Embargos culturais

O voto do ministro Toffoli no tema da imunidade do livro eletrônico

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

24 de setembro de 2023, 8h00

O acesso à cultura é um direito fundamental. Essa premissa (evidente) orienta as reflexões que seguem. A cultura é a conteúdo de um direito fundamental, como se lê no art. 215 da Constituição, isto é, o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. Também deve se fazer referência ao disposto no inciso IX do art. 5 º da Constituição no sentido de que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

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Há uma antiga prescrição de breviário de principiologia jurídica que define que a outorga de fins tem como pressuposto a entrega dos meios. Orientação constitucional que prestigie e que garanta a todos o pleno exercício dos direitos culturais é cláusula de direito político cuja realização no plano concreto exige várias ações por parte do Poder Público. Assumindo-se que a cultura seja direito fundamental, até pela obviedade da afirmação, constatando-se acordo entre fatos e verdades, tem-se ponto de partida argumentativo que não pode resultar em outra solução para problemas de ordem prática, que não o prestígio à cultura, forma de elevação do ser humano, bem como de potencialização de nossa circunstância.

No caso concreto explorado pela coluna hoje, a imunidade do livro eletrônico, qualquer linha interpretativa deve, necessariamente, ter como pressuposto, e como meta, a realização absoluta dos valores culturais. A questão foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal no contexto do Recurso Extraordinário 330.817-RJ, relatado pelo ministro Dias Toffoli, voto que comento essa semana.

Tenho argumentado que textos jurídicos (decisões, petições, pareceres, exposições de motivo e mesmo textos normativos) sejam também expressões literárias a par de atos de decisão (e, portanto, de vontade). A redução da literatura a literatura de ficção é medida desprovida de sentido porque, no limite, biografia, autobiografias e livros de história seriam excluídos do universo literário. Textos não ficcionais (aqui incluindo-se decisões judiciais) também são textos literários. Sustento esse argumento com o voto do ministro Toffoli na discussão sobre o livro eletrônico. Do ponto de vista da construção da narrativa e da estratégia argumentativa, penso, trata-se de um dos votos mais emblemáticos de nossa reminiscência jurídica.

O ministro Toffoli fixou como ponto de partida o vínculo entre a imunidade dos livros e a “temática das ações censórias”. Nesse passo, retomou a origem da discussão, explicando-nos o tema no contexto histórico do Estado Novo (1937-1945) e o modo como Getúlio Vargas determinou o alcance e os limites do favor legal. A pesada carga tributária era ameaça constante à imprensa que criticava o Presidente. Essa é a origem do assunto, maculado por uma espécie de um pecado original, na imperscrutável relação entre poder e cultura, entre política e arte. Um tema clássico no marxismo ocidental e nos frankfurtianos do exílio.

Nessa decisão o ministro Toffoli apresenta-nos corte radical entre o que denomina de corpo místico (ideias e obras contidas em um livro) e o corpo mecânico (o material de papel e tinta que veicula as ideias). O Estado Novo pretendia controlar aquele (o corpo místico) e o fazia controlando esse último (o corpo mecânico). O ministro Toffoli nesse passo registra a importância de Jorge Amado (então deputado constituinte) na construção do modelo de imunidade de livros, na Constituição de 1946, que se reproduziu nas cartas políticas posteriores (1967, Emenda Constitucional n. 1 e 1988). Há nessa intervenção do grande escritor de Itabuna um apelo à democratização da cultura. O ministro Toffoli percebeu que o intuito da imunidade era sempre o controle o conteúdo do suporte, e não o suporte propriamente dito.

Para o estudioso do tema dos precedentes o voto do ministro Toffoli elencou decisões emblemáticas no assunto (de Thompson Flores, Leitão de Abreu, Cunha Peixoto, Xavier de Albuquerque, Moreira Alves, Cordeiro Guerra, Rodrigues Alckmin, Carlos Madeira, Sydney Sanches, Célio Borja, Djaci Falcão, entre os mais antigos e, especialmente, de Gilmar Mendes – RE n. 628.122/SP, entre os contemporâneos). Há também forte referência doutrinária (Mizabel Derzi e Gustavo Tepedino).

No passo seguinte o ministro Toffoli dissertou sobre o livro eletrônico (ou digital), marcando entendimento de que o CD-Rom, por exemplo, seja apenas um corpo mecânico, ou de mero suporte. Ao fim, propôs tese para pacificação do assunto (tema n. 593) no sentido de que “a imunidade tributária constante do art. 150, VI, d, da CF/88, aplica-se ao livro eletrônico (e-book) inclusive aos suportes exclusivamente utilizados para fixá-lo”.

O julgado no RE 330.817, relatado pelo ministro Toffoli, é o precedente representativo que se desdobrou na Súmula Vinculante n. 57, que dispõe que “a imunidade tributária constante do art. 150, VI, d, da CF/88 aplica-se à importação e comercialização, no mercado interno, do livro eletrônico (e-book) e dos suportes exclusivamente utilizados para fixá-los, como leitores de livros eletrônicos (e-readers), ainda que possuam funcionalidades acessórias”.

Do ponto de vista da construção do precedente vinculante, e na lógica dos arts. 926 e ss. do Código de Processo Civil, o ministro Toffoli reuniu precedentes, marcou um julgado, resumiu jurisprudência, que resultou em súmula vinculante. Tem-se, no voto, e em seu desdobramento, um exemplo prático da moderna doutrina do precedente, o mais importante tópico do novo Código de Processo Civil, na impressão de Luiz Guilherme Marinoni.

A discussão ordinariamente apontava dois caminhos que definiam uma opção hermenêutica. Alguns aferravam-se literalmente ao conteúdo da norma constitucional, no sentido de que a prerrogativa alcançaria apenas o papel destinado a impressão de livros, jornais e periódicos, tal como enunciado; outros centravam-se na proteção da cultura, independentemente dos meios de divulgação. É o que permitia que se alcançasse o livro digital.

A revolução tecnológica dos meios de informação ensejou também uma nova concepção dos meios de veiculação da cultura, assunto recorrente em autores como Manuel Castells e Umberto Eco. E se é certo que a mensagem é mais importante do que o meio que a veicula, não se pode discriminar o meio, pena que se limitem as possibilidades de divulgação das mensagens. É essa compreensão, acredito, que marca a decisão do ministro Toffoli no tema da imunidade do livro eletrônico.

Pela estratégica narrativa, pela linha argumentativa e pela amarração lógica entre o postulado e o dispositivo é que, insisto, contempla-se nessa decisão, uma peça literária de primeira grandeza.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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