Opinião

Normatização das finanças públicas no Brasil: da proliferação à (in)coerência

Autores

  • José Roberto Afonso

    é economista professor do IDP e do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP/Univ.Lisboa) pós-doutor em Administração Pública e doutor e mestre em Economia.

  • Núbia Castilhos

    é advogada procuradora da Fazenda Nacional mestre em Direito Constitucional pelo IDP-DF e especialista em Gestão Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

15 de setembro de 2023, 6h33

As matérias financeira e tributária são detalhadamente tratadas pela Constituição brasileira vigente, tanto no que diz respeito à diversidade de conteúdo como à quantidade de normas, o que nos permite afirmar que são temas intensamente normatizados, mas, nem por isso, menos conturbados.

Diante da abundância de constitucionalização do regramento das finanças públicas do país, sem contar uma intensa remissão de matérias para leis complementares, seria inevitável resultar que a miríade de normas, ora aplicadas, ora por regulamentar, nem sempre primam pela coerência e integração. Essa legislação compreende o próprio corpo da Carga Magna, leis complementares, leis ordinárias e resoluções do Senado, sem contar as normas administrativas expedidas por ministérios, em particular pela Secretaria do Tesouro Nacional

O excesso de normativos esparsos e, não necessariamente harmônicos entre si, sobretudo em assunto de reconhecida aridez, acaba por gerar maior dificuldade de compreensão e apreensão do conteúdo das finanças públicas, prejudicando ações que considerem a simetria do arcabouço normativo.

Neste contexto de excessiva constitucionalização das matérias fiscais, é preciso se refletir e debater mais sobre o efeito nas relações entre os Poderes da República. Quanto mais o Poder Legislativo delibera em torno de uma matéria (seja qual for) por intermédio de atos legais de hierarquia superior (no sentido de exigirem quóruns mais qualificados para decisão no Congresso), ainda que a pretexto de dar maior eficácia e segurança na aplicação do que se aprovou, muitas vezes se pode estar: de um lado, a reduzir drasticamente o espaço do Poder Executivo para formular e sobretudo para executar políticas públicas (notadamente nas áreas econômica e social), e, de outro, a aumentar e mesmo a transferir a decisão final sobre o alcance e a natureza da medida ao Poder Judiciário, especialmente a sua Corte maior, porque qualquer e mínima questão se torna passível de questionamento sobre sua constitucionalidade e, sobretudo, porque proliferam dúvidas e conflitos com o excesso de normas e a imprecisão de suas redações.

A transparência também é outro valor afetado, na medida em que, quanto mais retalhada e dispersa for a normatização, maiores as dificuldades de conhecimento do todo e de chances de antinomias dentro do sistema. Crescem, portanto, as possibilidades de produção de atos normativos eivados de equívocos, com potencialidade de geração de círculos viciosos, e diminui-se a possibilidade de maior controle sobre eles. Isto para não falar na falta de coerência e de harmonia entre princípios e regras previstos em atos legais de diferentes espécies e datas. Autoridades e servidores responsáveis pela aplicação e execução de tais regras vez por outra se deparam diante de tais dúvidas, quanto não conflitos, e muitas vezes suas ações e decisões são paralisadas, quando não são paralisadas, as vezes espera de consultas aos órgãos de consultoria ou de controle, as vezes para sempre.

Para conhecer que seja esse imenso cipoal de normas legais sobre finanças públicas, foi realizado um levantamento, que estes dois autores participaram com outros colegas. O trabalho resultou na recente publicação pela Fipe da USP do Texto Para Discussão nº 19, sob título Diagnóstico sobre a Constitucionalização das Finanças Públicas no Brasil  (disponível aqui). Trata-se de um estudo inédito que levantou as normas legais vigentes, a serem regulamentadas e atualmente propostas, com objetivo de posteriormente se mapear as incoerências, lacunas e contradições das normas constitucionais e legais sobre finanças públicas do país. Como se vê, é um convite ao debate e ao trabalho de revisitar a normatização da matéria fiscal.

A pesquisa exaustiva (330 páginas), ora publicada pela Fipe/USP, foi estruturada em três partes:

1) levantamento e análise das normas constitucionais e infraconstitucionais relativos às finanças públicas;

2) levantamento e análise da legislação vigente e, no caso das normas ainda não regulamentadas, dos principais projetos de lei complementar em tramitação no Congresso; e

3) revisão bibliográfica recente, sobretudo internacional, acerca de instituições e regras fiscais e propostas para consolidação fiscal.

Ao levantar as normas que versam sobre finanças públicas na Constituição, a pesquisa dividiu os dispositivos em normas de aplicabilidade imediata; normas que já foram regulamentadas; normas carentes de regulamentação; normas com efeito indireto no impacto das finanças públicas e normas de Direito Tributário, permitindo o estabelecimento de um quadro geral sobre o estágio das determinações constitucionais em torno da matéria.

Além disso, tem sido contumaz o uso das leis anuais de diretrizes orçamentárias como uma espécie de tampão para cobrir as lacunas da falta de regulamentação, sobretudo do processo orçamentário (que passaria pela revisão da Lei nº 4.320 de 1964). Opinamos que seja inapropriado movimento de incluir em seu corpo assuntos que pela envergadura do conteúdo e pela necessidade de maior sobrevida, deveriam estar insertos em leis complementares, conforme veremos no exemplo a seguir.

O levantamento da normatização da matéria fiscal mostra um paradoxo, se as vezes se pode apontar um excesso no número de nomas e sobretudo no seu detalhamento, em especial na Constituição, de outro existem importantes e várias lacunas de leis complementares, ou que sequer foram votadas, como a que deve definir regras gerais do orçamento e da contabilidade para todos os governos, ou que não foram implementadas em sua plenitude  caso notório da LRF, em que até não se completou a aplicação de sua sistemática de controle e revisão do endividamento público federal, o tratamento das contas públicas e a premiação da boa gestão. Por isso, o texto publicado pela Fipe/USP não apenas identifica o que está em vigor, como também mapeou as principais propostas em tramitação no Congresso sobre as finanças públicas.

O levantamento das normas pode ser a base para um passo seguinte, em que se discuta e eventualmente se adotem providências, inclusive legislativas, para melhor harmonizar e sistematizar tais regras. Mais no sentido jurídico do que econômico, se poderia denominar tal empreitada de consolidação fiscal. Uma hipótese até poderia ser a criação de um Código de Finanças Públicas [1].

Cabe reconhecer que esse caminho, tanto teria vantagens, como de forçar a sistematização, de instigar a consistência entre regras e de oferecer maior segurança no conhecimento e na aplicação da legislação, quanto desvantagens, de significar um fim em si mesmo e remar na contramão da tendência da descodificação do Direito que privilegia as leis especiais e os microssistemas jurídicos.  

Enfim, seja qual for o caminho que se trilhe para a consolidação fiscal, acreditamos que um possível e importante ponto de partida possa ser o texto para discussão da Fipe, "Diagnóstico sobre Constitucionalização das Finanças Públicas no Brasil". Já passou a hora de se promover a sua reunião e integração não parece ser o ponto de dissenso, mas sim, o como fazê-lo.

 


[1] AFONSO, José Roberto; RIBEIRO, Leonardo Cezar. Um Novo Código Fiscal como Proposta de Reconstrução da Governança.  Disponível em: <https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/view/1832>. Acesso em: 19 jul. 2022.

Autores

  • é economista, professor do IDP e do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP/ULisboa), pesquisador do CAPP da Universidade de Lisboa, doutor e mestre em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutorado em Administração Pública pela Universidade de Lisboa.

  • é advogada, procuradora da Fazenda Nacional, mestre em Direito Constitucional pelo IDP-DF e especialista em Gestão Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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