Opinião

Enfim, território livre. Lutamos tanto para isso

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29 de setembro de 2023, 12h25

Em artigo publicado aqui na ConJur, intitulado O triste 8 de janeiro no território livre. Não lutamos tanto para isso, defende-se, em apertada síntese, que a atual greve dos alunos e alunas na Faculdade de Direito da USP se assemelharia, por seus atos, ao que se deu no país no dia 8 de janeiro deste ano.

Veja-se que o texto se utiliza de argumento de autoridade jurídica e professoral, o que implica maior responsabilidade e gravidade ao escrito publicado. Afora a falácia dos argumentos, que se demonstrará a seguir, é de se acreditar no pior: ao verificar a existência de atos assemelhados a crimes hoje julgados e alguns já com condenação no Supremo Tribunal Federal, venha o autor encaminhar, na qualidade de autoridade judicial, como se identifica no final do texto, pedidos de providências semelhantes em relação a estudantes que estão no exercício regular de seu direito. Só faltaria tamanho descabimento a se juntar aos já despropositais argumentos do texto.

XI de Agosto
XI de Agosto

Façamos uma análise parte por parte do que foi escrito e se encontra à disposição de qualquer interessado aqui nesta página.

Após relembrar o fatídico 8 de janeiro de 2023 em Brasília, o artigo insiste que os atos que estão a acontecer na greve dos estudantes se assemelhariam àquele episódio, maculando a "nova carta pela democracia" em que, no dia "11 de agosto de 2022, no Território Livre do Largo de São Francisco, foram reafirmados os princípios que há quase 200 anos pautam nossa faculdade". Empossado deste espírito libertador que permeia o discurso (mas não necessariamente as práticas) de muitos naquela Faculdade, sentencia: "A leitura da Carta pela Democracia foi um passo fundamental para salvá-la".

O ato dos alunos, segundo o texto, ao se assemelharem ao 08 de janeiro de 2023, colocaria em risco o espírito democrático que sempre foi a marca do "território livre", como gostam de autoproclamar a Faculdade do Largo de São Francisco. Interessante observar que o "território livre" está sempre pensado na lógica da propriedade privada, conquanto seja espaço público: afinal qual a razão para que, supostamente, professores se sintam "ultrajados" e "ameaçados" ao serem legitimamente barrados de ingressar em local palco de atos de luta por uma universidade pública, gratuita, de qualidade e popular?

Vejam os fatos e a fragilidade em torno da sua alegação. Fatos que, pela gravidade apontada, deveriam ser acompanhados de provas exaurientes — já que, sem eles, não há sequer razão para tomar a sério as alegações que constam do texto.

Os fatos seriam: empilhar cadeiras em piquete, ameaçar professores e alunos que gostariam de ter as suas aulas normalizadas, depredação do patrimônio público e a intransigência na negociação por parte dos grevistas. A consequência seria: estes supostos gestos dos alunos se assemelhariam, tenhamos a coragem de dizer, aos dos vândalos do 08 de janeiro.

Em relação a fatos como ameaças a professores, sequer nos deteremos, já que não difundimos notícias que cremos infundadas (um dos grandes males do nosso país que deu ensejo aos atos de 8 de janeiro). Mas, diga-se de passagem, que sequer é possível, em tese, aferir o grau de suscetibilidade de alguns professores no que se possa chamar de ameaças (que se realmente existiram, deveriam demandar as providências dos que foram individual e diretamente atingidos, para se evitar alegações genéricas e sem o direito de defesa de quem se sentir imputado pela alegação. Até o instante ninguém explicitou em denúncia específica quem teria agido dessa forma).

Em relação à depredação do patrimônio público, trata-se de alegação que não pode ser tomada a sério, até mesmo porque não houve também qualquer medida específica adotada em relação a isso pelas autoridades competentes. De novo, o velho hábito de se falar genericamente das coisas e de se tentar imputar por generalidades às greves uma pecha de manifestações antidemocráticas (o que já é usual na história do Brasil). Afinal, a violência, no "território livre" das Arcadas, é sempre a do(a) outro(a), não a do uso do poder para calar e oprimir quem se atreve a exigir permanência para além de ingresso.

Por outro lado, a chamada intransigência nas transações deve ser tomada a partir do que se considera greve e se realmente é dos grevistas que, efetivamente, emerge alguma irredutibilidade. A greve, por si, já é uma demonstração da intransigência dos responsáveis pelo atendimento das demandas que a impulsionaram.

Repisemos alguns aspectos básicos sobre a democracia.

A greve realizada na faculdade refere-se à permanência estudantil e à contratação de docentes. É a primeira greve realizada após o primeiro ciclo da política de cotas raciais e sociais aprovada na USP em geral e agora em vigor no Largo de São Francisco. Portanto, de todas as greves de estudantes já realizadas na Faculdade, e também já assistimos a muitas e várias delas com piquetes e intervenções muito semelhantes à atual, esta é a primeira greve realizada por corpo discente formado por pessoas negras e pobres, pedindo exatamente que não sejam expelidas da Faculdade, porque não basta o ingresso. O que o autor do texto não deixa claro é que se encontra ao lado daqueles que advogam políticas de permanência ligadas ao mercado (coisas como os tais fundos com caráter financeiro e com elevada participação de interesses privados na formação dos próprios alunos e alunas negras e pobres ou o patrocínio de permanência por outras políticas assistenciais privadas patrocinadas por escritórios de advogados, hoje essencialmente brancos e masculinos nas suas direções).

Sentimos esclarecer que alunas e alunos negros e pobres disseram que não querem esmola, preferindo ser livres a ser controlados por entidades privadas. Entenderam que quem deve patrocinar a permanência é o Estado, por ser a única forma de poderem ter a sua formação marcada pela diversidade (esta palavra tão em voga e que, no fundo, é desprezada quando os interesses privados entram em campo).

A greve realizada é constitucional e não foi feita por bando de "vândalos". Grevista não é vândalo. Grevista tem autorização constitucional e os que sentissem que mereceriam ter preservado o seu direito individual de ir e vir deveriam ter participado da Assembleia de alunos(as) e de professores(as) que deliberaram a respeito. Se não participaram, não podem agora invocar a ordem jurídica para legitimar a atitude antidemocrática e violenta dos fura-greves. Não há, pois, como se sentir no direito abstrato de querer ingressar no tal "território livre", sendo que, no fundo, a intenção é afrontar a greve e os grevistas e, com isto, até força-los a uma ação de defesa do seu direito de manter a paralisação das atividades definida em deliberação coletiva, para, depois, chamá-los de "vândalos" ou termos que o valham.

Aliás, falemos um pouco sobre o tal "território livre".

Quando este território livre foi invadido pela polícia que expulsou, faz alguns anos, gente dos movimentos sociais que lutava pela Educação Pública, não nos lembramos de nenhuma manifestação como a exposta agora pelo autor do artigo. Pois bem, foi a partir daquele momento que a sociedade civil organizada conseguiu iniciar a sua vitória para que a greve de hoje, com pautas que a complementam, pudesse existir em concreto. Ela lutavam também pelo ingresso de negros, negras e pobres no território que não era assim tão livre: primeiro, porque não os deixava ingressar, favorecendo alunos e alunas brancos; segundo, porque foram expulsos à força, sem nenhuma manifestação de muitos docentes que, hoje, se sentem "ameaçados", na versão do artigo, e que assim disseram se sentir à época (o curioso é que quando se fala na integração da política afirmativa de inserção racial na universidade todos querem a paternidade da ideia e mesmo a instituição se vangloria da alteração formal havida – mas no que se refere a dar efetividade à política não apenas se calam, como também se voltam contra aqueles que se movem para que isto aconteça).

Em retomada ao título do artigo: realmente muitos dos que invocam o "território livre" das Arcadas não lutaram pelo que está acontecendo hoje na Faculdade de Direito, quem lutou e venceu foram os movimentos sociais. E, certamente, mesmo sem admissão das estruturas e forças reacionárias, estarão comemorando: "Enfim, o território livre. Lutamos tanto para isso!".

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