Ambiente jurídico

Direito climático, ética e integridade judicial

Autor

  • Gabriel Wedy

    é juiz federal professor nos programas de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-doutor doutor e mestre em Direito Ambiental membro do Grupo de Trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas" do Conselho Nacional de Justiça visiting scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e pela Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) autor de diversos artigos na área do Direito Ambiental no Brasil e no exterior e dos livros O desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental e Litígios Climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro Norte-Americano e Alemão e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

23 de setembro de 2023, 10h47

"Ou seja, já não pairam incertezas sobre a realidade, causas antrópicas e efeitos avassaladores das mudanças climáticas na comunidade da vida planetária e no cotidiano da humanidade. Embora ainda exista muito a descobrir e estudar, nem mesmo quem acredita em Papai Noel consegue negar os dados acumulados nas últimas décadas." (Ministro Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin)

Spacca
No julgamento do AgInt no Ag em REsp n. 2.188.380/SE, no qual se discutia a interdição administrativa de estabelecimentos comerciais localizados no litoral de Sergipe, sujeitos à erosão costeira e aos riscos de desabamento, o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, levantou relevante questão técnica para necessário debate acadêmico no âmbito do direito climático brasileiro. Construções irregulares sobre mangues e dunas, de fato, são bastante comuns nos empreendimentos no país, e colocam em risco não apenas a função ecossistêmica destes espaços, a biodiversidade deles mas, especialmente, deixam as zonas litorâneas e as suas populações completamente desprotegidas em virtude do aumento do nível dos oceanos.

Destacou o ministro que “as mudanças climáticas representam um fenômeno incontestável: suas consequências estão por toda parte e a ninguém poupam. Atingem diretamente e arruínam milhões de pessoas, sobretudo as mais pobres; ameaçam centenas de milhões de outras tantas; incitam o espírito de investigação de pesquisadores; desafiam a antevisão de políticos e legisladores; e, cada vez mais, se fazem presentes no cotidiano dos Tribunais”. Assim, diante de “tamanho consenso científico, os juízes precisam ficar vigilantes para não serem usados como caixa de ressonância de ideias irracionais — negacionistas dos fatos e do saber —, posições que, frequentemente, não passam de biombo para ocultar poderosos e insustentáveis interesses econômicos esposados por adversários dos valores capitais do Estado de Direito Ambiental”.1

Os magistrados precisam, realmente, com base em dados científicos, fazer a devida diferenciação, entre os pensamentos filosóficos, econômicos e jurídicos que respeitam a nossa Gaia, a mãe Terra, e ter cuidado constante com aquelas avaliações que elevam o utilitarismo e, em matéria jurídica, colocam hierarquicamente a propriedade privada, o desenvolvimento econômico e a livre iniciativa acima dos valores dos macro bens ambientais tutelados constitucionalmente.

É urgente, neste processo hermenêutico2, que se promova uma (relativa) dissociação entre o desenvolvimento socioeconômico e a exploração dos recursos naturais (relative Entkopplung des wirtschaftlichen Wachstums vom Umweltverbrauch).3 Para isso, contudo, é preciso reformular os discursos éticos e filosóficos que governam as relações políticas e jurídicas no Brasil e que se refletem, por óbvio, na formação e no aperfeiçoamento da magistratura. As normas ambientais existem para tutelar o meio ambiente, e não para interpretações que priorizem o lucro e o desenvolvimento econômico insustentável do ponto de vista ecológico. A finalidade das leis de regulação ambiental é de proteção do bem ambiental sempre, estas não podem ser interpretadas ora para tutelar o meio ambiente ou o sistema climático estável, ora para violá-lo, agredi-lo, sacrificá-lo, ou, o que é pior, reduzi-lo a pó. Firmeza e a constância ética do hermeneuta são condições inegociáveis.

Immanuel Kant, quando trata do imperativo categórico, refere que a moralidade deve ser baseada em princípios absolutos e universais que todos os seres racionais devem seguir, sem gerar contradições. Para Kant, “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal”.4 Igualmente, na “fórmula da humanidade” da filosofia kantiana, o homem “existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”.5 Os juízes não podem e não devem deixar ser capturados por pensamentos poluentes, carbonizados e por visões de curto prazo que, no fundo, visam o lucro acima de tudo.

Em que pese a abordagem kantiana atraia críticas em razão do seu antropocentrismo excessivo (diante do desenvolvimento de uma dimensão ecológica da dignidade, para além de Kant6), não se pode perder de vista que, em seu âmago, as ideias de universalização e de autonomia moral permeiam os próprios alicerces da sustentabilidade, do Estado Ecológico de Direito e do próprio direito climático. Não se alcança o desenvolvimento ecologicamente sustentável, a equidade intergeracional, a proteção dos ecossistemas naturais por seu valor intrínseco e a universalização de princípios morais para todas as pessoas e seres vivos sem a compreensão e o reconhecimento de que os pilares da filosofia kantiana não podem se transformar em letra morta. Esta compreensão auxilia no necessário distanciamento das reflexões juridicamente rasas que no máximo seguem práticas burocráticas e corporativas exigidas e impostas por setores da academia e do grande capital.

Este fenômeno nada mais é do que uma faceta da prática do rent seeking que coloca em risco o direito climático e o direito ambiental, porque, em última análise, propicia a extração de riqueza por meio da exploração de recursos naturais (ou por intermédio da imposição de externalidades negativas não compensadas) sem retorno em favor da sociedade, legítima titular dos bens ambientais e que é afetada pelas atividades econômicas, imobiliárias e industriais.7 Ou ainda, para se valer da locução rawlsiana, tal condição revela um quadro de desigualdades sociais, econômicas e ambientais que, além de não vinculadas a posições acessíveis a todos, prejudica (ao invés de beneficiar) os menos favorecidos e a natureza.

John Rawls e Amartya Sen, por sinal, reconhecem a necessidade de sepultar as concepções utilitaristas clássicas que hoje animam a sanha dos defensores do greenwashing, da poluição e da emissão dos gases de efeito estufa, até mesmo (des)operando normas ambientais e climáticas. O primeiro, ao elaborar, ainda na obra Uma Teoria da Justiça8, uma “alternativa ao pensamento utilitarista em geral e consequentemente a todas as suas diferentes versões”, destaca que o “utilitarismo não leva a sério a diferença entre as pessoas”.9 Sen, por sua vez, defende o enfoque nas liberdades humanas que “contrasta com visões mais restritas de desenvolvimento, como as que identificam desenvolvimento com crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB), aumento de rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização social”,10 ignorando fatores ambientais, climáticos, sociais (saúde e educação) e até mesmo do espírito humano (como a felicidade).

Esse paradigma, de todo modo, está em sintonia com a “fórmula da humanidade” e o “reino dos fins” de Kant que fica bem definido na máxima: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca como meio”.11 Deve-se recusar, com isso, o tratamento do ser humano (e podemos expandir para todas as formas de vida) como mero instrumento para determinados fins, numa visão utilitarista estreita. Ao invés, o ser humano e a vida em geral ostentam um fim em si mesmo, uma dignidade própria, que resulta em ilegítima qualquer instrumentalização.

Sarlet e Fensterseifer, em boa hora, referem que é preciso ampliar o conceito de dignidade para contemplar o seu reconhecimento “para além da vida humana, ou seja, para abarcar também os animais não humanos, todas as formas de vida e a Natureza como um todo (Gaia), à luz de uma matriz jusfilosófica ecocêntrica apta a reconhecer a teia da vida que permeia as relações entre ser humano e Natureza no Antropoceno”.12

Neste cenário, os juízes não podem ser usados (as) como “caixa de ressonância de ideias irracionais — negacionistas dos fatos e do saber”, como enfatizado pelo ministro Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, pois, de fato, estas condutas “não passam de biombo para ocultar poderosos e insustentáveis interesses econômicos esposados por adversários dos valores capitais do Estado de Direito Ambiental”.13

Uma nova ética ecológica e climática, que componha os alicerces do Direito enquanto ciência, não admite decisões negacionistas ou comportamentos processuais contraditórios dos juristas na prática (por exemplo: em regra posicionando-se contra o meio ambiente, e pouquíssimas vezes em sua defesa). Ou, o que é pior, quando operadores do direito adotam determinados posicionamentos jurídicos no law in book, e outros diametralmente opostos no law in action quando envolvidas grandes somas pecuniárias, ou as vezes até nem tão grandes assim! Estas práticas, por princípios morais e políticos apriorísticos, evidentemente, não podem ser aceitas.

Comunidades carentes e a natureza não podem ser tratadas como meros instrumentos (meio) para a obtenção de fins pessoais, políticos e econômicos. Deve-se rejeitar que vantagens conferidas para poucos não beneficiem os mais desfavorecidos (princípio da diferença), entre estes incluída a própria natureza. É de ser repelida a concepção limitada de desenvolvimento meramente econômico, que não leve em conta a expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam e a ecologia integral.

Enfim, é preciso que os juízes tenham, em suas decisões e na sua formação permanente, a sempre presente necessidade da constante defesa do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como previsto no art. 225 da Constituição Cidadã, despida evidentemente de nefastas influências e de contradições éticas e morais, usualmente disfarçadas como defesa de outros interesses, supostamente coletivos, mas que, em verdade, representam uma prática de rent seeking, pois atendem apenas a interesses econômicos de poucos em detrimento de toda a comunidade da vida que sobrevive em um planeta cada vez mais aquecido e menos verde.

 

 

 

 

 

 

 

1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2ª T., AgInt no AREsp n. 2.188.380/SE, rel. Min. Herman Benjamin, j. 6/3/2023.

2 Sobre uma consistente teoria da decisão, ver: STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional. São Paulo: Forense (Gen), 2022.

3 Quanto aos objetivos conflitantes da sustentabilidade, entre crescimento e proteção ambiental (Zielkonflikt zwischen Wachstum und Umwelt), as novas abordagens podem ser discriminadas entre: a) o decrescimento ou pós-crescimento (de-growth ou Post-Wachstums-Ansätze); b) um tratamento precavido da natureza trazido por uma reorientação ética da economia de mercado (abordagem da economia do bem comum ou Ansatz der Gemeinwohlökonomie); ou c) a possibilidade de uma dissociação de longo prazo entre crescimento econômico e consumo ambiental (abordagens de green growth ou crescimento verde) (DÖRING, Thomas. Alternativen zum umweltschädlichen Wachstum. Wirtschaftsdienst, v. 99, issue 7, p. 497-504, 2019).

4 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2011. p. 34.

5 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2011. p. 73.

6 FENSTERSEIFER, Tiago; SARLET, Ingo Wolfgang. Direito Constitucional Ecológico. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 82-83; SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 42-43.

7 Rent seeking é a prática assim caracterizada por Stiglitz: “getting income not as a reward to creating wealth but by grabbing a larger share of the wealth that would otherwise have been produced without their effort” (STIGLITZ, Joseph. The Price of Inequality: How Today’s Divided Society Endangers Our Future. New York: Norton, 2013. p. 39-40).

8 RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1971.

9 RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1971. p. 30

10 SEN, Amartya. Development as Freedom. New York: Random House, 1999.p. 16-17.p. 16.

11 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2011.

12 FENSTERSEIFER, Tiago; SARLET, Ingo Wolfgang. Direito Constitucional Ecológico. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 82.

13 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2ª T., AgInt no AREsp n. 2.188.380/SE, rel. Min. Herman Benjamin, j. 6/3/2023.

Autores

  • é juiz federal, membro do grupo de trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas, do CNJ, professor do PPG em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), vice-presidente do Instituto O Direito Por um Planeta Verde e ex-presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

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