Público & Pragmático

O mérito administrativo e o apagão do controle judicial

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10 de setembro de 2023, 8h00

O sistema de controle judicial da administração pública vive uma crise silenciosa aqui denominada de "apagão do controle". A ultrapassada teoria da impossibilidade de intromissão do Poder Judiciário sobre a discricionariedade (mérito) do ato administrativo fez nascer um conforto para os magistrados que desejam simplesmente não decidir. São milhares de decisões judiciais, todos os dias, que se valem deste suposto impedimento teórico e jurisprudencial para verdadeiramente se negar a promover o adequado controle judicial dos atos administrativos.

O grande desafio do advogado, nesse sentido, antes de apresentar a narrativa dos fatos, é primeiro comprovar de maneira profunda que aquele litígio nada tem a ver com o tal "controle do mérito administrativo". Em outras palavras, a análise do direito e o consequente julgamento integral da causa somente ocorrerão caso se ultrapasse o "juízo de admissibilidade" chamado "mérito administrativo". Do contrário, o cidadão receberá uma decisão padrão, útil para qualquer demanda envolvendo a administração pública, sustentando a existência de um limite de cognição judicial para aquela lide.

Esse apagão do controle tem resultado em uma infundada limitação ao artigo 5º, XXXV, da Constituição, isto é, num acobertamento judicial para diversas ilegalidades, violações a princípios e abusos de poder.

Tome-se como exemplo um processo administrativo disciplinar cujas formalidades tenham sido perfeitamente observadas, mas as provas tenham sido ilegalmente valoradas. Para ficar claro: imagine que a comissão processante tenha deixado de ouvir as verdadeiras testemunhas do fato, colhendo depoimentos apenas de informantes, e condenado o servidor público a pena de demissão. Parece muito claro haver aqui uma crucial ilegalidade violadora do devido processo legal e de regras processuais fundamentais. Afinal, são distintas as naturezas jurídicas de "informante" e "testemunha". No entanto, para a imensa maioria dos magistrados brasileiros, se o processo administrativo disciplinar observou o contraditório e a ampla defesa (leia-se: intimou o servidor para apresentar defesa) e respeitou as regras procedimentais contidas na legislação local, qualquer passo adiante estará impossibilitado pela proibição de controle do mérito do ato administrativo.

Outro exemplo: considere que uma determinada banca de concurso público foi contraditória com o espelho de prova e deixou de pontuar adequadamente o candidato na avaliação discursiva. Ou que a banca, ao corrigir a prova discursiva, deixou de motivar os erros e os respectivos descontos, aplicando apenas uma nota final geral. Nestes dois casos está clara a existência de nulidades que justificam o controle judicial do ato administrativo. Contudo, para parcela significativa dos magistrados brasileiros o controle estará impossibilitado sempre que para decidir for necessário primeiro compreender o enunciado de uma questão.

A pergunta que fica é: como será possível a uma pessoa narrar uma ilicitude envolvendo "valoração inadequada de prova testemunhal" e "contradição em espelho de prova" sem inevitavelmente passar pela história contextual dos fatos?

Não se desconhece a origem da tese aqui questionada. Todavia, a necessidade de preservação da harmonia e da independência dos Poderes não pode servir de subterfúgio para amordaçar o controle judicial e consequentemente convalidar e legitimar ilegalidades administrativas. A sensação atual é de que no Brasil o controle está reservado somente para os atos absurdamente ilícitos e, afora essa exceção, administração pública está livre para agir.

A falta de sintonia e o excesso de subjetividade decorrente deste escudo chamado "mérito administrativo" tem causado, ademais, a jocosa situação em que clientes de um mesmo advogado recebem decisões completamente distintas e antagônicas, embora tenham acionado o Judiciário narrando exatamente os mesmos fato e direito. Enquanto que para determinado magistrado o fato não envolve "controle do mérito", para o outro sim. Deste modo, a medida que um cliente recebe a tutela jurisdicional adequada para o seu direito o outro tem a porta do Judiciário fechada pelo "mérito administrativo".

Como explicar para um cidadão leigo a existência de duas decisões antagônicas para um mesmo fato e direito? Livre convicção do magistrado? Entretanto, como ficam acomodados os sentimentos de insegurança jurídica e de desconfiança do cidadão que teve a porta fechada pelo "controle do mérito", mas assistiu ao outro colega assumir o cargo público depois de ser beneficiado por outra decisão que, analisando os mesmos fato e direito, ultrapassou os limites do mérito e declarou nulo o ato administrativo?

O tempo tem mostrado que os paradigmas "legalidade", "razoabilidade" e "proporcionalidade" não servem mais para garantir eficácia e eficiência ao direito constitucional estampado no artigo 5º, XXXV, da Constituição. O controle do mérito do ato administrativo precisa de urgente viragem paradigmática. Do contrário, quebras da legalidade, da impessoalidade, da isonomia e da publicidade aumentarão exponencialmente e o estigma pré-1988, de uma administração pública do compadrio, voltará a vigorar no país. Surpreendente e lamentavelmente: agora com o aval e a anuência explícitas do Poder Judiciário.

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