Opinião

(in)Justiça material em plenário virtual

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25 de setembro de 2023, 6h31

Crescem as dificuldades que a advocacia enfrenta para exercer seu mister. O alvo da vez é a sustentação oral — que, após sofrer o primeiro golpe nos julgamentos de Habeas Corpus, agora enfrenta restrições também nos julgamentos de apelações, recursos, ações de controle concentrado e até mesmo ações penais originárias. Quem mais perde é o jurisdicionado, pois se vê submetido a um processo com contornos mais estreitos do que aqueles vislumbrados pela Constituição.

É bem verdade que há uma enxurrada de recursos — principalmente Habeas Corpus — nos tribunais superiores. Mas também é verdade que o HC é o sintoma de uma doença mais grave: o reiterado descumprimento, por parte dos tribunais estaduais e regionais, da jurisprudência lapidada pelas cortes superiores[1] — mal contra o qual o writ é, justamente, o principal remédio. Ocorre que, como é muito difícil separar o joio do trigo — especialmente considerando o enorme volume de joio e de trigo —, os HCs manejados acabam encontrando quase sempre o mesmo destino: o indeferimento monocrático — o que, por sua vez, obriga o impetrante a manejar recurso (agravo), em busca do tão almejado julgamento colegiado.

A via sacra defensiva pela apreciação colegiada de suas irresignações ganhou um pequeno alento em 2022 — quando o Estatuto da Advocacia, em seu artigo 7º, §2º-B, inciso VI, passou a garantir o direito de sustentação oral nos agravos manejados contra esse tipo de decisão monocrática. Vitória de Pirro, porém: os tribunais logo trataram de estabelecer o exíguo prazo regimental de apenas 5 minutos para sustentação, tempo três vezes menor do que se a sustentação fosse proferida no bojo do remédio constitucional.

E o que é pior: mesmo esses escassos minutos passaram a ser, nos últimos tempos, sonegados à defesa, com o emprego da nova, e cada vez mais comum, prática de inclusão do julgamento desses agravos no chamado plenário virtual —  no qual, para assombro geral, a "sustentação oral" — se é que assim pode ser chamada — deve ser gravada e assíncrona. Alguém assistirá? Não há garantia, mas é possível imaginar, considerando-se o próprio contexto de sobrecarga de trabalho que originou essa bola de neve processual, que não haverá tempo hábil para assistir a todos os vídeos — muito menos com a necessária e recomendável atenção.

E, recentemente, a virtualidade, com todas as suas sombras, parece ter atingido novas paragens.

Semana passada, o Supremo Tribunal Federal incluiu a importante ADPF 347, que discute o Estado de Coisas Inconstitucional dos presídios brasileiros, na pauta do plenário físico — agora, é necessário fazer essa distinção. Acontece que o julgamento havia se iniciado em plenário virtual, com as sustentações orais dos amici curiae habilitados nos autos tendo sido colhidas por ali.

Logo após o ministro Marco Aurélio ter lançado seu voto no sistema, o ministro Luis Roberto Barroso pediu vista. Vista, mas não destaque. E a diferença é crucial. A vista permite a retomada do julgamento em plenário físico sem a renovação das sustentações orais. Por outro lado, o destaque reinicia o julgamento e a recontagem dos votos. Em outras palavras: o início do julgamento em plenário virtual permitiu que o ministro que estava para se aposentar votasse, além de servir para que os diversos amici não ocupassem o tempo do plenário (físico) com suas sustentações.

Da mesma forma, no último dia 19 de setembro, com efeito, a ministra Rosa Weber incluiu o julgamento da ADPF 342, que discute a (des)criminalização do aborto, em plenário virtual. Ela se aposentará no dia 2 de outubro deste ano. Os amici que tiveram sua habilitação nos autos deferida no dia anterior, porém, sequer terão tempo hábil para gravar suas respectivas sustentações orais no prazo de 48 horas antes do início da sessão virtual, marcada para se iniciar no último dia 22.

Eis que o Supremo resolveu mudar de ideia também com relação às sustentações orais em ações penais originárias. Depois de ter levado quatro sessões para julgar três réus envolvidos nos atos do 8 de Janeiro, os próximos casos estarão agora submetidos a plenário virtual, conforme recém decidido na AP 1.505.

Não há dúvidas: o tempo líquido de trabalho no plenário do Supremo é a comodity mais escassa da República. Se considerarmos que pelo menos 700 advogados se inscreveriam para sustentar oralmente nos mais de 1.300 processos decorrentes do 8 de Janeiro, o Supremo certamente levaria alguns meses de dedicação exclusiva só para garantir a sustentação oral em plenário físico para cada advogado.

A opção pelo plenário virtual, sem dúvida, é um cálculo pragmático para enfrentar o volume avassalador de trabalho no horizonte dos ministros. Entretanto, há que se dizer, estamos sacrificando a qualidade em prol da quantidade. Estamos sacrificando princípios caros para a democracia. A voz dos advogados não está sendo ouvida — literalmente. Há que se lembrar, afinal, que, no julgamento virtual, não há condições técnicas de suscitar questões de ordem ou esclarecimentos de fato, além da sustentação oral não se dar imediatamente antes dos votos de cada componente da turma julgadora. Trata-se de modalidade de julgamento que diminui o espectro persuasório e não privilegia o contraditório e a ampla defesa.

Toron nos alerta que "no plenário virtual parece haver apenas uma superposição de votos, sem debate efetivo". "É certo que um ministro pode ver o voto do colega e voltar atrás, mas isso não é debate.Daí porque, conclui o criminalista, nesse tipo de julgamento o que se vê é "o verdadeiro cerceamento ao direito de defesa no poder de convencimento dos ministros. A sustentação oral se faz olhando nos olhos dos juízes, não sozinho entre quatro paredes."[2].

Realmente, é incontestável que a sustentação oral "é uma das etapas mais bonitas e valiosas do processo, em que advogados e julgadores podem interagir e contribuir para uma melhor prestação jurisdicional, que efetivamente examine os principais fundamentos jurídicos (e, quando o caso, fáticos) envolvidos"[3].

A imediatidade da sustentação oral pode impactar o livre convencimento de cada juiz, ampliando consideravelmente as chances de êxito na execução da estratégia defensiva. Isso sem contar que o Ministério Público também poderá usar a palavra, qualificando o contraditório e permitindo uma decisão mais abalizada pela manifestação das partes e de eventuais amigos da corte.

Não custa lembrar que as prerrogativas da advocacia, como a sustentação oral, nada mais são do que as ferramentas do jurisdicionado para que seu direito seja apreciado pelos órgãos/colegiados julgadores e respeitado pelos magistrados. O direito à sustentação oral é direito legal e constitucional que se consubstancia na regular atuação profissional do advogado.

Nas palavras do eminente ministro Celso de Mello, "a sustentação oral, notadamente em sede processual penal, qualifica-se como um dos momentos essenciais da defesa", razão pela qual a "indevida supressão dessa prerrogativa jurídica (ou injusto obstáculo a ela oposto) pode afetar, gravemente, um dos direitos básicos de que o acusado — qualquer acusado — é titular, por efeito de expressa determinação constitucional".[4].

De fato, a Constituição nos garante "o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes(artigo 5º, LV, CR). Tal garantia é frustrada não apenas pela impossibilidade de o colegiado debruçar-se sobre o tema posto de forma síncrona, mas por impedir a realização de sustentação oral simultânea e com a garantia de se contraditar e expor argumentos que seriam necessariamente ouvidos (e talvez considerados) pelos julgadores. O que se viola, portanto, são justamente "os meios e os recursos" inerentes — e tão caros — ao contraditório a à ampla defesa.

Não se ignora, por certo, a avalanche processual que atinge nossas Cortes Superiores. Tampouco se pretende fazer vistas grossas à escassez do tempo de nossos magistrados. A justiça material, todavia, sobretudo em matéria criminal, é incompatível com o julgamento em plenário virtual. A ampla defesa — pedra fundamental de nossa jovem democracia —  é inegociável. Daí porque é preciso redobrar a atenção diante de inovações inebriantes que pretendem solucionar graves gargalos como a falta de tempo para se ouvir sustentações orais em plenário.

 


[1] Nas palavras do Min. Rogério Schietti, em julgamento do último mês de fevereiro, “Impõe o registro de que tal postura do órgão judicante de origem – repita-se: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo –, de descumprimento deliberado e reiterado de decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, em nada contribui para a higidez do sistema de justiça criminal e traduz menosprezo à jurisdição da Suprema Corte do país, a quem compete, por definição da Lei Maior, a função de, em última análise, dar interpretação às normas constitucionais” (STJ, HC 801.549/SP, Rel. Min. Rogério Schietti, dec. mon., J. 13.2.2023).

[2] TORON, Alberto. 8 de janeiro à luz do dia. In: Folha de São Paulo, 13 de abril de 2023, Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/04/8-de-janeiro-a-luz-do-dia.shtml Acesso em: 8.5.2023

[3] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; OLIVEIRA DA COSTA, Mário Luiz. Sustentações orais e sessões virtuais de julgamento – Um convite ao diálogo. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/377496/sustentacoes-orais-e-sessoes-virtuais-de-julgamento Acesso em: 2.8.2023.

[4] STF, HC 86.551/SC, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 29.5.2009.

Autores

  • é advogada criminalista. Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra.

  • é advogada criminalista e especialista em direito penal econômico pela FGV.

  • é advogado criminalista, mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e especialista em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP).

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