Nova LIA veda expressamente condenação por danos morais coletivos
31 de agosto de 2024, 9h21
Com efeito, até o advento da Lei nº 14.230/2021, que implementou profundas mudanças na Lei de Improbidade Administrativa nº 8.429/1992, o Superior Tribunal de Justiça possuía o firme entendimento pela possibilidade de condenação, em sede de ação de improbidade, de danos morais coletivos (v.g., REsp 1.221.756/RJ, relator ministro Massami Uyeda, j. 2/2/2012, DJ 10/2/2012).
Daí a opção do legislador ao “reformar” a LIA de por fim à discussão acerca do cabimento ou não do dano moral coletivo, ao especificar no caput do artigo 12 que o dano a ser reparado (ou seja, indenizável) é somente aquele de natureza patrimonial. Vide, no ponto, a redação do mencionado dispositivo: Independentemente do ressarcimento integral do dano patrimonial, se efetivo […]”. Note: dano patrimonial!!
Como se nota, cuida-se de alteração sutil, mas de extrema relevância, já que afasta alguns entendimentos no âmbito do STJ de ser possível a recomposição de dano extrapatrimonial em sede de ação de improbidade administrativa (Jurisprudência em Teses nº 186).
Em outras palavras: a lei — de forma categórica — excluiu do sistema de combate à improbidade qualquer sanção compensatória que tenha por objeto danos extrapatrimoniais sofridos pela entidade legalmente tutelada; havendo, portanto, a superação (esse é o termo!) da jurisprudência do STJ que entendia pela possibilidade de dano moral coletivo em sede de ação de improbidade administrativa. Tal compreensão, inclusive, tem sido encampada por doutrina de ponta:
“[A] norma reformadora introduziu alteração sutil, mas relevante, ao especificar que o dever de ressarcir o erário pela prática de ato ímprobo está relacionado ao dano patrimonial, o que afastaria na visão do legislador o dever de recompor no âmbito da ação de improbidade administrativa o dano extrapatrimonial.
A Lei nº 14.230/2021 não contemplou a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que admitia, em casos específicos, a possibilidade de configuração de dano moral coletivo decorrente de ato de improbidade administrativa, a fim de reconhecer a necessidade do integral ressarcimento do dano causado pelo ato ímprobo, inclusive os danos não patrimoniais” (Lei de improbidade administrativa reformada. Coordenação Augusto Alves Dal Pozzo, José Roberto Pimenta de Oliveira. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, págs. 321/322 – grifo do articulista)
“[…] com a edição da Lei nº 14.230/2021, o art. 12, ‘caput’, da LIA restringiu, no âmbito do sistema de responsabilização por ato de improbidade administrativa, o ressarcimento ao erário ao dano patrimonial, excluindo, por conseguinte, o ressarcimento do dano extrapatrimonial, em sede de ação por ato de improbidade administrativa. Logo, não se mostra mais viável a condenação em dano moral coletivo, no âmbito da ação por ato de improbidade administrativa” (TORRES, Ronny Charles Lopes de.; HOLANDA Jr. André Jackson de. Lei de Improbidade Administrativa Comentada. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: JusPodivm, 2024, p. 471 – grifo do articulista).
No ponto, pertinente transcrever a sempre lúcida advertência de Carlos Maximiliano [1], para quem:
“Cumpre evitar, não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais este se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto ideias apenas existentes no próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por ojerizas e pendores, entusiasmos e preconceitos. A interpretação deve ser objetiva, desapaixonada, equilibrada, às vezes audaciosa, porém não revolucionária, aguda, mas sempre atenta respeitadora da lei” (grifo do articulista).
Portanto, se na redação anterior LIA tinha-se margem de interpretação para contemplar na pena de ressarcimento integral do dano também a indenização pelo dano moral coletivo, desde que presentes os elementos caracterizadores do abalo social (situações excepcionais na esteira do precedente firmado a partir do REsp 1.221.756/RJ), a partir da novel legislação restou vedada/bloqueada essa extensão, pois a atual redação do caput do artigo 12 restringiu a reparação ao dano moral patrimonial e, ainda, condicionou a prova de sua efetividade, afastando a margem para contemplação do dano moral coletivo, não tendo cabida ampliações interpretativas e outras técnicas de expansão à margem da expressa e certa manifestação do legislador.
Limitação e equilíbrio entre legislador e Judiciário
De fato, se o próprio legislador no caput do artigo 12 da LIA restringiu a reparação apenas ao dano patrimonial, o Poder Judiciário não pode — inclusive em manifesto prejuízo ao destinatário da norma — alargar o campo de aplicação dela (da norma), sob pena de usurpação das competência do Poder Legislativo, tendo em vista que a expressão “dano patrimonial” não permite a extração válida do sentido mais amplo de “dano patrimonial e extrapatrimonial (moral)”, pena de violar o princípio da separação dos poderes (artigo 2º da CF).

Citando mais uma vez Carlos Maximiliano, que, mencionando os Estatutos da Universidade de Coimbra, 1772, livro II, título VI, capítulo VI, §13, traz as seguintes advertências [2]:
“Não transcendam os mesmos magistrados e professores os justos e impreteríveis limites das suas faculdades; e não se precipitem no temerário e sacrílego atentado de pretenderem ampliar ou restringir as leis pelos seus particulares e próprios ditames, como se delas pudessem ser árbitros” (grifos do articulista).
Até porque a “diferenciação e limitação entre interpretação, ativismo judicial e inventividade do juiz são realizadas tanto pela Suprema Corte norte-americana quanto pelo Tribunal Constitucional Federal alemão e pelas próprias cortes na França e na Bélgica, sempre no sentido de manter-se o equilíbrio entre o legislador e o judiciário” [3], razão pela qual é que não se pode admitir que o legislador tenha alterado a redação do caput do artigo 12 da LIA, mas a interpretação dele continue a mesma, isso porque o novo merece um olhar novo; não se pode olhar o novo com os olhos no passado. Isso, francamente, não faz sentido algum, até porque o combate à improbidade não pode servir como uma espécie de pé de cabra hermenêutico capaz — bem por isso — de justificar sacrifícios aos direitos dos indivíduos [4].
Possibilidades excluídas
De se ver, bem a propósito, que a LIA busca resguardar é o patrimônio público e social “[…] dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como da administração direta e indireta, no âmbito da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal” (§5º do artigo 1º), o que exclui de plano a possibilidade de reparação de danos causados não às mencionadas pessoas jurídicas tuteladas, mas à coletividade. Nesse sentido, o e. TRF-4 já sufragou o entendimento segundo o qual,
“A ação de improbidade administrativa não comporta sanção de reparação do dano extrapatrimonial coletivo. Sem adentrar a discussão da possibilidade jurídica ou não da indenização em dano coletivo, o fato é que na improbidade administrativa as penas são exaustivamente previstas na lei, especificamente no art. 12 da Lei 8.429/92, dentre as quais não há previsão para dano moral coletivo.” (TRF-4, AC 5001696-43.2015.404.7103, rel. Fernando Quadros da Silva, 3ª Turma, juntados aos autos em 9/3/2016 – grifou-se.) [5]
Se não bastasse a restrição à reparação apenas ao dano patrimonial de que cuida o caput do artigo 12 da LIA, o artigo 17-D da mesma Lei veda expressamente a discussão de direitos e interesses difusos coletivos e individuais homogêneos no âmbito da improbidade, razão pela qual — também por este dispositivo — há o impedimento de se condenar alguém a reparação por danos morais coletivos no curso da ação de improbidade [6]. É ver, é ler o que diz o citado dispositivo legal:
“Art. 17-D. A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos” (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021 – grifos do articulista).
Considerações finais
Como se nota, nenhum dos dispositivos da Lei 8.429/92 prevê a possibilidade de ressarcimento por dano moral coletivo, diversamente dos outros diplomas que preveem tal possibilidade. Difícil, igualmente, sustentar a ilação do que as demais legislações podem, de forma suplementar, preencher essa lacuna normativa, pois a Lei de Improbidade é posterior à maioria delas e não previu tal possibilidade, nem ao menos deixou margem para a defesa de semelhante concretização normativa [7].
Em conclusão, afirma-se que a redação do caput do artigo 12 c/c o artigo 17-D da LIA vedam expressamente a condenação em dano moral coletivo em sede de ação de improbidade; havendo, portanto, a superação do entendimento até então existente e prevalecente no âmbito do STJ pela possibilidade de tal proceder.
[1] Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 106.
[2] Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 106.
[3] Trecho da decisão monocrática proferida pelo ministro ALEXANDRE DE MORAES, do STF, em 30/08/2023, nos autos do RE 1.447.374/RS.
[4] A Nova Improbidade Administrativa/Bernardo Strobel Guimarães… [et al]. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 29.
[5] MARINO PAZZAGLINI FILHO (Lei de Improbidade Administrativa comentada, p. 44) também sustenta que a LIA não lastreia a indenização do dano moral.
[6] Esse também é o pensamento do Ministro OG FERNANDES em sede doutrinária: FERNANDES, Og… [et. al.]. Lei de Improbidade Administrativa – Principais alterações da Lei nº 14.230/2021 e o impacto na jurisprudência do STJ. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2024, p. 192/193.
[7] AGRA, Walber Moura. Comentários sobre a lei de Improbidade Administrativa. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 166.
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