Opinião

O conflito entre o interesse do autor e a função social da obra na lei brasileira

Autor

  • Vicky Buentes

    é graduada em Direito pelo Ibmec-RJ com LLM em Direito Inovação e Tecnologia pela FGV Direito Rio especialista em Direito do Entretenimento pelo Ceped/Uerj e advogada.

18 de abril de 2024, 13h18

Ao tratar do direito do autor a política legislativa enfrenta um dilema: a ponderação entre a tutela dos interesses dos autores — morais e patrimoniais — que justificadamente precisam da proteção de suas obras e controle da remuneração oriunda destas, inclusive para que haja o incentivo de continuar a criar, e a tutela dos interesses da sociedade, que tem direito ao acesso à cultura. Para somar nesta equação, inserimos um contexto de mundo cada vez mais conectado, cuja disseminação de criações nas suas diversas formas beira ao incontrolável.

Considerando a inspiração europeia que permeia a nossa Lei de Direitos Autorais, sabe-se que a vontade do autor é praticamente soberana, porém seria irrazoável permitir que seja encarada como um direito absoluto, haja vista que a obra ainda deverá observar o cumprimento de sua função social, pois como veremos no presente artigo, a legislação autoral brasileira não parte de uma perspectiva puramente econômica.

Tutela autoral sob a perspectiva do direito de autor: sistema brasileiro

A tutela do direito de autor na legislação brasileira parte de um prestígio que não se vislumbra em diversos sistemas jurídicos ao redor do mundo: está literalmente prevista em seu texto constitucional.

Ao definir os direitos fundamentais, a Constituição brasileira de 1988 expressamente dispõe, em seu artigo 5º, inciso XXVII, o direito exclusivo do autor de utilizar, publicar e reproduzir suas obras, assim como assegura, no inciso seguinte, a proteção às participações individuais em obras coletivas e o direito de fiscalização do proveito econômico das obras pelos seus criadores.

Sob essa perspectiva constitucional, surgiu a Lei nº 9.610/98, responsável por regular a matéria tocante aos direitos autorais na legislação brasileira, inspirado pelo sistema do droit d’auteur, oriundo do contexto histórico da Revolução Francesa, responsável por centralizar a proteção legal da obra intelectual na figura do autor.

A tradição europeia possui como princípio central a garantia de propriedade exclusiva da obra ao autor, mediante a detenção de direitos morais e patrimoniais sobre a obra protegida, sendo estes oponíveis a todos. Vislumbramos aqui, portanto, uma proteção legal que se torna simultânea à criação de uma obra inédita.

Considerando a mens legis da nossa atual Lei de Direitos Autorais, nota-se maior inflexibilidade no que tange às limitações ao direito autoral, sendo estas previstas em um rol taxativo de condutas, elencado no artigo 46 da Lei nº 9.610/98.

A doutrina clássica entende, por conseguinte, que caso a conduta do agente não se coadune com as permissões expressamente previstas no texto legal, o uso da obra não será admitido sem a autorização do autor. Neste mesmo sentido dispõe a Convenção de Berna, da qual o Brasil é signatário, que estabelece em seu artigo 9º o direito exclusivo dos autores das obras literárias e artísticas de autorizar a reprodução destas, cabendo a legislação de cada país permitir — ou não — a reprodução das obras em hipóteses especiais, mediante a regulamentação do chamado “uso justo” de obras alheias.

Ao prever as hipóteses em que excepciona a si mesma e permitir cenários em que a obra protegida possa ser utilizada independentemente de autorização do autor, a Lei de Direitos Autorais busca tutelar, além do interesse do autor da obra, outro interesse legítimo que o legislador deve estar atento: o objetivo de cumprir com a função social da obra.

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Ocorre que a interpretação restritiva oferecida pela Lei de Direitos Autorais, ao determinar as hipóteses em que o uso das obras alheias é possível independentemente de autorização de seu autor, não acompanha os problemas decorrentes da reprodução das obras por terceiros independentemente da vontade de seus autores, que na prática torna-se mais frequente considerando o contexto de mundo cada vez mais conectado.

Verifica-se um conflito, portanto, entre o excesso de proteção às obras — assegurando os direitos patrimoniais e morais do autor — e o cumprimento da função social destas a fim de garantir o interesse público de acesso às obras. Neste diapasão, vale elencar algumas reflexões promovidas pelo jurista Sérgio Branco. Vejamos:

Será possível, nos dias de hoje, sob uma Constituição democrática, decididamente a favor do desenvolvimento tecnológico, do acesso à cultura, da mais ampla liberdade de expressão, e da inclusão social, defender uma lei de direito autoral que dificulta o acesso à cultura, o acesso à educação, o desenvolvimento tecnológico, a liberdade de expressão e a inclusão? Quais valores estão invertidos, e por quem?

Será que somos tão pobres em invenção jurídico-institucional que não somos capazes de imaginar novas compensações ao direito autoral sem que tenhamos de pagar o preço de processar o aluno que tirou fotocópias de um livro para estudar; livro cujo preço calculado em padrões internacionais é inacessível a eles? Será possível que não podemos conciliar um novo arcabouço lógico-dogmático com um direito autoral mais democrático? (BRANCO, 2007) [1].

Nota-se, portanto, que o direito de autor no contexto do constitucionalismo contemporâneo depara-se com a necessidade de certas adaptações, principalmente para solucionar o conflito identificado entre o interesse público de acesso à obra e o interesse particular do autor de tutela destas.

Uma das soluções apresentadas para a aparente desarmonia que o presente capítulo busca tratar, reside na chamada Creative Commons, de iniciativa do professor Lawrence Lessig [2], da Universidade de Stanford, já incorporada pelo Brasil, cujo intuito é a “disponibilização, a nível mundial, de obras intelectuais de acordo com licenças públicas que expressam a vontade do autor” [3], que ao concluir que a tutela oferecida a si é demasiada no caso concreto, deseja a diminuição desta, de modo a renunciar certos direitos autorais ainda que mantenha outros, na medida que entenda necessário.

Analisaremos, no capítulo seguinte, se o fair use oriundo do sistema norte-americano se enquadraria como potencial solução ao problema ora discutido, ou ao menos se poderia ser considerado como instituto aplicável à legislação brasileira de direitos autorais.

A (in)aplicabilidade do fair use na legislação autoral brasileira

Diferentemente do que notamos ao analisar a legislação brasileira de direitos autorais, o sistema norte-americano adota o sistema de copyright, que ao contrário do droit d’auteur, consiste em um direito econômico – e não um direito fundamental como determina a Constituição.

A perspectiva puramente patrimonial desse sistema fez com que os Estados Unidos só pudessem aderir à Convenção de Berna após aceitar normas como as referentes ao direito moral do autor, ainda que com proteção mais reduzida quando comparado aos países que adotam o direito de autor.

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É importante destacar, neste sentido, que em que pese a Convenção de Berna seja adotada por países influenciados por ambos os sistemas, cada ordenamento absorveu suas disposições de forma distinta. Aqui, podemos traçar um panorama entre a doutrina norte-americana do fair use e a “regra dos três passos” prevista no art. 9º, item 2, da Convenção.

Utilizando-se da referida regra, é permitida a reprodução de obras literárias e artísticas protegidas, desde que presentes os três requisitos cumulativos de (1) se tratar de casos especiais; (2) não prejudicar a exploração comercial da obra; e, por fim, (3) não ferir os interesses do autor. Eduardo Magrani sugere, neste ponto, que ao condicionar a limitação do direito exclusivo do autor a certos casos especiais, a Convenção impede a edição de limitações amplas e genéricas, induzindo que essas sejam definidas e restritas [4].

Em que pese a regra dos três passos tente impor essa condicionante, há países que entendem a possibilidade de se estabelecer limitações baseadas em princípios gerais, desde que as hipóteses de incidência sejam mínima e razoavelmente previstas. É o que ocorre com o sistema norte-americano mediante a instituição do fair use. O instituto — incorporado ao Copyright Act em 1976 — permite “o uso limitado de material protegido por direitos autorais sem que seja necessária prévia autorização dos titulares dos direitos autorais, desde que o uso seja considerado justo” (MAGRANI, 2014) [5].

Para o uso ser enquadrado como justo, quatro fatores são determinantes, quais sejam: (1) o propósito e a natureza do uso; (2) a natureza da obra utilizada; (3) a quantidade e qualidade da porção utilizada em comparação com o todo da obra; e, (4) as consequências do uso no mercado e seu impacto no valor da obra original.

No que tange ao primeiro fator, é importante ressaltar que ainda que o uso comercial tenda a ser visto como algo negativo, a característica, por si só, não é capaz de descaracterizar o uso justo. O segundo fator é responsável por analisar se a obra protegida possui natureza fática ou imaginativa, além de verificar o ineditismo da obra e eventual interesse público nesta.

O terceiro fator, por sua vez, considera a proporção do tamanho da nova obra e a relevância do trecho protegido utilizado, de modo a determinar a importância deste no contexto geral da nova obra. Por fim, o quarto fator — considerado pela jurisprudência norte-americana como mais influente — analisa o impacto da utilização sobre o valor potencial da obra utilizada, protegendo, mais uma vez, o direito econômico pertencente ao autor da obra original.

No Brasil, o que poderia assemelhar-se ao fair use seria a utilização dos chamados “pequenos trechos”, previstos no artigo 46, II, da Lei de Direitos Autorais, que prevê genericamente não constituir ofensa aos direitos autorais a “reprodução, em um só exemplar, de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro”. No entanto, esbarramos na inaplicabilidade prática do dispositivo legal, que falhou ao não definir mediante critérios concretos no que consistiriam os “pequenos trechos”.

Sob essa perspectiva, o fair use norte-americano mostra-se diferente da opção eleita pelo sistema brasileiro, pois foram estabelecidos critérios gerais a partir dos quais se afere se tal uso viola ou não direitos autorais a partir de uma análise do caso concreto, ainda que estes não sejam tão claros. A nossa Lei de Direitos Autorais, por sua vez, adota menor maleabilidade nesta temática ao sequer determinar princípios gerais para situações do uso justo, optando por eleger hipóteses específicas em rol taxativo.

Ainda sobre o fair use, é interessante destacar a sua essência puramente patrimonialista, haja vista que seus fatores mais determinantes são direcionados para a análise do impacto econômico gerado pelo uso. Sobre o tema, Eduardo Magrani explica:

O direito de cópia ainda é tido como a essência do copyright determinando o escopo tanto do monopólio do direito de cópia quanto do próprio fair use. O forte vínculo com a noção de “direito de cópia” dificulta uma interpretação do fair use que ultrapasse a análise puramente econômica e particularmente a filosofia norte-americana de copyright law que traduz-se na proteção dos direitos econômicos do titular do direito de cópia, perante o mercado econômico. Esta natureza evidencia o distanciamento existente entre a tradição do copyright e a tradição droit d’auteur a partir da qual foi erguido o sistema brasileiro de limitações (MAGRANI, 2014).

Partindo da concepção da natureza puramente econômica do fair use, nota-se a incompatibilidade com o sistema brasileiro que possui como um dos pilares não apenas o direito patrimonial do autor, mas também o seu direito moral sobre a obra criada. Neste sentido, podemos concluir que o sistema de direitos autorais brasileiro se distancia da tradição do fair use, que se adotado aqui desequilibraria por completo a harmonia do sistema de limitações eleito pela legislação brasileira.

Conclusão

Notamos, portanto, que as limitações e exceções existentes na Lei de Direitos Autorais não são suficientes para solucionar os conflitos oriundos da contraposição identificada entre o interesse individual do autor e o interesse coletivo da sociedade. Deve-se ponderar, ao analisar o contexto de uma obra, se o direito de autor refletido nela não está coibindo por completo o desenvolvimento cultural e tecnológico de uma coletividade.

Do mesmo modo, seria completamente incabível permitir o uso livre e irrestrito de obras alheias na elaboração de novas obras, haja vista que os interesses do autor precisam estar devidamente tutelados, até mesmo para que haja o incentivo da criação contínua e consequente fomento da cultura nacional. Ao mesmo tempo, é necessário levar em consideração o contexto de desenvolvimento tecnológico que acaba por permitir a inevitável disseminação de obras intelectuais à velocidade da luz na era digital.

Conclui-se, assim, pela necessidade de se buscar soluções compatíveis ao nosso ordenamento jurídico e com o direito de autor, que se mostra distante do instituto do fair use, porém logrou êxito ao incorporar para si a iniciativa das Creative Commons, que cumpre o seu papel ao ampliar a disseminação da cultura e do conhecimento à coletividade, sem ultrapassar os direitos do autor da obra, que, sem sombra de dúvidas, merece tutela.

 


[1] BRANCO, Sérgio Vieira. Direitos Autorais na Internet e o Uso de Obras Alheias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 16.

[2] LESSIG, Lawrence. The Future of Ideas. New York: Random House, 2001.

[3] WISNIEWSKI, Alice; BOLESINA, Iuri. O Direito de Autor no Constitucionalismo Contemporâneo: Uma análise acerca de sua função social diante do copyright e copyleft e outras licenças. Anais do VIII Congresso de Direito de Autor e Interesse Público (2014: Curitiba, PR). p. 226.

[4] MAGRANI, Eduardo. As limitações no direito norte-americano e a inaplicabilidade do fair use ao contexto brasileiro. Anais do VIII Congresso de Direito de Autor e Interesse Público (2014: Curitiba, PR). p. 96.

[5] MAGRANI, Eduardo. As limitações no direito norte-americano e a inaplicabilidade do fair use ao contexto brasileiro. Anais do VIII Congresso de Direito de Autor e Interesse Público (2014: Curitiba, PR). p. 96.

Autores

  • é graduada em Direito pelo Ibmec-RJ, com LLM em Direito, Inovação e Tecnologia pela FGV Direito Rio, especialista em Direito do Entretenimento pelo Ceped/Uerj e advogada.

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