Público e Pragmático

A proteção aos denunciantes na implementação da política de whistleblowing em São Paulo

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  • é auditor federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União (CGU) graduado em Administração Pública pela Escola de Governo de Minas Gerais e em Direito pela UFMG e doutorando e mestre em Direito de Estado pela Universidade de São Paulo.

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4 de fevereiro de 2024, 8h00

Este artigo versa sobre uma breve análise do programa de proteção a denunciantes instituído em São Paulo no final do ano passado, observando seus parâmetros instituídos e a convergência com as boas práticas em matéria de proteção na condução na política de whistleblowing.

As políticas de proteção aos denunciantes em geral envolvem três institutos nucleares: anonimato, confidencialidade e política antirretaliatória. Dois deles oferecem uma proteção que costumamos dizer primária: a confidencialidade e o anonimato. Porque esses institutos, que não possuem custo para a administração, visam ao encobrimento da identidade do denunciante.

Na primeira hipótese, confidencialidade, a identidade é conhecida, porém ela não é revelada; e, na segunda hipótese, anonimato, não se sabe qual que é a identidade do denunciante. Essas garantias se encontram hoje respaldadas na Lei federal nº 13.608/2018, que é substrato normativo das regulamentações federais e estaduais.

A última proteção diz respeito à política antirretaliatória, que também foi tratada pela sobredita lei. Essa última medida protetiva muitas vezes já ocorre quando o denunciante está a sofrer uma retaliação justamente por ter feito a sua denúncia. Em geral, a política antirretaliatória tem sua marcha realizada a partir de falhas que ocorrem com relação às outras duas proteções anteriores.

É uma política dispendiosa, pois envolve uma série de procedimentos administrativos bastante custosos à administração pública, como por exemplo a alteração do local de trabalho do denunciante, assim como o deslocamento do seu domicílio para outro ou até mesmo uma proteção efetiva por parte das autoridades policiais, porque, nesse caso, a integridade física do denunciante está em jogo.

Programa de denunciantes em SP
O Decreto estadual paulista nº 68.157, de 9 de dezembro de 2023, instituiu o programa de denunciantes de irregularidades ou ilícitos administrativos de ações ou omissões lesivas à administração pública estadual, baseando-se na Lei federal nº 13 608/2018.

Inicialmente, verificamos uma grande proximidade com o Decreto federal nº 10.153, de 2021, em que a grande parte das proteções concedidas ao denunciante em âmbito federal também foram aplicadas em âmbito estadual.

Um ponto importante também trazido pelo decreto estadual foi explicitar o controle de acesso por parte da equipe técnico-administrativa, de modo que os registros de acesso são controlados pela administração pública. Isso significa uma garantia aos denunciantes da cadeia de acesso em relação às suas informações e, portanto, é possível através desse lastro punir eventuais agentes públicos que façam utilização indevida daquela informação, prevenindo, assim, de certa forma, vazamentos.

Pseudonimização
O programa estadual acabou por mimetizar o plano federal e trazer à baila o procedimento da pseudonimização, em que os elementos de identificação que possam permitir a associação da denúncia ao denunciante eles são anonimizados, para que não se possa conhecer a identidade daquele que fez a denúncia.

O anonimato não foi cuidado especificamente por esse decreto, mas esse instituto, que é de fundamental garantia para a proteção dos denunciantes, foi tratado por via transversa por meio do Decreto paulista nº 68.156, de mesma data que o Decreto nº 68.157. No art. 22, parágrafo único, diz que as informações que constituírem comunicações de regularidade, ainda que de forma anônima, serão enviadas à área de apuração competente, desde que existam indícios mínimos de relevância, autoria e materialidade.

Infelizmente, a esse registro da denúncia anônima deu-se o “cacoete”, também existente no plano federal, que se traveste a denúncia anônima de uma terminologia denominada “comunicação de irregularidade”, sendo que os cânones dos standards internacionais são específicos com a nomenclatura anonimato.

Entendimento do STF sobre a denúncia anônima
É mister mencionar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal hoje expressa a total admissibilidade da denúncia anônima no ordenamento jurídico e há no artigo 1º da Lei nº 13 608, de 2018, expressa previsão da garantia do anonimato.

É uma pena, pois poderia se tratar os dois institutos protetivos em um mesmo diploma. Afinal, a estrutura protetiva está definida no segundo decreto, acabando por envolver uma necessidade de conhecimento amplo da legislação para a formação decisória por parte do denunciante, tornando a interação com administração mais custosa e, por vezes, necessitando o uso do saber dos especialistas. Nesse sentido é importante que a comunicação de um determinado programa seja a mais clara possível, para o devido acesso do cidadão às informações que eles são importantes na sua relação com o canal de denúncia.

Acordo para a proteção antirretaliação
Por fim, o decreto estadual trata do compromisso da proteção antirretaliação, mencionando que ela tem natureza negocial com objetivo de estabelecimento de medidas de proteção ao denunciante, com vista ao incremento da capacidade investigativa da administração para detecção de atos de corrupção e de recuperação de ativos. Portanto, a política antirretaliatória, no âmbito estadual, não é automática, mas depende de um acordo anterior feito entre a administração e o denunciante.

A nosso ver, isso leva uma certa morosidade na cadeia protetiva. Expliquemos. Nesse termo de compromisso compete ao denunciante demonstrar a existência de risco de prática de retaliação em decorrência da denúncia apresentada, a relevância das informações veiculadas em sua denúncia, mediante identificação dos envolvidos, caracterização inequívoca do fato denunciado, conjunto para probatório robusto, ausência de participação no ato denunciado, sua capacidade para cooperação e colaboração na obtenção de esclarecimentos e informações complementares necessárias à investigação, conforme descrito no parágrafo segundo do art. 16.

Não temos uma visão de que a política antirretaliatória deva decorrer de um ato negocial entre a administração pública e o denunciante. Pelo contrário, deve ser imperativo à administração pública a emanação de atos administrativos necessários à proteção do denunciante, quando ele for reportar que está sofrendo uma retaliação, independentemente de qualquer acordo. Isso deve ser mandatório aos agentes públicos que cuidam do canal de denúncia.

Outro ponto discutível por parte do uso do termo de compromisso é justamente a necessidade de conjunto probatório robusto que deve ser trazido pelo denunciante. O que se pressupõe pelo decreto paulista, é algo repelido pelos standards internacionais que é a necessidade de o denunciante fazer prova.

Inversão do ônus da prova
Ora, a estratégia dominante por parte do retaliador é sempre retaliar o denunciante, como demonstrado em nosso trabalho [1] ao utilizar as matrizes de jogos (teoria dos jogos) no desenho de um jogo simulado entre retaliador e denunciante. Nesse sentido, deveria ter o decreto adotado a inversão do ônus da prova quando o denunciante venha a sofrer qualquer constrição em sua esfera jurídica. Quando reportado à administração pública por parte do denunciante de que ele está sofrendo retaliação, competirá ao retaliador (no caso, uma autoridade administrativa) que seu ato é justificado. A Bolívia, para citarmos outra legislação que guarda certa similitude com a francesa, adota a presunção absoluta de retaliação, nos termos de Lei nº 458, de 2013. Aliás o modelo boliviano é percursor sul-americano.

Parâmetro
Nessa toada, a França, que serve de importante inspiração ao Direito Administrativo brasileiro, adotou este parâmetro na Lei Sapin II, de 2016. E essa posição é de suma importância frente ao Direito Administrativo brasileiro porque os atos administrativos em geral gozam de presunção de legitimidade e, portanto, qualquer ato emanado por parte da autoridade administrativa no sentido de retaliar o denunciante deveria ser visto, num primeiro momento, como um ato legítimo, competindo ao denunciante fazer desconstituição probatória do ato.

Essa política do ordenamento francês acaba fazendo com que se reverta esse atributo do ato administrativo em benefício do denunciante. Esta é uma regra importante a ser adotada por parte das administrações públicas brasileiras como medida protetiva em relação ao denunciante.

Isenção de responsabilidade administrativa
Outro ponto também que nos parece um tanto equivocado é que do termo negocial ocorreria a isenção de responsabilização administrativa ao denunciante por haver apresentado a denúncia. Essa característica da isenção de responsabilidade decorre justamente da lei que o decreto veio regulamentar. A isenção de responsabilização decorre justamente do artigo 4-A, caput e parágrafo único, da Lei nº 13 608, de 2018, e não é a natureza negocial do compromisso com a administração que vai fazer surgir essa isenção de responsabilidade.

Ela já está prevista em lei. Talvez o que que se pretendia dizer por parte da regulamentação nesse ponto, numa possível interpretação, é que haveria o desfazimento dos atos administrativos ablativos (remoção da responsabilização imposta) aplicados ao servidor denunciante. Porém, caso seja essa a intenção a redação, encontra-se um tanto quanto truncada. Pois as medidas protetivas decorrem do regime legal e devem ser emanadas por ato administrativo da própria Administração, que deve ser diligente ao detectar que represálias estão sendo aplicadas aos denunciantes e emanar, prontamente, os atos de proteção, pois são medidas que são asseguradas ao direito de relatar, nos termos do artigo 4º – C da sobredita lei.

Esses acordos, que são propostos pela política paulista, são comuns na política de whistleblowing norte-americana, mais especificamente no regime das recompensas, em que o denunciante para fazer jus à recompensa tem, de fato, de trazer informações relevantes e evidências (conjunto probatório mais substancial), devendo firmar documentos em que declara que as informações por ele reveladas são verdadeiras sob pena de cometimento do crime de perjúrio. Sendo, ao final do procedimento, a ele auferidas as medidas protetivas contra represália.

Esse tipo de acordo faz total sentido quando da implementação de uma política de recompensa, mas para efeitos de uma política de proteção são totalmente dispensáveis, porque as medidas são decorrentes do regime jurídico administrativo da Lei nº 13 608/2018: a auto-executoriedade aqui é primaz, sem necessitar de um acordo para mediá-la.

Conclusão
Portanto, concluímos que a proteção conferida pelos institutos do anonimato e confidencialidade está bem conduzida em São Paulo, com as nuances evidenciadas neste artigo. Contudo, o desenho da política antirretaliatória necessita ser revisado para aprimoramento da regulamentação nesse ponto.


[1] Incentivos ao Whistleblowing – 2022, Daniel Ribeiro Barcelos (Autor)

Autores

  • é auditor federal de Finanças e Controle da Controladoria Geral da União (CGU) desde 2006, graduado em Administração Pública pela Escola de Governo de Minas Gerais (2001) e Direito pela UFMG (2004), doutorando (2023-2025) e mestre (2019) em Direito de Estado pela Universidade de São Paulo, palestrante no XXI Congreso Internacional do Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo (Clad) em 2016 (Chile), na IACC International Anti-Corruption Conference de 2020 (Coréia do Sul) e no Seminário de Ouvidorias, em novembro de 2023 (São Paulo).

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