com os direitos humanos, ele poderá fazer uma declaração de incompatibilidade, o que não significa a invalidade imediata do texto legal.

Portanto, a lei não será alterada automaticamente como resultado de uma declaração de incompatibilidade. Em vez disso, o Parlamento deve decidir se deseja alterar a lei.

Nos primeiros dez anos de vigência do HRA foram feitas menos de 30 declarações de incompatibilidade.

Ocorre que, em oposição a essa prescrição, o HRA prevê em sua Seção n˚ 2 que uma Corte, quando estiver apreciando uma questão que envolva um direito da Convenção, deve apenas considerar nos fundamentos da decisão a ser tomada a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos, bem como as decisões e opiniões das Comissões e Comitês de Ministros da União Europeia [4].

Ou seja, segundo o HRA a vinculação à jurisprudência europeia não é obrigatória e quem possui a última palavra é o Parlamento (o que contrasta frontalmente a Lei das Comunidades Europeias de 1972).

Diante dessa divergência de posicionamentos a Convenção prevê, em sua Seção 13, a possibilidade do litigante pleitear para a Corte Europeia um posicionamento a respeito da suposta violação ao seu direito. Surgirá, assim, dentro do ordenamento interno uma obrigação imposta ao Estado pela Corte Europeia em sentido oposto ao posicionamento adotado [5].

Obtempere-se que a Convenção Europeia não foi integralmente internalizada ao direito inglês, pois ao editar o Human Rights Act (instrumento integrador da Convenção no direito inglês), com a incorporação das previsões legais existentes na Convenção Europeia de Direitos Humanos, foi excluída a Seção 13 que dispõe justamente sobre o direito de petição de cidadãos ingleses perante a Corte Europeia de Direitos Humanos.

Joint Committee on Human Rights (JCHR): um controle prévio?
A Seção 19 do HRA exige que qualquer parlamentar responsável por um projeto de lei em ambas as Câmaras do Parlamento apresente, antes da segunda leitura do projeto de lei, uma declaração que diga que, na opinião do ministro, o projeto de lei é compatível com os direitos humanos ou que é incompatível, mas que o governo deseja, mesmo assim, prosseguir com o projeto de lei.

Nesse contexto foi criado o Comitê parlamentar conjunto de Direitos Humanos — Joint Committee on Human Rights (JCHR), composto por 12 membros nomeados tanto pela Câmara dos Comuns quanto pela Câmara dos Lordes, que possui a função de analisar previamente a compatibilidade do projeto de lei com o HRA.

A declaração não é vinculante para o Parlamento ou para os tribunais, pois o seu objetivo é incentivar os ministros e o serviço público a considerar as implicações de direitos humanos da legislação proposta antes que ela seja apresentada. As notas explicativas dos projetos de lei incluem informações detalhadas sobre o motivo pelo qual a legislação é considerada compatível com os direitos humanos.

Constitutional Reform Act: United Kingdom Supreme Court
Em 2005 o Parlamento inglês editou o Constitutional Reform Act, que “transferiu” a jurisdição da Câmara dos Lordes [6] e criou uma Suprema Corte inglesa (United Kingdom Supreme Court) independente e autônoma do Parlamento, o que teve por consequência a redução da soberania do Parlamento.

Com bastante atraso, a Suprema Corte foi criada por imposição da Comunidade Europeia, que através da Resolução no 1.342 do Conselho Europeu, e, posteriormente, com a decisão proferida pela Corte Europeia de Direitos Humanos, determinou expressamente a necessidade de uma Suprema Corte inglesa autônoma do Parlamento [7].

Além disso, a Suprema Corte iniciou seus trabalhos apenas em 1˚ de outubro de 2009, com a composição de 12 juízes e possui jurisdição em relação as cortes da Inglaterra e Wales, Escócia e Irlanda do Norte.

O Reform Act 2005 também registrou importantes garantias relativas ao Poder Judiciário, a saber:

i) a independência e a transparência do Poder Judiciário;
ii) a não partidarização do processo de indicação dos Ministros da Supreme Court;
iii) a independência e a harmonia entre o Judiciário e o Parlamento; iv) a nomeação dos Ministros da UK Supreme Court por meio de processo dialogado de escolha entre Governo, Parlamento e Judiciário, no seio da Judicial Appointments Commission;
v)
a chefia do Poder Judiciário, que cabia ao Lord Chancellor (integrante do Governo), é transferida ao Ministro Presidente da UK Supreme Court; e
vi) a colaboração de todos os poderes instituídos para garantir a independência do Poder Judiciário [8].

Após a declaração de incompatibilidade eventualmente emitida pela Suprema Corte, a lei permanece a mesma até que o Parlamento declare a sua invalidade e as partes do caso concreto não são imediatamente afetadas pela declaração, pois essa declaração de incompatibilidade é apenas o início de um recurso para uma reivindicação do Human Rights Act 1998.

Por exemplo, em 10 de abril de 2003, a Câmara dos Lordes proferiu sentença no caso Bellinger v Bellinger com efeitos “prospectivos”.

A sra. Bellinger foi registrada como homem, mas se reconhecia como mulher e decidiu realizar a cirurgia respectiva. Posteriormente, buscou o reconhecimento legal de seu casamento com outro homem em 1981. Os Lordes decidiram que o casamento era nulo. No entanto, eles declararam que a seção 11(c) do Matrimonial Causes Act 1973 era incompatível com o Human Rights Act 1998, o que resultou na edição de legislação que permitiu que pessoas transexuais se casassem em seu novo gênero [9].

Procedimento: leapfrog appeal (esfera cível)
No que concerne ao acesso à jurisdição da Corte Suprema, apenas as partes envolvidas no processo possuem legitimidade para interpor recurso de apreciação da Suprema Corte Inglesa e a condicionante da existência de relevância social e jurídica é imprescindível, exceto no caso de decisão proferida em processo de natureza criminal.

O Leapfrog appeal pode ocorrer apenas na jurisdição civil de acordo com o determinado pelo Administration of Justice Act 1969.

Essa modalidade de recurso é utilizada quando é necessária uma importante interpretação a respeito de um diploma normativo e é possível saber que a High Court irá decidir de acordo com precedente já fixado pela Suprema Corte. Excepcionalmente a High Court irá atuar em casos criminais quando o objeto da discussão disser respeito à legalidade das decisões proferidas.

Como no ordenamento jurídico brasileiro, o diálogo institucional (entre Juiz, Governo e Parlamento) deve respeitar a autonomia de cada esfera de poder. Contudo, no Reino Unido, o Poder Judiciário, isoladamente, não pode declarar a inconstitucionalidade de statutes, diferentemente do modelo brasileiro (o judicial restraint britânico é mais forte).

Nesse sentido ressalta-se a decisão do Factortame Case — sobre o ingresso do Reino Unido na União Europeia — quando se reafirmou, de forma peremptória, a vinculação do Parlamento ao direito comunitário europeu, o que contrariou o disposto no HRA que prevê apenas a necessidade de “consideração” da jurisprudência da CEDH.

Como exemplo vetor do descumprimento das decisões da Corte Europeia pelo Reino Unido, ressalta-se que desde Hirst v United Kingdom (2005) se constatou que a proibição geral que impede os prisioneiros de votar representa uma violação do Artigo 3 do Protocolo nº 1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos (ECHR) — o direito a eleições livres.

Apesar desses julgamentos, o governo britânico se recusa a alterar a legislação pertinente, ou seja, a seção 3 da Representation of the People Act (Lei de Representação do Povo [10]) de 1983, que afirma que “Uma pessoa condenada durante o período em que estiver detida em uma instituição penal em cumprimento de sua sentença… é legalmente incapaz de votar em qualquer eleição parlamentar ou local“.

Neste sentido, se verifica nessa breve análise que no direito constitucional britânico — que combina o controle de constitucionalidade com o controle de convencionalidade — por ser o HRA parte dos documentos constitucionais e convencionais de proteção aos direitos humanos — the king can do wrong e ainda assim se escusar de cumprir o HRA, conforme ocorre na prática com a violação ao direito de voto dos prisioneiros.

Assim, apesar da edição do HRA, que permite expressamente o controle de compatibilidade das leis britânicas perante a Suprema Corte e de convencionalidade perante a Corte Europeia de Direitos Humanos — a quem deve respeito segundo o precedente Factortame Case – até hoje o governo britânico utiliza a cláusula “So far as it is possible to do so”, quase uma aplicação da teoria da margem de apreciação nacional para não respeitar adequadamente a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos.

________________________________________________

[1]  “The rule of law is the most fundamental principle of the British Constitution, with statutes being not the source but the consequence of the rights of individuals as defined and enforced by judges interpreting and applying the common law”. WOLCHER, Louis E. A Philosophical Investigation Into Methods of Constitutional Interpretation in the United States and the United Kingdom. 13 Va.. J. Soc. Pol’y & L. p. 431-432. 2006.

[2] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Inovações na constituição inglesa: o human rights act, 1998. In: Revista brasileira de direito constitucional, no 4, pp. 49-55, jul/dez. 2004, p. 52.

[3] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Inovações na constituição inglesa: o human rights act, 1998. In: Revista brasileira de direito constitucional, no 4, pp. 49-55, jul/dez. 2004, p. 53.

[4] CRAIG, Paul. Constitutionalism, regulation and review. In Constitutional Future: a history of the next ten years. Editado por Robert Hazell. Oxford University Press, 1999, p. 77

[5] Section 3(1) of the Human Rights Act 1998 reads as follows: “So far as it is possible to do so, primary legislation and subordinate legislation must be read and given effect in a way which is compatible with the Convention rights”. Where the court determines a piece of legislation is inconsistent with the Convention rights, the court can issue a declaration of incompatibility under section 4 of the Human Rights Act 1998.[1]

[6] CYRINO, André Rodrigues. Revolução na Inglaterra? Direitos humanos, corte constitucional e declaração de incompatibilidade das leis. Novel espécie de judicial review? In Revista de Direito do Estado: Brasília: ano 2, n. 5, p. no 267-288, jan/mar, 2007., p. 281

[7] CYRINO, André Rodrigues. Revolução na Inglaterra? Direitos humanos, corte constitucional e declaração de incompatibilidade das leis. Novel espécie de judicial review? In Revista de Direito do Estado: Brasília: ano 2, n. 5, p. no 267-288, jan/mar, 2007., p. 281-283.

[8] Constitutional Reform Act, 2005, c. 4, § 3.o(1)

[9] Sections 1 and 3 of the Civil Partnership Act 2004 (to the extent that they preclude a different sex couple from entering into a civil partnership) are incompatible with ECHR article 14 taken in conjunction with article 8. As a result of this decision and an earlier European Court of Human Rights decision, the Government introduced, and Parliament enacted, the Gender Recognition Act 2004 which allows those who have undergone gender reassignment the chance to have their new gender legally recognised.

[10] The wording of section 3 of the 1983 Act excludes unconvicted prisoners and those serving their sentence in the community from the ban. This means the following prisoners can vote: those held on remand awaiting trial/ sentencing civil prisoners– normally those in prison for failure to pay fines or debts  or contempt  offenders on home detention curfew or released on temporary licence.

Autores

  • é advogada, especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional, mestre em Direito Internacional, titular de LLM em Direito Francês e Europeu, ambos na Universidade Paris 1 Panthéon - Sorbonne, mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda em Direito Internacional Público na Faculdade de Direito de Lisboa.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!