Opinião

A "cerca de Chesterton" e a busca pela reforma dos juros sobre capital próprio

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8 de fevereiro de 2024, 17h28

A presente exposição — que, desde logo, ressalta-se, será marcada pela brevidade e pela despretensão por qualquer ineditismo — terá início com uma citação do ensaísta inglês Gilbert Keith Chesterton, em seu livro “A coisa” [1]. Ela segue o seguinte:

“Quando se fala de reformar as coisas, o que não é o mesmo que deformá-las, há um princípio claro e simples; um princípio que provavelmente será chamado de paradoxo. Existe nesse caso uma certa instituição ou lei; imaginemos, a fim de simplificar, uma cerca ou portão construído cruzando uma estrada.”

O tipo mais moderno de reformador vai até ele, alegremente, e diz: “Não vejo a utilidade disto; que seja retirado”; ao que o reformador mais inteligente fará bem em responder: “Se você não vê a utilidade disto, certamente não deixarei que o retire. Vá embora e pense. Quando puder, enfim, me dizer que vê sua utilidade, talvez deixe você o destruir”.

Não adentrando nas polêmicas que revolvem a obra do autor, cumpre destacar que esse breve excerto foi responsável por provocar um princípio comumente denominado de a “cerca de Chesterton”.

Um imperativo que pretende nortear a tomada de decisões e preceitua, com a objetividade que o tema merece, que qualquer aparente entrave não surgiu do acaso — ou, como pontua Chesterton, “não foi posto por sonâmbulos que o construíram durante o sono”.

Em algum momento, “alguma pessoa teve alguma razão para pensar que seria algo bom para alguém. E até que saibamos qual foi essa razão, não podemos julgar se era razoável”.

A lógica, portanto, é simples: antes de se envidar qualquer reforma, deve-se, primeiro, compreender a origem e o porquê de o arranjo que se pretende reformar estar como está.

De outra forma, incorre-se em elevado risco de não se promover uma reforma, mas uma deforma cujos efeitos podem ser potencialmente mais nefastos dos que aqueles que com a mudança se pretende evitar.

Esse cuidado, contudo, não nos parece ser dispensado pelo atual governo em algumas medidas. Notadamente, no que tange à pretensão de reforma dos juros sobre capital próprio, objeto do presente artigo.

Para os que não têm familiaridade com a discussão, os juros sobre capital próprio são instituto previsto no artigo 9º, da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, correspondentes a “juros pagos ou creditados individualizadamente a titular, sócios ou acionistas, a título de remuneração do capital próprio, calculados sobre as contas do patrimônio líquido”.

Prática que se, por um lado, é benéfica aos sócios, que recebem parcela do resultado das sociedades de que participam, por outro, é benéfica para as sociedades, na medida em que os valores pagos a esse título podem ser deduzidos da apuração do lucro tributável.

A complexidade do instituto não é comezinha, razão pela qual são travadas diversas discussões a seu respeito. Contudo, a que tem tomado os holofotes nos últimos anos, parece-nos, a mais basilar: a pretensão do governo federal de o extinguir.

Manobra ministerial
Essa manobra já foi intentada em diversas ocasiões. Para nos ater aos episódios mais recentes, podemos citar a campanha do então ministro da Fazenda Paulo Guedes, em 2021; a cruzada do atual ministro, Fernando Haddad, em 2023 — sedimentada, mediante concessões recíprocas, por um acordo com o setor empresarial; e, na última semana, o prenúncio de uma nova cruzada, também pelo atual ministro, tendente a, uma vez mais, propor a revogação do instituto.

Em todos os episódios relatados acima, a motivação externalizada para a pretensão foi de simplicidade franciscana: o instituto consubstanciaria mecanismo de “engenharia tributária”, que, em última análise, drenaria recursos dos cofres públicos. Em suma, tratar-se-ia de mecanismo injustificado de renúncia tributária que, por gerar abuso, merecia ser prontamente endereçado.

Sem qualquer menoscabo à pretensão arrecadatória, essa visão simplista, parece não ter compreendido o porquê de essa “cerca” ter sido ali posta. Portanto, ao que tudo indica, sua revisão ainda carece de especial esforço reflexivo. E no intento de corroborar esse esforço, destaca-se duas, dentre as vias que motivaram a criação do instituto.

A primeira delas, essencialmente “contábil”, foi bem explanada pelo professor Eliseu Martins em seu artigo “Um pouco da história dos juros sobre o capital próprio” [2]. Como bem demonstrou o professor naquela ocasião, o momento de instituição dos juros sobre capital próprio coincidiu com o de extinção da correção monetária dos balanços, ocorrida em 31 de dezembro de 1995.

Instituto esse que, apesar de criticado em diversos aspectos, fazia com que, em alguma medida, fossem tributados somente os acréscimos (lucros) efetivamente auferidos por uma entidade. Afinal, como bem pontuou o professor, “só é lucro o aumento patrimonial excedente ao efeito inflacionário”. Logo, com a extinção do modelo de correção, passou-se à tributação pura e simples pela sistemática de “lucro nominal, e não mais pela do lucro efetivo (após extirpação dos efeitos da inflação)”.

Essa circunstância criou um cenário de iniquidade concorrencial. Isso porque um dos efeitos práticos da correção monetária dos balanços era a correção do patrimônio líquido das sociedades, que permitia que lucro apurado refletisse somente os acréscimos efetivos aos interesses residuais das sociedades, já deduzidos do acréscimo inflacionário por eles auferido. Em outras palavras, apurava-se um lucro efetivo correspondente ao acréscimo real, líquido do acréscimo nominal apurado somente para fins de manutenção do poder de compra dos interesses residuais já anteriormente obtidos.

Nessa seara, havia um estímulo a que sociedades recorressem à capitalização com recursos próprios. Afinal, com a correção, seriam liquidados os efeitos da majoração inflacionária de seu patrimônio líquido, o que punha essas empresas em pé de igualdade com aqueles que recorriam à capitalização com recursos de terceiros — cujo lucro apurado já estava líquido dos encargos inflacionários da dívida, dedutíveis enquanto despesa financeira.

Portanto, o fim da correção acabou por incentivar as sociedades a recorrerem à capitalização via recursos de terceiros — empréstimos, por exemplo. Afinal, apurava-se um lucro tributável mais próximo daquele efetivamente auferido, na medida em que o resultado inflacionário era extirpado com a dedutibilidade das despesas financeiras a ela referentes.

É uma das razões pelas quais, segundo aponta o autor, foi criado o instituto dos juros sobre capital próprio. Mecanismo que, ao permitir que empresas com maior parcela de capital próprio (patrimônio líquido) liquidem parcela do custo inflacionário da manutenção desse capital — mensurada, como prevê o já citado artigo 9º, respeitando a limitação “pro rata dia, da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) — apurem resultados em pé de igualdade com aquelas que se capitalizam mediante recursos de terceiros.

A segunda delas, cumulativa à primeira, essencialmente “jurídica”, foi bem explanada pelo professor Luis Eduardo Schoueri em seu artigo “Juros sobre capital próprio: Natureza jurídica e forma de apuração diante da nova contabilidade”[3]. Naquela ocasião, o professor chamou a atenção para o fato de que, a partir da já citada Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, “os dividendos pagos pelas sociedades brasileiras aos seus sócios ou acionistas, pessoas físicas ou jurídicas residentes ou não no País, passaram a ser rendimentos não tributáveis”.

Essa medida, conforme item 12 da exposição de motivos da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, teve por objeto “a completa integração entre a pessoa física e a pessoa jurídica, tributando-se esses rendimentos exclusivamente na empresa e isentando-os quando do recebimento pelos beneficiários”. Contudo, considerando que a dupla tributação, na apuração e na distribuição do resultado, deixou de existir, um dos efeitos trazidos por essa isenção foi o estímulo à ampla distribuição de resultados —  fenômeno que poderia arrastar as sociedades para um cenário de subcapitalização[4].

Problema com taxa de juros x inflação elevada
Nessa seara, os juros sobre capital próprio emergiriam como “expediente criativo para se evitar a thin capitalization”. Afinal, “os juros sobre o capital próprio têm a finalidade de permitir ao sócio ou acionista receber um rendimento equivalente ao que receberia se buscasse outra aplicação financeira de longo prazo”; contudo, o fazem de maneira que permite a dedutibilidade desses valores na apuração do lucro tributável e, paralelamente, estimula-se a manutenção de capital próprio na sociedade.

Afinal, “a lei nº 9.249/1995 condiciona o pagamento dos juros à existência de lucro apurado no período ou de lucros acumulados em um valor igual ou maior a duas vezes o montante que será pago a título de juros sobre o capital próprio”. E, conforme arremata o professor:

“Assim, consoante a disciplina do artigo 9º da Lei nº 9.249/1995, a sociedade paga uma remuneração a seus acionistas e reconhece o valor como uma despesa dedutível, abatendo-a do seu lucro tributável. Ao mesmo tempo, tais valores encontram-se sujeitos à retenção na fonte, no momento do pagamento ao acionista, à alíquota de 15%. Desincentiva-se, pois, a capitalização das sociedades por meio de empréstimos, ou subcapitalização, já que ela não é necessária para se conseguir a dedutibilidade dos pagamentos aos sócios.”

Embora parcela da doutrina interprete as vias como alternativas, parece que ambas endereçam a um mesmo problema: o estímulo à descapitalização das sociedades ou sua capitalização através de recursos de terceiros. Práticas que, em um país marcado pela baixa produtividade média dos fatores e por uma disputa constante entre taxas de juros ou inflação elevadas, poderiam ter efeitos verdadeiramente nefastos sobre a eficiência econômica do país e, especialmente, sua capacidade de crescimento.

Portanto, como introduzido no início da presente exposição, a complexidade do instituto, de fato, não é comezinha. Retomando a alegoria de Chesterton apresentada na introdução, parece-nos haver verdadeiras razões para a ‘cerca’ que ora se pretende reformar ter sido ali posta por “alguma pessoa [que] teve alguma razão para pensar que seria algo bom para alguém”.

E, até o momento, a literatura especializada, muito bem compilada pelos professores Rodrigo de Losso e Joelson Sampaio, em coluna publicada no portal Valor Investe, por ocasião da incursão do ex-ministro Paulo Guedes em 2021, indica que, de fato, desde sua implementação, os juros sobre capital próprio têm impactado favoravelmente a estrutura de capital das sociedades. O que se verificou, justamente, em virtude da redução dos incentivos tributários ao endividamento corporativo.

Por essas razões, não se nega aqui a possibilidade de que o instituto até então discutido venha a ser revisto, aprimorado ou, eventualmente, até mesmo eliminado. Contudo, alterações dessa natureza somente devem ser realizadas após a efetiva compreensão dos motivos que justificaram sua instituição e da aferição se os problemas que buscavam eles endereçar persistem na atualidade e em que medida justificam, ou não, a persistência do instituto — o que, salvo melhor juízo, não tem sido feito com a necessária seriedade.

Caso esse curso de ação não seja revisto, estaremos, enquanto nação, preterindo a oportunidade de reformar o instituto, em prol de sua potencial deturpação.

 


[1]    CHESTERTON, Gilbert Keith. A coisa: por que sou católico. 1ª Ed. Campinas: CEDET, 2021. Pg. 41.

[2]    MARTINS, Eliseu. Um pouco da história dos juros sobre capital próprio. Temática contábil e balanços — IOB, Bol. 49/2004.

[3]    SCHOUERI, Luis Eduardo. Juros sobre capital próprio: Natureza jurídica  e forma de apuração diante da ‘nova contabilidade’. In MOSQUERA, Roberto Quiroga. Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamento). 3º Volume. São Paulo: Dialética, 2012.

[4]    Ou, como a denominam os anglófonos, ‘thin capitalization’.

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