Restrição do cálculo de JCP sobre a reserva de incentivos integralizada ao capital social
24 de dezembro de 2024, 17h13
Este texto tem como objetivo expor algumas breves reflexões a respeito da restrição imposta pela Instrução Normativa RFB nº 2.201/2024, que vedou o cálculo dos Juros sobre o Capital Próprio (JCP) sobre a parcela decorrente da reserva de incentivos fiscais que foi destinada à integralização do capital social.
Isso porque, dentre as diversas alterações no cálculo do JCP promovidas pela Lei nº 14.789/2023, destaca-se que o artigo 18 da referida lei inseriu ao § 8º do artigo 9º da Lei nº 9.249/1995 — que trata taxativamente das contas do patrimônio líquido que farão parte do cálculo do JCP – o inciso III, que excetua do cálculo e da dedução do JCP a conta de reserva de incentivo fiscal de que trata o artigo 195-A da Lei nº 6.404/1976.
Por sua vez, a Receita Federal do Brasil (RFB), por meio da Instrução Normativa RFB nº 2.201/2024, indo além do que dispõe a previsão taxativa da nova redação da Lei nº 9.249/1995, tratou de regulamentar a matéria prevista na lei, dispondo que não será contabilizado no cálculo do JCP as reservas de incentivo fiscal, “inclusive as parcelas que tiverem sido destinadas ao capital social e à reserva de capital”.
Veja-se, abaixo, a comparação entre o texto legal e o ato infralegal:
Lei nº 9.249/1995 (com alterações da Lei nº 14.789/2024)
“Art. 9º A pessoa jurídica poderá deduzir, para efeitos da apuração do lucro real, os juros pagos ou creditados individualizadamente a titular, sócios ou acionistas, a título de remuneração do capital próprio, calculados sobre as contas do patrimônio líquido e limitados à variação, pro rata dia, da Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP. (…)
§8º. Para fins de cálculo da remuneração prevista neste artigo, serão consideradas exclusivamente as seguintes contas do patrimônio líquido: (…)
III – reservas de lucros, exceto a reserva de incentivo fiscal de que trata o art. 195-A da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976;”
IN RFB nº 1.700/2017 (com alterações da IN RFB nº 2.201/2024)
“Art. 75. Para efeitos de apuração do lucro real e do resultado ajustado a pessoa jurídica poderá deduzir os juros sobre o capital próprio pagos ou creditados, individualizadamente, ao titular, aos sócios ou aos acionistas, limitados à variação, pro rata die, da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) e calculados, exclusivamente, sobre as seguintes contas do patrimônio líquido: (…)
III – reservas de lucros, exceto a reserva de incentivo fiscal de que trata o art. 195-A da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976; (…)
V – a conta de reserva de lucros de incentivo fiscal prevista no inciso III do caput é composta pela destinação da parcela do lucro líquido decorrente de doações ou subvenções governamentais para investimentos, nos termos da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, inclusive as parcelas que tiverem sido destinadas ao capital social e à reserva de capital;”
Como se percebe, o intento da RFB é claro em não apenas excluir a reserva de incentivos fiscais do cálculo do JCP, mas também “selar” essa reserva para que nem mesmo quando esta venha a ser integralizada ao capital social da empresa – virando o próprio capital social – possa ser contabilizada nessa remuneração do capital (perspectiva do acionista) e despesa dedutível (perspectiva da entidade), em claro descompasso com a previsão do texto legal.
Dado o contexto de clara tentativa por parte da RFB de reduzir o montante calculado a título de JCP, é importante rememorar a natureza do instituto, bem como destacar as implicações jurídico-contábeis da integralização da reserva de incentivos fiscais, para que, ao fim, seja examinada a potencial ilegalidade da medida adotada pela RFB.
Histórico e Finalidade dos Juros sobre o Capital Próprio
Como se sabe, os juros sobre o capital próprio foram instituídos no Brasil com a finalidade de reduzir a política pró-endividamento (caixa por meio de empréstimos) e incentivar o aporte de capital de investimento nas empresas [1]. Isso fica claro quando se analisa o Projeto de Lei nº 913/1995 [2], origem da Lei nº 9.249/1995, que, na exposição de motivos, expõe o contexto e o objetivo almejado pela remuneração do capital de “provocar um incremento das aplicações produtivas nas empresas brasileiras, capacitando-as a elevar o nível de investimentos, sem endividamento, com evidentes vantagens no que se refere à geração de empregados e ao crescimento sustentado da economia”.

Trata-se de instituto que permite que as pessoas jurídicas remunerem os sócios ou acionistas com base em suas contas do patrimônio líquido, composto pelo capital social, reservas de capital, ajustes de avaliação patrimonial, reservas de lucros, ações em tesouraria e prejuízos acumulados [3], aplicando a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) como referência do seu cálculo.
Em razão da natureza híbrida do JCP [4], o resultado dessa equação (PL*TJLP) proporcionará, ao mesmo tempo, uma despesa dedutível na apuração do IRPJ e CSL da entidade (soma de 34%) e uma remuneração ao acionista da entidade com tributação exclusiva na fonte de 15%, representando uma forte economia tributária para as empresas.
Ademais, o JCP é um instituto que colocou a relevante e necessária paridade entre (1) a remuneração do capital próprio (que antes era remunerado apenas através do dividendo, que é indedutível para fins de IRPJ e CSL) e o (2) capital oneroso (endividamento por empréstimos).
A título de comparação, veja-se o tratamento tributário das duas formas de captação de recursos:
– Os empréstimos de terceiros (mútuo financeiro, art. 586 do Código Civil):
Mutuária PJ: despesa dedutível na apuração do IRPJ e da CSL (soma de 34%);
Mutuante PJ: tributação de IOF-crédito, PIS, Cofins e IRRF.
– O tratamento da remuneração do aporte de capital próprio:
Empresa: despesa dedutível na apuração do IRPJ e da CSL (soma de 34%);
Sócio: remuneração com tributação exclusiva de IRRF.
Esse tratamento tributário trouxe neutralidade e igualdade entre a captação de recursos através de aporte de capital e empréstimos com bancos, permitindo à empresa optar pelo instrumento do JCP, já que ambas as despesas são dedutíveis, em vez de recorrer à empréstimos para alavancar suas atividades.
Destaca-se, por fim, que a dedutibilidade e remuneração via JCP está condicionada a dois limites principais (ambos vinculados ao capital), conforme o art. 9, § 1º, da Lei nº 9.249/1995:
– 50% do lucro líquido do exercícioantes da dedução dos JCP e da provisão para IRPJ e CSL;
– 50% dos lucros acumulados e reservas de lucros, prevalecendo o maior valor.
Nas palavras do ministro Francisco Falcão, no paradigmático REsp nº 1.086.752/PR, “ao contrário dos dividendos, os JCP dizem respeito ao patrimônio líquido da empresa, o que permite que sejam creditados de acordo com os lucros e reservas acumulados (…) sendo caracterizados os JCP como despesas financeiras” [5].
Nessa perspectiva, sendo um importante elemento contábil e societário, o patrimônio líquido reflete os valores pertencentes aos sócios ou acionistas, sendo a base fundamental para o cálculo do JCP, bem como para preservar a finalidade do instituto.
Como veremos posteriormente, essa estrutura do capital a ser remunerado possui um conteúdo e um regime jurídico que deve ser preservado para fins de cálculo do JCP, sob pena de esvaziamento dessa importante ferramenta.
Desse modo, o JCP desempenha um papel essencial no equilíbrio entre a tributação e o estímulo ao fortalecimento das empresas por meio do aporte de capital próprio, reduzindo a dependência de financiamentos via endividamento. Logo, a sua finalidade deve ser sempre lembrada e assegurada: remunerar o risco decorrente desse aporte de capital na pessoa jurídica, promover a manutenção dos investimentos nas empresas e reduzir a política pró-endividamento.
– Breves comentários acerca da reserva de incentivos e a sua possível destinação ao capital social
No que diz respeito à reserva de incentivos fiscais, sendo uma espécie do gênero reserva de lucros, essa é uma conta contábil facultativa destinada a assegurar a parcela do lucro líquido decorrente de doações ou subvenções governamentais recebidas pela entidade dos mais variados entes públicos, nos termos do artigo 195-A da Lei nº 6.404/1976.
Com o processo de convergência do Brasil aos padrões internacionais de contabilidade IFRS/IASB, a Lei n° 11.638/2007 revogou a alínea “d” do § 1º do artigo 182 da Lei nº 6.404/1976, que estabelecia que as contas de doações e as subvenções governamentais deveriam ser contabilizadas como reserva de capital. Em seu lugar, instituiu o artigo 195-A, que determina que, após serem contabilizadas no resultado do exercício, tais doações e subvenções podem ser creditadas em conta de reserva de incentivos fiscais. Dessa forma, em que pese seja facultativa a constituição dessa reserva, a lei societária a destina a incrementar a preservação da integridade do capital social e da solvabilidade da entidade [6].
Essa reserva de incentivos, basicamente, pode ser destinada para (1) absorver prejuízos ou (2) ser incorporada ao capital social da entidade, nos termos do artigo 169 da Lei nº 6.404/1976.
Daí surge a controvérsia analisada no presente artigo.
Isso porque, quando destinada à integralização do capital social da entidade, não há uma mera transição entre contas contábeis, mas sim uma mutação do regime jurídico de tais valores, pois passam a compor o núcleo do capital social, que representa a garantia do funcionamento da entidade em sua relação com credores e terceiros no mercado [7].
Ou seja, enquanto a reserva de incentivos, de um lado, se trata de uma conta contábil facultativa e que tem como finalidade registrar as subvenções governamentais recebidas pela entidade e, subsidiariamente, promover maior proteção ao capital social, do outro lado, o próprio capital social é uma estrutura rígida que desempenha a função de garantir a solvabilidade perante credores e terceiros.
Nesse sentido, após a capitalização da reserva de incentivos fiscais, não há que se falar em tratamento jurídico como “reserva de lucros”, mas sim como capital social, pois todo o montante que antes estava na conta de resultado e foi creditado em conta de reserva passa a ser integralizado, exclusivamente, como capital social da entidade – passando a sofrer os efeitos do seu rígido regime societário (de garantia) e tributário (para fins de cálculo do JCP).
Tudo para dizer que não há como estabelecer um tratamento jurídico semelhante ao da reserva de incentivos fiscais à parcela do capital social (que antes era reserva de lucros), pois não foi essa a intenção do legislador tributário.
– Ilegalidade da Instrução Normativa nº 2.201/2024:
Como consequência, a Instrução Normativa nº 2.201/2024, ao excluir do cálculo do JCP até mesmo a parcela da reserva de incentivos fiscais que foi integralizada ao capital social da empresa (uma das destinações possíveis dessa conta contábil), desborda da lei tributária e societária por três principais motivos:
Primeiro, a Instrução Normativa 2.201/2024 afronta o princípio da legalidade, uma vez que o ato infralegal da RFB cria uma restrição ao cálculo do JCP não prevista em lei e acaba, portanto, majorando a carga tributária, sem qualquer fundamento de validade para regulamentar tal disposição através de uma instrução normativa [8].
Segundo, quando capitalizada, a reserva de incentivos fiscais se torna parcela intrínseca do capital social das pessoas jurídicas. Assim, não poderá uma mera instrução normativa violar o regime jurídico aplicável ao capital social, impedindo o cálculo do JCP sobre tal montante.
Terceiro, a não incidência do IRPJ e da CSL sobre as reservas de incentivo não autoriza a conclusão de que, quando capitalizada, a conta não poderia integrar o cálculo do JCP. Isto é, ainda que se diga que a intenção do legislador foi “parametrizar” os montantes que não são tributáveis a título de IRPJ e CSL (dada a controvérsia das subvenções) e os valores que compõem o cálculo do JCP, fato é que a lei não pressupõe a tributação das contas do patrimônio líquido sobre as quais se dá o cálculo do JCP.
Considerações finais
Assim, a restrição imposta pela RFB pode acarretar impactos significativos para as empresas que utilizam o JCP como instrumento em suas operações regulares. Como consequência, a medida desestimula o propósito de fortalecimento das estruturas de investimento, via capital, nas empresas brasileiras.
Nesse passo, a análise das limitações impostas pela Instrução Normativa nº 2.201/2024 revela a necessidade de um olhar atento à controvérsia, a fim de evitar autuações e litígios, bem como promover um ambiente jurídico mais estável e propício ao desenvolvimento empresarial.
[1] LIMA, Daniel Serra; LESSA, Donovan Mazza; PEREIRA, Roberto Codorniz Leite. Juros sobre o Capital Próprio no Direito Brasileiro e a Experiência Europeia no Combate ao Viés Pró-endividamento.
Revista Direito Tributário Atual n. 54. ano 41. p. 97-121. São Paulo: IBDT, 2o quadrimestre 2023.
[2] Projeto de Lei nº 913/1995, que originou a Lei nº 9.249/1995. Exposição de Motivos – Item 11.
[3] Nos termos do art. 178 da Lei nº 6.404/1976, com as alterações das Leis nº 11.638/2007 e nº 11.941/2009.
[4] SCHOUERI, Luis Eduardo. Juros sobre Capital Próprio: Natureza Jurídica e Forma de Apuração diante da “Nova Contabilidade”. Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). 3° volume 1 coordenadores Roberto Quiroga Mosquera, Alexsandro Broedel Lopes. São Paulo: Dialética. 2012. p. 169-193.
[5] REsp nº 1.086.752/PR, relator Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 17/2/2009, DJe de 11/3/2009.
[6] EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. Volume III. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 58-61.
[7] LAMY FILHO, Alfredo; BULHÕES PEDREIRA, José Luís. A lei das S.A.: (pressupostos, elaboração, aplicação). Rio de Janeiro: Renovar, 1996. p. 89.
[8] SCHOUERI, Luís Eduardo; FERREIRA, Diogo Olm; LUZ, Victor Lyra Guimarães. Legalidade tributária e o Supremo Tribunal Federal: uma análise sob a ótica do RE n. 1.043.313 e da ADI n. 5.277. – São Paulo, SP: IBDT, 2021. p. 32 e 83-87.
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