Opinião

Tribunais, voto secreto, seriatim e perda de tempo

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14 de setembro de 2023, 12h16

O dia 5 de setembro amanheceu com manchetes a respeito da fala do presidente Lula, que disse: "a sociedade não tem que saber como é que vota um ministro da Suprema Corte. Sabe, eu acho que o cara tem que votar e ninguém precisa saber. Votou a maioria 5 a 4, 6 a 4, 3 a 2". 

A frase — seguramente mal colocada — reflete uma constante brasileira. presidentes que buscam tratar de temas complexos, derrapam semanticamente, e acarretam uma crise de segurança jurídica. Está sendo assim nesse evento atual. E foi assim com frases do tipo "se tomar vacina e virar jacaré, problema seu" no governo anterior.

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Presidente Lula foi comer jabuticaba depois do desfile de 7 de Setembro deste ano
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Possivelmente, apertando a "tecla SAP", o ex-presidente pode ter querido dizer: "a vacina, por ser uma questão de tecnologia em saúde ainda nova, apresenta riscos. Faça sua análise de risco no limite de sua liberdade". Ocorre que faltou repertório.

Repertório. Quando alguém vai tratar de temas técnicos, precisa ter um mínimo de repertório para que os assuntos tratados — muitos dos quais dotados de certo nível de complexidade — não sejam incompreendidos. E dessa incompreensão não sobrevenham efeitos negativos contra toda a população.

É o dito popular: "as palavras têm poder!". E como a sabedoria popular também deve ser ouvida! Se os detentores de poder atentassem para o senso comum, evitariam muitas gafes.

Se não damos ouvido ao senso comum, então, é preciso lembrar a ponderação de Umberto Eco, quando igualmente nos informa — com uma verve mais acadêmica — que com a linguagem podem-se fazer coisas. Com a linguagem podemos até mesmo fazer o exercício do poder. O linguista italiano, contudo, adverte que, ainda que seja possível fazermos coisas com a linguagem, não poderemos fazer uma coisa qualquer, mas "tão somente aquelas coisas, que aquelas palavras estejam aptas a produzir" [1].

Igualmente já advertiu Eco: um texto após produzido e separado de seu emissor (o auctoris, ou, o autor), acaba, mais das vezes, por dissociar-se da "vontade" deste mesmo autor. Em casos que tais, quando há dessemelhança entre a vontade do autor, a vontade do intérprete (ou de quem está ouvindo ou lendo) e a vontade do próprio texto, nasce a trilogia assim denomina pelo semiótico italiano:

a) a intentio operis: que traduz a intenção da própria obra-texto;
b) a intentio auctoris: que traduz a intenção do autor da obra, que nem sem se reduz no campo de capacidade do texto produzido; e
c) a intentio lectoris: tradutora da intenção do leitor/ouvinte-destinatário, podendo ser distinta da intentio auctoris, e muitas vezes demandando afastar-se das possibilidades literais da intentio operis.

Voltando à fala do presidente Lula, certo é que a questão atual tem um quê de necessidade para debate. Primeiro, é preciso compreender três palavrinhas: "verbatim", "seriatim" e "per curiam". Vou tentar simplificar demais doravante, com o risco de sacrificar alguns detalhes, no que peço perdão ao leitor. O espaço do texto é curto e, por isso, alguns detalhes podem ser sacrificados. Espero que o leitor não me julgue mal. Vejamos:

a) Seriatim: quando um Tribunal usa o julgamento "seriatim" cada juiz pode dar seu voto, em série ou sequência, mesmo que seja a velha perda de tempo de um voto longo e chatíssimo, apenas para concordar integralmente com um voto anterior.

b) Verbatim: quando o julgamento é "verbatim", um julgador vota e os demais que concordarem, apenas acompanham (como que seguindo as mesmas palavras anteriores). Evita aqueles votos compridos e enfadonhos apenas para concordar. Nestes casos os demais juízes deveriam se reservar a redigir um voto novo se "discordarem" do anterior, abrindo um voto dissidente. Ou quando concordarem, apresentarem motivos ou extensão distintos. Em síntese: quanto tiver alguma "diferença".

c) Per Curiam: já o voto "per curiam" não há necessariamente um voto "por julgador", mas, isso sim, quem decide é “O Tribunal”. Não necessariamente se identifica um julgador específico da Corte, pois a decisão e todas as suas razões são publicadas como uma decisão d’O Tribunal. Nas palavras do Legal Information Institute da Universidade de Cornell: "Um julgamento de um tribunal que não identifica nenhum juiz específico que possa ter escrito o voto. […] Uma decisão per curiam é uma opinião judicial emitida em nome do Tribunal e não de juízes específicos" [2]. Um detalhe: engana-se quem acredita que per curiam precisa exigir unanimidade. Em Gore v. Bush a Suprema Corte americana decidiu per curiam, mas, por maioria, apenas aparecendo o nome dos votos dissidentes.

O importante é ver que o Brasil precisa urgente acabar com a cafonice de votos longos, enxertados com enfadonhas citações de doutrinas e teorias, algumas vezes inconciliáveis entre si. Particularmente os votos emitidos simplesmente para concordar "integralmente" com o "judicioso voto do relator". É tempo e dinheiro dos contribuintes sendo jogados fora no ralo de uma soberba de pessoas que se encantam com o som de suas próprias vozes.

Neste ponto é preciso retomar algumas críticas. Por exemplo, os estudiosos dos tribunais superiores no Brasil notaram um crescimento do tamanho dos votos no Supremo Tribunal, curiosamente a partir do televisionamento das sessões pela TV Justiça. O voto virou um momento de vitrine, um estrelato, os 15 minutos de fama antevistos por Andy Warhol! Mas, gastando muito mais que 15 minutos, e às custas de recursos do contribuinte.

Existe a visão idílica que o televisionamento das sessões contribua para a confiança pública na jurisdição. Não tenho tanta certeza. Melhor seria o aprimoramento dos meios de responsabilização, e, no tema específico deste texto, a otimização de recursos, inclusive, tamanho de votos e, se possível, mitigar os votos "meramente concordantes".

Como diz o cidadão e a cidadã comuns — o "povão" mais uma vez — em sua simplicidade: "atirou no que viu, acertou no que não viu". A estranha fala do presidente Lula, quando colocada em outras perspectivas, deve abrir o debate sobre o "sistema de votação em órgãos judiciários colegiados". Violar a publicidade, jamais!  Mas, debater como otimizar tempo e recursos, sim!

O julgamento per curiam no Brasil a mim parece ser inconciliável com nossa Carta. A Constituição não permitiria o per curiam. Quando o inciso IX do artigo 93 da Carta Magna prescreve que "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade" buscou exatamente preservar os jurisdicionados de quaisquer restrições de publicidade. O mesmo inciso IX quando previu alguma possibilidade de exceção, fez de forma expressa informando que poderia "a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação". A exceção é estritamente à presença de pessoas. E não à indicação das razões de quem vota ou decide.

Logicamente ainda caberia conjugar o artigo 93 com o inciso LX do artigo 5º [3], e sem contar com o próprio socorro do artigo 37 caput:

"Artigo 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte."

Não se pode esquecer que o Brasil já tentou implantar o "juiz sem rosto", por exemplo, através do Projeto de Lei do Senado 87/2003[4] de autoria do então Senador Hélio Costa. O projeto tinha essa redação:

"Artigo 1º: As decisões judiciais contidas nos autos dos processos contra membros de organizações criminosas, e cujas circunstâncias ofereçam risco à vida do juiz, serão proferidas no anonimato e autenticadas com o selo do Tribunal a qual pertencer o magistrado.
Parágrafo único. Fica resguardado, em todas as formas de publicação, o sigilo da identidade do magistrado que proferir qualquer decisão nos termos desta Lei."

Novamente a sabedoria popular: "cesteiro que faz um cesto, com cipó te tempo, faz um cento!". Começam pelas tentativas aparentemente justificáveis. Depois, seguem além e não param mais.

Mas, volto ao mote deste texto. Mitigar a publicidade dos atos processuais e o dever de motivação por todos os julgadores, parece afronta direta à Constituição. Todavia, exterminar a pieguice da mera emissão de votos desnecessários, otimizar o uso do tempo, e respeitar o dinheiro dos contribuintes, isso sim, tanto é possível quanto é urgente.

 


[1] ECO, Umberto. Os Limites da Interpretação. São Paulo: Ed. Perspectiva. 1995

[2] Acesso em inglês via https://www.law.cornell.edu/wex/per_curiam. Tradução livre nossa.

[3] LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;

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