Opinião

Desafios regulatórios e perspectivas econômicas da produção da cannabis no Brasil

Autor

  • Luana Marina dos Santos

    é advogada e professora nas áreas de direito digital ESG e cannabis law mestra em direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos bolsista Capes e graduada em direito pela mesma universidade.

4 de fevereiro de 2024, 9h14

Diante do contínuo desenvolvimento das políticas de drogas em nível global, a questão da legalização da maconha emerge como um tema central de discussão, abarcando uma variedade de dimensões sociais, políticas e de saúde pública. O desdobramento dessa discussão revela a complexa tessitura que caracteriza a política de drogas em cada nação. Exemplos notáveis incluem Uruguai, República Dominicana, Canadá, Estados Unidos, Portugal, Luxemburgo, Nova Zelândia, Suíça, Holanda, Jamaica e África do Sul, que já regulamentaram, em diferentes graus, o uso da cannabis para fins recreativos.

No contexto brasileiro, enquanto o Supremo Tribunal Federal avalia a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que estipula penalidades pelo porte de drogas, desde advertências até medidas educativas, paralelamente discute-se a permissão para a fabricação de medicamentos à base de cannabis no país. A crescente aceitação dos efeitos terapêuticos da planta tem sido refletida em decisões judiciais, permitindo o acesso de pacientes com condições médicas específicas a tratamentos à base de cannabis, desencadeando uma interação complexa entre a ciência e a regulamentação da planta.

Embora a venda de cannabis continue ilegal independentemente do desfecho do julgamento em andamento, é evidente que a interação entre os poderes Judiciário, Legislativo e a sociedade civil cria uma dinâmica complexa que molda a abordagem regulatória das substâncias psicoativas, refletindo as múltiplas dimensões envolvidas nesse debate.

Em consonância com essa evolução, a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 327[1], publicada no final de 2019, já autoriza a venda do extrato de cannabis (principalmente contendo canabidiol, derivado da planta sem efeito psicoativo) em farmácias brasileiras. Entretanto, ainda se discute pouco sobre a fabricação de canabidiol no Brasil. Até o momento, a Anvisa aprovou 23 medicamentos de cannabis no País, sendo nove à base de extratos de cannabis sativa e 14 de canabidiol.

Visando a avanços no setor, durante o primeiro fórum da Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides (BRCann), realizado em dezembro de 2023, um representante da Anvisa insinuou a possibilidade de ampliação[2] das vias de administração dos produtos medicinais à base de cannabis, que atualmente se limitam ao extrato e ao óleo medicinal. A diversificação e a consequente ampliação da concorrência devem exercer pressão sobre os preços, aumentando o acesso à cannabis medicinal.

Essa expansão, também demandada pelo setor farmacêutico interessado em equiparar-se ao mercado de importados, que oferece produtos ainda não permitidos no país, ressalta a necessidade de repensar o Brasil como um provedor capaz de fomentar a indústria de canabinoides, especialmente em um contexto jurídico aquecido sobre o tema.

Autorização para fabricar produtos
Nesse sentido, em 14 de dezembro de 2023, o juiz federal Peter de Paula Pires, da 5ª Vara Federal de Ribeirão Preto (SP)[3], autorizou uma farmácia de manipulação a fabricar no Brasil produtos à base da planta cannabis, sob a condição de que tais produtos tenham sua comercialização autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O magistrado frisou que a Anvisa já autoriza a comercialização e a importação de produtos derivados da maconha, tornando injustificável a proibição de sua produção por farmácias de manipulação.

Ademais, a decisão mencionou que a Anvisa já autorizou pelo menos uma empresa brasileira a produzir um produto derivado de maconha em território nacional, além de fazer referência às jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que nos últimos anos têm concedido decisões frequentes para autorizar a importação de sementes de cannabis, o cultivo da planta e a obtenção artesanal de produtos para fins medicinais.

Entretanto, a Anvisa defendeu a improcedência do pedido feito pela farmácia no processo, argumentando que é necessária a observância de uma série de boas práticas na fabricação de medicamentos, requisitos que somente podem ser atendidos por empresas farmacêuticas.

Por outro lado, a Anvisa autorizou, em 2023, a fabricação no Brasil de um novo produto medicinal à base de cannabis, o Canabidiol Ease Labs 100 mg/ml, a ser produzido pela Ease Labs Laboratório Farmacêutico sob a forma de solução de uso oral[4].

Essa antinomia no cenário jurídico acerca da permissão para a fabricação de produtos à base de cannabis é evidente. No entanto, diante das decisões recentes e do cenário em evolução, impulsionado por ativistas e iniciativas sociais consistentes, torna-se cada vez mais premente a necessidade de um plano de ação que não restrinja o Brasil apenas a produtos importados, dificultando o acesso autorizado ao produto.

É relevante destacar que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) possui capacidade para iniciar pesquisas voltadas à produção de cânhamo no Brasil, embora ainda não disponha de um banco de germoplasma com variedades de cannabis. Segundo os pesquisadores, as vantagens econômicas, sociais e agronômicas que o Brasil pode obter com o cultivo da planta são inúmeras.

Soberania na produção
Nesse sentido, as perspectivas positivas para o setor agropecuário são notáveis, caso a Embrapa seja autorizada a conduzir pesquisas com cannabis. O cânhamo representa um caminho para a autonomia nacional na produção de canabinoides. Se atualmente o país depende da importação de óleo de cannabis e fármacos, com o plantio de diferentes variedades adaptadas às diversas regiões brasileiras, o Brasil poderia alcançar soberania nesse campo.

Essa medida está alinhada às pressões constantes advindas de grupos que defendem a legalização, como evidenciado pela 21ª edição da Marcha da Maconha, que discutiu amplamente a legalização do uso recreativo da substância, enquanto questionava os altos custos do canabidiol e defendia reparação para comunidades afetadas pela repressão ao tráfico de drogas.

A necessidade dessa postura torna-se ainda mais evidente quando se consideram as demandas expressas pelas mães de crianças com condições médicas específicas, que têm participado ativamente desses movimentos. A descriminalização da maconha não apenas pode garantir preços mais acessíveis, mas também promover uma verdadeira igualdade no acesso à cannabis medicinal.

Nesse contexto, justifica-se o debate sobre a produção de cannabis em território brasileiro e a ampliação do escopo de atuação do Judiciário para abordar essa temática de forma mais abrangente. A discussão sobre a legalização da maconha transcende não apenas o âmbito recreativo, mas também engloba questões de saúde pública, equidade social e desenvolvimento econômico.

Ao enfrentar esses desafios de forma aberta e progressiva, o Brasil estará não apenas apto a responder às crescentes demandas da sociedade, mas também a explorar oportunidades econômicas e a promover uma abordagem mais inclusiva e compassiva em relação ao uso medicinal da cannabis.


[1] Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2019/rdc0327_09_12_2019.pdf. Acesso em 29 jan. 2024.

[2] Disponível em: https://veja.abril.com.br/saude/acesso-a-cannabis-medicinal-sera-ampliado. Acesso em 29 jan. 2024.

[3] Disponível em: https://www.google.com/url?q=https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-12/juiz-autoriza-farmacia-de-manipulacao-fabricar-produtos-de-cannabis&sa=D&source=docs&ust=1706562569572651&usg=AOvVaw24TNrWkNDrPb-Cy5EXhDu_. Acesso em 29 jan. 2024.

[4] Disponível em: https://www.google.com/url?q=https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2022-11/anvisa-autoriza-fabricacao-de-novo-medicamento-base-de-cannabis&sa=D&source=docs&ust=1706562617484819&usg=AOvVaw0ouYnPG75Yt5nehw-TfBZX. Acesso em: 29 jan. 2024.

Autores

  • é advogada e professora nas áreas de direito digital, ESG e cannabis law, mestra em direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bolsista Capes e graduada em direito pela mesma universidade.

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