Opinião

Submissão do Brasil ao TPI é cláusula pétrea?

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  • Fernando César Costa Xavier

    é professor associado do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Roraima (UFRR) professor doutor Nível II da Universidade Estadual de Roraima (Uerr) doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e estagiário pós-doutoral no Instituto e Filosofia e Direito da Academia Russa de Ciências em Ecaterimburgo.

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25 de setembro de 2023, 20h33

O debate político recente sobre a inadequação da fala do presidente Lula em relação à conveniência de o Brasil se manter no Tribunal Penal Internacional transbordou para o campo do direito e, uma vez neste, fez emergir a tese de que o dispositivo da Constituição brasileira que prevê a submissão ao TPI (§4º do artigo 5º) seria uma cláusula pétrea [1]. Com a declaração que se seguiu do ministro da Justiça, Flávio Dino, em que sugere que o Brasil pode rever a adesão, tornou-se inevitável perguntar se essa tese é correta, isto é, se a jurisdição do TPI é obrigatória para o Brasil indefinidamente.

Em primeiro lugar, precisamos reconhecer que essa questão é inédita. Qualquer tentativa de comparação, por exemplo, com o conhecido caso sul-africano, pode revelar-se afobada. A quem não o conheça, segue um resumo. Em junho de 2015, o então presidente do Sudão Omar Al Bashir, que tinha contra si um mandado de detenção expedido pelo TPI, esteve em Johanesburgo, na África do Sul, para uma reunião dos países da União Africana.

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Presidente Lula no último 7 de Setembro
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O governo anfitrião não deu cumprimento à ordem de detenção, a despeito da África do Sul ser um Estado-parte do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Em outubro de 2016, após sucessivas críticas que recebeu, o governo sul-africano apresentou ao Secretário-Geral das Nações Unidas uma notificação manifestando o interesse em se retirar do Estatuto [2].

O partido sul-africano Aliança Democrática contestou perante a Suprema Corte da África do Sul o modo unilateral como a retirada (i.e., a denúncia do Estatuto de Roma) havia sido feita,. Não tinha havido a aprovação prévia do Parlamento. Nesse caso que ficou conhecido como Aliança Democrática  v. Ministro das Relações Internacionais e Cooperação e Outros (Interveniente: Conselho para o Avanço da Constituição Sul-Africana), a Suprema Corte decidiu favoravelmente à tese da Aliança Democrática e, considerando inconstitucional a forma como a retirada havia sido realizada, determinou a revogação da notificação feita à ONU [3].

Se examinadas com atenção, essas circunstâncias aproximam o caso sul-africano daquele julgado pelo Brasil em junho de 2023, no qual o Supremo Tribunal Federal também considerou que a denúncia pelo Presidente do Brasil de tratados internacionais aprovados pelo Congresso , para que produza efeitos na ordem interna, necessita igualmente da aprovação pelo Congresso [4].

No entanto, a questão aqui posta é de outra ordem. A questão é: considerando o §4º do artigo 5º ("O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão"), e obedecida a nova regra da denúncia bilateral, é juridicamente possível ao Brasil, sob a ordem constitucional vigente, que deixe de se submeter ao TPI?

Em outros termos: a norma constitucional que trata da submissão ao tribunal pode ser objeto do poder constituinte reformador? Se assim não for, teremos que chegar à conclusão (desconcertante, em termos de soberania) de que "estar submetido" significa não apenas estar obrigado a admitir como vinculante uma certa jurisdição internacional (neste caso, penal), mas admitir isso por tempo indeterminado. Neste caso, não se trataria de estar submetido, e sim de ser submisso.

No caso sul-africano, a possibilidade de denunciarem o Estatuto de Roma, ainda que tivesse sido incorporado nos termos da Constituição, não foi objeto de contestação na jurisdição constitucional. No parágrafo 53 da decisão da Suprema Corte, está dito que "a conclusão é, portanto, que, numa construção textual do artigo 231(2) [da Constituição], a África do Sul somente pode retirar-se do Estatuto de Roma após a aprovação do parlamento e após a revogação do Implementation Act"  [5].

Ou seja, a ordem jurídica daquele país não tem qualquer compromisso peremptório com o Estatuto de Roma ou com qualquer outro tratado, ainda que reconheça no artigo 233 da sua Constituição a importância do direito internacional para a interpretação do seu direito interno. 

Então, o caráter inédito na "polêmica" inaugurada pela declaração do presidente Lula em relação em relação a uma hipotética visita ao Brasil do presidente Vladimir Putin é se o TPI é peremptório para o Brasil ou não. Isto, por sua vez, se relaciona diretamente com a afirmação de que a jurisdição do TPI, na Constituição brasileira, estaria prevista como "cláusula pétrea", o que significa, traduzido ao português claro, que, na ordem constitucional vigente, não se poderia aprovar qualquer emenda constitucional, sequer deliberar, com vistas a afastar a jurisdição do TPI.

Os vários incisos do artigo 5º, que tratam das espécies de direitos e garantias individuais, são, sem dúvidas, cláusulas pétreas. Mas e o seu §4º? Se ele contempla um direito ou garantia individual (nos termos do artigo 60, §4, IV, da Constituição), qual seria? Neste ponto, será tentador lembrar que o TPI tem a tarefa relevantíssima de assegurar que crimes que chocam profundamente a consciência da humanidade não fiquem impunes.

Não se mostra promissora, contudo, a alegação que busca vincular o aspecto de cláusula pétrea a essa tarefa, como que afirmando que os cidadãos brasileiros têm o direito de exigir que o TPI cumpra com sua missão institucional. A definição corrente de uma cláusula pétrea (ou limite material de revisão) leva em conta que ela, de vez que corresponde a um direito individual, exige prestações negativas em face do poder público [6].

Qualquer que seja a garantia que corresponda ao §4º, ela tem que ser oponível perante o Estado brasileiro. E o êxito institucional do TPI, a rigor, independe do Brasil. Isso é diferente, por exemplo, das garantias da instituição do tribunal do júri popular ou da proscrição de tribunais de exceção, hipóteses que estão sob o controle do Estado brasileiro, nos limites da sua jurisdição, e pelas quais ele pode ser cobrado. Assim, a única forma de enxergar §4º como garantia é pensá-lo como o direito imutável que todos os cidadãos brasileiros teriam a que o Brasil permanecesse eternamente no TPI.

Essa interpretação contrasta com o espírito do próprio Estatuto de Roma, que reconhece a todo e qualquer Estado-parte o direito de se retirar (artigo 127). Para efeitos internacionais, não faz diferença haver qualquer norma doméstica, inclusive de matriz constitucional, que busque restringir ou negar esse direito. É claro que, de um ponto de vista interno, poder existir limites à regra da retirada. No entanto, como foi dito, este não é o caso. Não existindo qualquer óbice, o §4º  poderia ser reformado e, em seguida, denunciado o Estatuto, conforme o possibilita o artigo 127.

Pensar diferentemente, isto é, conceber que o §4º  é uma "cláusula de eternidade" [7]  como diria Gilmar Mendes  implica que não se poderia sequer cogitar da ideia de aperfeiçoamento do status formal do Estatuto, abrindo-se caminho com uma reforma constitucional para que ele fosse denunciado e reincorporado com aprovação congressual com quórum qualificado, para adquirir hierarquia equivalente às emendas constitucionais.

O que parece que está em questão, na verdade, é o velho debate, com nova roupagem, sobre se é possível a denúncia de tratados de direitos humanos. Se for esse realmente o caso, é preciso lembrar que não há forte resistência na doutrina, tampouco perspectivas de contrariedade por parte do STF, de que um tratado de direitos humanos, ainda que tenha conexões com a lista de direitos e garantias do direitos do artigo 5º, possa ser denunciado.

O interesse pela possibilidade de denúncia do Estatuto de Roma está ligada ao futuro. Há razões, fortes, para que o TPI continua sendo visto com cautelas, senão suspeitas, embora ainda inspire confiança a esperança em muitos. É preciso que haja um dispositivo de saída, caso a confiança seja quebrada.

De todo modo, não custa nada lembrar: é possível concordar que a saída do Brasil do Estatuto de Roma, ainda que juridicamente possível (como aqui se defende), seja politicamente inoportuna, mesmo em um cenário futuro de desapontamentos, porque, vá lá, em todos os casos, melhor com o TPI do que sem ele.

 

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[1] STEINER, Sylvia. Meu presidente, Putin deve ser preso se vier ao Brasil. Folha de São Paulo, 11 set. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/09/meu-presidente-se-putin-vier-ao-brasil-devera-ser-preso.shtml?fbclid=PAAabCmjt2YxyEveKWfLFA3cIE8KFMSUV-8TPkpHEyq18xe5LVwOAS98mo1OU_aem_ASa5H4alLz8RWw1pAzl31onja28nAp55rPfcnwCuDbpMQSAK5iLnry-6k-7mkQUpCnA.

[2] UNITED NATIONS. Secretary-General of the United Nations. South Africa: Notification of Withdrawal. C.N.121.2017. TREATIES-XVIII.10 (Depositary Notification). 2017. Disponível em: https://treaties.un.org/doc/Publication/CN/2017/CN.121.2017-Eng.pdf.

[3] HIGH COURT OF SOUTH AFRICA. Gauteng Division, Pretoria. Democratic Alliance v Minister of International Relations and Cooperation and Others (Council for the Advancement of the South African Constitution Intervening). Case 83145/2016. 2017. Disponível em: http://www.saflii.org/za/cases/ZAGPPHC/2017/53.html.

[4] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Declaratória de Constitucionalidade 39 / Distrito Federal. Requerente: Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) e Outro(a/s). Relator: ministro Dias Toffoli. Diário de Justiça Eletrônico 22 jun. 2023.

[5] HIGH COURT OF SOUTH AFRICA. Gauteng Division, Pretoria. Democratic Alliance v Minister of International Relations and Cooperation and Others (Council for the Advancement of the South African Constitution Intervening). Case 83145/2016. 2017. Disponível em: http://www.saflii.org/za/cases/ZAGPPHC/2017/53.html

[6] MENDES, Gilmar Ferreira. Os limites da revisão constitucional. Cadernos de Direito Constitucional e Ciências Política, , v. 5, nº 21, p. 69-91, out./dez. 1997.

[7] MENDES, Gilmar Ferreira. Os limites da revisão constitucional. Cadernos de Direito Constitucional e Ciências Política, , v. 5, nº 21, p. 69-91, out./dez. 1997.

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