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Recomendações da Iosco sobre plataformas DeFi

Autor

  • Isac Costa

    é sócio de Warde Advogados professor do Ibmec do Insper e da LegalBlocks doutor (USP) mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM onde também atuou como assessor do colegiado.

20 de setembro de 2023, 8h00

A International Organization of Securities Commissions (Iosco) é uma associação de reguladores do mercado de capitais, com mais de 200 membros de mais de 100 jurisdições. Suas publicações, consultas e recomendações têm orientado a evolução das normas do mercado brasileiro, influenciando as regras da CVM, BSM e B3.

Spacca
Neste mês, foi publicado um relatório com recomendações para a regulação do mercado de finanças descentralizadas (DeFi). Anteriormente, a Iosco já havia publicado estudos sobre DeFi (2022), educação de investidores em matéria de criptoativos (2020), stablecoins (2022 e 2020) e ambientes de negociação de criptoativos (2020). Em breve, será publicado mais um relatório, fruto da consulta pública específica sobre criptoativos, iniciada em maio.

A Iosco não utiliza o conceito genérico de ativo virtual contido na Lei nº 14.478/2022, destacando o uso da tecnologia blockchain na emissão e negociação de ativos, uma ideia adotada pelo regulador brasileiro no Parecer de Orientação CVM nº 40/2022.

O relatório tem como foco os ativos depositados em plataformas DeFi, assim definidas como aquelas que não se valem de um intermediário central (tais como as exchanges tradicionais de criptoativos) para a oferta de serviços financeiros semelhantes aos do mercado tradicional.

Dentre esses serviços encontramos as exchanges descentralizadas (DEX), onde ocorre a permuta entre criptoativos, pela existência de um livro de ofertas ou, então, por um mercado de provisão automatizada de liquidez (liquidity pools). Também há serviços de empréstimos de criptoativos, nos quais o depositante recebe uma espécie de recibo de depósito na forma de outro criptoativo, com medidas de mitigação de risco programáveis com base nas garantias exigidas (e prestadas por meio de criptoativos). Há ainda serviços de agregação, que buscam facilitar as transações por meio de múltiplas plataformas em uma única inteface.

Uma visão geral desse mercado pode ser vista no portal DeFi Llama, onde percebemos uma queda drástica dos valores a partir de meados de 2022, de um patamar de US$ 200 bilhões para cerca de US$ 40 bilhões em setembro de 2023, em termos de total equivalente de criptoativos depositados (total value locked — TVL), métrica usual de estoque nessas plataformas.

Além dos colapsos da stablecoin Terra Luna e de empresas como Celsius, BlockFi e FTX no passado recente, outros eventos recentes que impactaram negativamente este mercado foram ataques que, apenas em 2023, resultaram em perdas de mais de US$ 4 bilhões a investidores, de acordo com a Chainalysis.

Diante desse quadro, a Iosco fez uma consulta pública para mapear os riscos associados e propor diretrizes para a eventual regulação desse mercado.  

Recomendações
O relatório traz nove recomendações, descritas a seguir.

1) Compreensão do mercado: É preciso compreender quais são os modelos de negócios, os produtos e serviços oferecidos em suas dimensões funcionais e técnicas, para definir critérios claros de incidência da regulação.

2) Identificação de entidades responsáveis: Apesar do caráter descentralizado das soluções DeFi, os reguladores devem procurar identificar que pessoas proveem ou facilitam o acesso aos serviços, exercendo algum tipo de controle (financeiro, jurídico, técnico, marketing etc.), para que sejam os responsáveis pelo cumprimento de eventuais regras a serem propostas.

3) Convergência de padrões regulatórios: Para promover a proteção dos investidores e a integridade do mercado, os mecanismos regulatórios devem envolver uma combinação de instrumentos tradicionais (quando aplicáveis) e novos padrões, para equiparar os modelos inovadores a emissores de valores mobiliários, intermediários, instrumentos de financiamento coletivo, bolsas e infraestruturas de mercado já regulados.

4) Identificação de conflitos de interesses: Em cada modelo de negócio, é fundamental mapear os conflitos de interesse na oferta de produtos e serviços financeiros, de modo a preveni-los e evidenciá-los aos investidores.

4) Gestão de riscos: É necessário identificar e priorizar os riscos, especialmente operacionais e tecnológicos, bem como avaliar as alternativas para sua mitigação — nesse ponto, a Iosco dá destaque aos serviços de oráculos (oracles) e conexões (bridges), mais suscetíveis a ataques e falhas.

5) Transparência: Como no mercado tradicional, convém exigir o acesso aos custos dos serviços e aos parâmetros de formação de preços e quaisquer outras informações necessárias para a tomada de decisão pelos investidores e sua compreensão adequada dos riscos.

6) Cooperação internacional e compartilhamento de informações: Para evitar arbitragem regulatória (fuga para regiões mais flexíveis), todas as entidades devem cooperar entre si para definir um padrão regulatório mínimo.

7) Efetividade na aplicação das normas: Os reguladores devem se valer de mecanismos consistentes com os objetivos pretendidos e capazes de lhe permitir a fiscalização e a aplicação de sanções, se necessário. Assim, podem ser exigidos requisitos para a obtenção de licenças e acesso a dados e outros recursos necessários para assegurar a adequação do enforcement.  

8) Compreensão das conexões entre o mercado DeFi, o mercado cripto como um todo e o mercado tradicional: Os reguladores devem investigar as relações entre esses mundos, tais como a oferta de soluções DeFi por instituições tradicionais, o lastro de criptoativos em instrumentos regulados, reservas de ativos para emissão de stablecoins, investimentos de fundos de venture capital ou institucionais em projetos cripto, derivativos de criptoativos e prestação de garantias em ativos tradicionais em plataformas DeFi, dentre outros.

Alguns ingredientes para evitar uma regulação ineficaz
A proximidade com os agentes de mercado é fundamental para o desenvolvimento de instrumentos efetivos, em um diálogo constante. A regulação não pode sufocar a inovação, devendo reconhecer os benefícios potenciais das soluções DeFi para o desenvolvimento do mercado. O impacto da regulação deve atender a critérios de relação proporcional entre custos de observância e resultados desejados.

Nesse contexto, a análise de impacto regulatório desempenha um papel relevante. Na eventualidade de mais de um regulador, o regime a ser criado deve ser racional e deve conter limites bem definidos — vide o caso brasileiro em que a matéria poderá ser tratada pela CVM, pelo Banco Central e pela Receita Federal.

Idealmente, os mecanismos regulatórios não devem ser rígidos e precisam ser constantemente revisitados e reajustados para lidar com as rápidas mudanças do mercado.

O que vem depois?
Um ponto central tratado pela Iosco é o fato de que os serviços prestados não diferem substancialmente daqueles oferecidos no mercado tradicional, a despeito da utilização de tecnologias emergentes. Assim, os riscos envolvidos e as responsabilidades regulatórias não tendem a ser diferentes, por mais disruptivo que seja este mercado. O grande desafio consiste em fazer valer a regulação.

O mercado de plataformas DeFi é global e, a depender do grau de descentralização, é inviável definir um centro de imputação de deveres e responsabilidades. Além disso, a velocidade com a qual novas soluções são desenvolvidas é incompatível com o processo regulatório, desafiando não apenas a criação de normas, mas também sua efetiva aplicação.

Porém, a liberdade potencial oferecida pela tecnologia tem seu preço. Vamos observar se, nos próximos anos, como a combinação entre facilidade de uso dessas plataformas, valorização dos criptoativos de um modo geral e ausência de regulação efetiva resultará no efetivo desenvolvimento do mercado DeFi ou se, por outro lado, não haverá adoção em massa, quer por investidores de varejo, quer por investidores institucionais, sobretudo em razão da insegurança jurídica em torno das relações estabelecidas.

Autores

  • é sócio de Warde Advogados, professor do Ibmec e do Insper, doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito, engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM, onde também atuou como assessor do colegiado.

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