Opinião

Empréstimos consignados do INSS, a Disneylândia dos bancos

Autor

  • Rômulo Saraiva

    é professor advogado especialista em Previdência Social pela Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região (Esmatra VI) e pela Escola de Magistratura Federal no Rio Grande do Sul (Esmafe-RS) e mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP.

12 de setembro de 2023, 12h25

Com risco de inadimplência praticamente nulo e com os maiores juros do mundo, poderíamos dizer que o Brasil é o paraíso das instituições financeiras que oferecem empréstimo consignado, especialmente aos aposentados. É quase uma Disneylândia dos bancos brasileiros.

Da mesma forma que o parque da Disney World encanta crianças ao iludir que o mundo ali é mágico, os bancos brasileiros são tão atraentes quanto para fisgar contratualmente os aposentados — que não conseguem passar o mês com o que ganha — e expandir magicamente seu salário do INSS (e respectivo endividamento).

Divulgação
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Nos últimos dez anos, de acordo com estatísticas do Banco Central, o crédito pessoal de consignado para benefícios previdenciários quase quadruplicou, saindo de um volume de R$ 61 milhões/mês para R$ 233 milhões/mês. Somente na primeira metade desse ano foram R$ 1,4 bilhão de empréstimo previdenciário. Em outubro, com a chegada dos empréstimos em benefícios assistenciais, os bancos registraram uma alta de 328,6% na concessão de consignados, aumentando de R$ 1,5 bilhão para R$ 6,7 bilhões em apenas um mês. No trimestre desse ano, a Disney lucrou o equivalente, US$ 1,2 bilhão.

O presidente da Febraban (Federação Brasileira de Bancos), Isaac Sidney, chegou a pronunciar publicamente que os bancos, ao quererem democratizar o acesso ao crédito no país, já concedeu cerca de R$ 15 trilhões em empréstimos.

O setor bancário lucra com pessoas que ganham até o teto máximo da Previdência, atualmente em R$ 7.507,49, como também com o endividamento das camadas mais humilde da sociedade, que recebe R$ 400,00 a R$ 600,00 por mês, a exemplo dos destinatários dos programas sociais de transferência de renda, no perfil de quem está em vulnerabilidade social e financeira, ou benefício de prestação continuada no valor de um salário mínimo. No ano passado, quando a margem do consignável era de 40%, os empréstimos consignados para titulares do Auxílio Brasil (hoje Bolsa Família) chegaram a mais de R$ 5 bilhões em outubro, segundo dados do Banco Central.

Com a troca de governo federal em 2023, a nova gestão do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome vem tentando diminuir a sanha dos bancos em lucrar tanto às custas de famílias pobres. Tentam limitar o comprometimento salarial em função do tipo de benefício, o número de parcelas, a margem consignável e a redução do juro.

Não é tarefa fácil mexer no lucro dos banqueiros. Em março, quando o Conselho Nacional da Previdência Social se atreveu a reduzir o teto de juros de 2,14% para 1,70% ao mês a gritaria foi grande. Não gostaram e retaliaram sutilmente. Alguns pararam de oferecer empréstimo, uma estratégia de fazer birra com o governo, que terminou cedendo e adotou solução "meio-termo" de estacionar o juro mensal em até 1,97%.

Agora, novamente o governo faz nova investida para reduzir os juros. O Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) aprovou nova redução dos tetos de juros dos consignados. O limite para o empréstimo com desconto em folha caiu de 1,97% para 1,91%. Já na modalidade de cartão de crédito, o índice máximo caiu de 2,89% para 2,83%, proibindo bancos e financeiras de ofertar empréstimos com taxas superiores a estes patamares.

Mesmo com tais reduções, o valor dos juros é alto, tendo em vista que os bancos praticamente não têm risco de calote, além de que os aposentados costumam gerar mais dividendos com outros produtos. Os valores — que são descontados da folha de pagamento antes mesmo de os aposentados sonharem em colocar a mão no dinheiro — são o mais caro do mundo. Segundo levantamento do site Moneyou, entre 40 países pesquisados, o Brasil aparece em 2023 pela sexta vez seguida como primeiro lugar mundial de juros reais. A taxa brasileira, descontada a inflação prevista para os próximos doze meses, é de 7,54%. A pesquisa apontou o México em segundo lugar no levantamento, com taxa de juro real de 5,94% seguido por Colômbia de 5,16%. Para se ter uma equivalência, em Portugal os juros reais são de –1,38%.

A lucratividade dos bancos também ocorre em razão da leniência do governo. Todos os meses, as instituições financeiras têm acesso a informações privilegiadas, dados pessoais e financeiros, de pessoas que passaram a ganhar benefício previdenciário ou assistencial. O compartilhamento de dados ocorre à revelia do interessado, que não concede autorização formal, em total violação à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Este vazamento de dados previdenciários gera todo mês alta lucratividade aos bancos, pois com ele pode ser fazer o assédio e o marketing ostensivo de oferta de empréstimo, o que — além de retirar a paciência, o sossego e a privacidade dos novos aposentados — permite novos negócios. Uma vez os dados vazados, outro efeito colateral é que eles caem em mãos erradas, propiciando o cometimento de crimes e golpes previdenciários.

O país das "bolsas assistenciais": abertura de empréstimos consignados a pessoas vulneráveis dos programas federais de transferência de renda
Ao lado da Previdência Social, a Assistência Social assume um papel tão ou mais importante em conferir proteção social aos brasileiros, principalmente aos mais humildes. São pessoas que durante a fase adulta se programaram (ou falharam nessa programação) para poder, diante de contingências sociais (como a velhice, invalidez, morte), ter o sustento mínimo de um salário.

O braço da Seguridade Social, concretizado pela política assistencialista do governo, é viabilizar assistência aos mais necessitados. Desde a criação da Loas (Lei Orgânica de Assistência Social), em 1993, o conceito de necessitado vem severamente sendo reformulado. Antigamente, uma pessoa pobre tinha relativa facilidade de receber o benefício de prestação continuada. Hoje, em muitas situações diria que o extremamente pobre corre o risco de ficar sem o benefício.

O cardápio assistencialista oferta diferentes serviços, com duração, finalidade, público-alvo, área geográfica, idades, elegibilidade e ticket financeiro singulares. Há aqueles benefícios mais duradouros, a exemplo do benefício de prestação continuada, e os eventuais e os temporários. No Programa de Transferência de Renda (PTR) do governo federal, encontramos os seguintes valores atuais:

– Benefício por Prestação Continuada (BPC): desde 1996, no valor de R$ 1.320,00;
– Auxílio-inclusão: desde 2021, para pessoa com deficiência moderada ou grave e receba o BPC, trabalhe ou comece a trabalhar, no valor de R$ 660,00;
– Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti): desde 1997, no valor de R$ 40,00 mensal por criança/adolescente (família na área urbana) e R$ 25,00 (família na área rural);
– Bolsa Agente Jovem: desde 2001, para jovens vulneráveis de 15 a 17 anos, no valor de R$ 65,00 jovens/mês;
– Bolsa Orientador Social: desde 2001, no valor de R$ 200,00;
– Capacitação (300 horas/aula): desde 2001, no valor de R$ 3.100,00/ano;
– Bolsa Escola (BES): desde 2001, no valor mensal de R$ 15,00 por cada criança/ adolescente, limitado a três benefícios por família;
– Bolsa Alimentação (BAL): desde 2001, no valor mensal de R$ 15,00 por cada criança/ adolescente, limitado a três benefícios por família;
– Auxílio Gás: desde 2002, a cada dois meses, no valor de R$ 110,00;
– Programa Cartão Alimentação (PCA): desde 2003, no valor de R$ 50,00;
– Auxílio Emergencial: desde 2020, uma renda mínima aos mais vulneráveis durante a pandemia de COVID-19, atualmente extinto, em valor variável de R$ 600,00 a R$ 3.000,00;
– Auxílio Inclusão Produtiva Urbana: desde 2021, complemento de renda para beneficiários do Auxílio Brasil que comprovem vínculo de emprego com carteira assinada, atualmente extinto, em valor de R$ 200,00;
– Programa Bolsa Família (PBF): desde 2003, no valor mensal de R$ 600,00.

Aos destinatários do Programa Bolsa Família (PBF), atendendo aos requisitos da Assistência Social, admite-se também outras rendas complementares, a exemplo de:

– Benefício de Renda de Cidadania (BRC): pago para todos os integrantes da família, no valor de R$ 142,00 por pessoa;
– Benefício Complementar (BCO): pago às famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família, caso o Benefício de Renda de Cidadania não seja o suficiente para alcançar o valor mínimo de R$ 600,00 por família. O complemento é calculado para garantir que nenhuma família receba menos que o valor de R$ 600,00;
– Benefício Primeira Infância (BPI): no valor de R$ 150,00 por criança com idade entre 0 (zero) e 6 anos;
– Benefício Variável Familiar (BVF): pago às famílias que tenham em sua composição gestantes e/ou crianças, com idade entre 7 (sete) e 12 (doze) anos incompletos, e/ou adolescentes, com idade entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos incompletos, no valor de R$ 50 por pessoa que atenda aos critérios;
– Benefício Variável Familiar Nutriz (BVN): extra de R$ 50,00 por membro com até sete meses incompletos (nutriz), início em setembro;
– Benefício Extraordinário de Transição (BET): aplicado em casos específicos para garantir valor igual ou superior ao recebido no programa Auxílio Brasil (atualmente Bolsa Família), até maio de 2025;

Após quase exaurir o alfabeto da língua portuguesa com exemplos de benefícios assistenciais, percebe-se que o PTR buscar proporcionar cobertura a indivíduos ou famílias em situação de pobreza relevante.

Pergunta-se: é razoável autorizar que os bancos explorem com seus contratos de empréstimos uma fatia da sociedade em situação de miserabilidade e de vulnerabilidade social? Para quem ganha benefício assistencial, insuficiente até o fim do mês, faz sentido estes indivíduos se darem ao luxo de pagar juros altos?

Estamos falando de pessoas que não conseguem ter acesso, do ponto de vista educacional e profissional, ao mínimo existencial em sua fase adulta, para sustentar a si e a sua prole, de modo que são dependentes do apoio financeiro estatal. Sem educação de qualidade e, muito menos, financeira. Muitas delas não conseguem ler um contrato de empréstimo consignado ou, se leem, não conseguem entendê-lo. Se os bancos já costumam enganar, com suas letras contratuais minúsculas o chamado ‘homem-médio’, o que dizer de pessoas analfabetas?

Governo preocupado com agiotas. Democratização do crédito pessoal
Desde quando o benefício de prestação continuada foi criado em 1993 até o ano de 2022, remanescia uma preocupação do governo em blindar os beneficiários assistenciais de caírem na tentação de fazer empréstimo consignado. Por isso, não havia autorização na lei para a exploração desse mercado.

Mas em 2022 o governo fraquejou. Ao alterar a Lei nº 10.820/2003, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) rompeu a virgindade normativa de permitir a realização de empréstimos e financiamentos mediante crédito consignado para beneficiários do BPC e de programas federais de transferência de renda.

Na exposição de motivos da MP nº 1.106/2022, convertida na lei acima, o então todo-poderoso ministro da Economia, Paulo Guedes, caprichou na justificativa para abrir a porteira de empréstimo aos mais humildes, preocupado com juros alto dos agiotas. Vejamos a justificativa: "Ou seja, grande parte da população mais pobre pode estar tendo que recorrer a fontes informais de crédito, que tanto podem ser 'baratas' (caso, por exemplo, de empréstimos entre familiares) quanto muito caras e arriscadas (caso de agiotas)".

Assim, a solução encontrada pelo governo foi o setor bancário ser a alternativa para equacionar a questão. Em 2022, Bolsonaro editou a MP nº 1.106/2022 (convertida na Lei n. 14.431/2022) que ampliou a margem do consignado do INSS e autorizou empréstimo para benefícios assistenciais, em até 40% da renda.

Com as mudanças eleitorais, em 2023 Lula (PT) assinou a MP 1.164 (convertida na Lei nº 14.601/2023) que autoriza desconto em folha de pagamento para empréstimos, financiamentos e arrendamentos mercantis, sendo em até 45% dos benefícios previdenciários e até 35% para benefícios assistenciais.

A Disneylândia dos bancos: desconto automático em folha, risco ínfimo de inadimplemento e juros
Da mesma forma que o fundador da Disney, Walter Elias Disney, fez exigências na década de 1960 para que as leis fossem alteradas e seu parque, encravado em Orlando, tivesse o status de distrito autônomo — autogoverno com autonomia administrativa e fiscal —, os bancos brasileiros também precisaram do beneplácito estatal para poder emprestar dinheiro aos mais vulneráveis do Brasil, usando do velho instrumento da medida provisória (do presidente da República), convertida em lei (pelo Congresso).

Nos últimos dez anos, os empréstimos saíram de R$ 61 milhões/mês em 2013 e passaram para uma média, em 2023, de R$ 233 milhões/mês. Com a abertura escancarada de empréstimo aos benefícios assistenciais, a partir de 2022, a tendência é majorar essa lucratividade. Nesta pesquisa, não se inclui os benefícios assistenciais e de servidores públicos.

Ao se analisar os dados do Banco Central, a inadimplência de consignados no INSS está entre as mais baixas entre as opções de crédito disponíveis para pessoas físicas. Em 2023, a inadimplência do INSS foi a menor com 1,9%.  Essa baixa inadimplência tem relação com a garantia do desconto diretamente na folha de pagamento e influencia os juros praticados nas transações, pois eles tendem a serem mais baixos se comparados com outros produtos bancários (como o cheque especial, crédito pessoal sem desconto automático etc). Por outro lado, os juros do INSS não são tão baixo, se o risco de inadimplemento é pequeno. Conforme dados do Banco Central, no semestre de 2023, a taxa média de juros é de 26,3%.

A lucratividade é alta pois o universo de pessoas elegíveis a empréstimo é muito maior. Estamos falando de cerca de 38 milhões de aposentados do INSS, 4,7 milhões de beneficiários do BPC/LOAS e 21,1 milhões de famílias beneficiárias do Bolsa Família. Mesmo com esse juro aparentemente baixo, se comparado às demais modalidades de crédito pessoal, as instituições financeiras emprestaram R$ 15 trilhões e lucraram R$ 6,7 bilhões em apenas um mês.

Conclusão
Conhecido por suas célebres frases, Walt Disney — o fundador do famoso parque de diversões — certa vez falou que prefere "divertir as pessoas na esperança de que aprendam, do que ensiná-las na esperança de que se divirtam".

Contextualizando a analogia, os bancos brasileiros têm sabido explorar as esperanças dos aposentados e das famílias mais pobres, que perdem poder aquisitivo com o encolhimento salarial do INSS e muitas dependentes do programa de transferência de renda do governo, e se iludem quando fazem empréstimo ampliando seu poder aquisitivo imediato, desfrutando da sensação de ampliação salarial, ainda que momentaneamente e com um custo elevado.

O governo, infelizmente, tem autorizado que a sanha dos bancos por extrema lucratividade abocanhe esse tecido social, acarretando o óbvio: o indivíduo que já é assistido pelo Estado por não ter condições de prover as necessidades básicas do cotidiano também se endividará com o pouco que recebe.

Autores

  • é professor, advogado, especialista em Previdência Social pela Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região (Esmatra VI) e pela Escola de Magistratura Federal no Rio Grande do Sul (Esmafe-RS), membro da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-PE, colunista da Folha de S.Paulo e mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP.

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