Opinião

A Taxa Selic e as condenações da Fazenda Pública

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9 de setembro de 2023, 9h16

No Direito Processual Civil, Fazenda Pública significa Estado (poder público) em juízo, conceito que alcança apenas as pessoas jurídicas de direito público (União, estados, DF, municípios, autarquias e fundações). As empresas públicas e as sociedades de economia mista estão excluídas, pois são pessoas jurídicas de direito privado. Entretanto, se forem prestadoras de serviços públicos, enquadram-se no conceito de Fazenda Pública, como ocorre com a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT) (RE nº 229.696).

O artigo 1º-F da Lei nº 9.494/1994 [1], incluído pela Medida Provisória nº 2.180-34, de 2001, estabelecia que "os juros de mora, nas condenações impostas à Fazenda Pública para pagamento de verbas remuneratórias a servidores e empregados públicos, não poderão ultrapassar o percentual de seis por cento ao ano". Assim, nessas condenações da Fazenda Pública, os juros moratórios eram de 0,5% ao mês, não se aplicando o disposto no artigo 406 do Código Civil. Em relação à correção monetária, seguia-se o índice adotado pelo tribunal a que está vinculado o juiz.

Entretanto, a Lei nº 11.960/2009 deu nova redação ao artigo 1º-F da Lei Federal nº 9.494/1997: "Art. 1o-F. Nas condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, dos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança". O preceito adotou a TR (Taxa Referencial [2]) como índice de correção monetária e de juros de mora dos débitos da Fazenda Pública, desconsiderando que tal taxa "não pode se prestar como índice de correção monetária, como decidido na ADI nº 493 pelo STF". [3]

Após muita discussão e reclamação, no julgamento do RE nº 870.947/SE (Tema nº 810) [4], o STF reconheceu a inconstitucionalidade parcial do dispositivo e fixou a seguinte tese se sobre o assunto:

"1) O art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação dada pela Lei nº 11.960/09, na parte em que disciplina os juros moratórios aplicáveis a condenações da Fazenda Pública, é inconstitucional ao incidir sobre débitos oriundos de relação jurídico-tributária, aos quais devem ser aplicados os mesmos juros de mora pelos quais a Fazenda Pública remunera seu crédito tributário, em respeito ao princípio constitucional da isonomia (CRFB, art. 5º, caput); quanto às condenações oriundas de relação jurídica não-tributária, a fixação dos juros moratórios segundo o índice de remuneração da caderneta de poupança é constitucional, permanecendo hígido, nesta extensão, o disposto no art. 1º-F da Lei nº 9.494/97 com a redação dada pela Lei nº 11.960/09; e 2) O art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação dada pela Lei nº 11.960/09, na parte em que disciplina a atualização monetária das condenações impostas à Fazenda Pública segundo a remuneração oficial da caderneta de poupança, revela-se inconstitucional ao impor restrição desproporcional ao direito de propriedade (CRFB, artigo 5º, XXII), uma vez que não se qualifica como medida adequada a capturar a variação de preços da economia, sendo inidônea a promover os fins a que se destina."

A Corte Suprema corrigiu uma falha do Congresso, que, a pretexto de uniformizar os critérios de correção monetária e de juros moratórios incidentes nas condenações impostas à Fazenda Pública, violou[5] a Constituição para tentar suavizar o impacto das condenações impostas ao poder público. O artigo 5º da Lei nº 11.960/2009 atentou contra o direito de propriedade (artigo 5º, XXII, da CF/1988) e os princípios constitucionais da isonomia e da razoabilidade (artigo 37 da CF/1988).

A partir do que foi definido no Tema nº 810 pelo STF, o STJ ajustou a tese do Tema nº 905 para deixar assentado o seguinte[6]:

"3. Índices aplicáveis a depender da natureza da condenação.
3.1 Condenações judiciais de natureza administrativa em geral.
As condenações judiciais de natureza administrativa em geral, sujeitam-se aos seguintes encargos: (a) até dezembro/2002: juros de mora de 0,5% ao mês; correção monetária de acordo com os índices previstos no Manual de Cálculos da Justiça Federal, com destaque para a incidência do IPCA-E a partir de janeiro/2001; (b) no período posterior à vigência do CC/2002 e anterior à vigência da Lei 11.960/2009: juros de mora correspondentes à taxa Selic, vedada a cumulação com qualquer outro índice; (c) período posterior à vigência da Lei 11.960/2009: juros de mora segundo o índice de remuneração da caderneta de poupança; correção monetária com base no IPCA-E.
3.1.1 Condenações judiciais referentes a servidores e empregados públicos. As condenações judiciais referentes a servidores e empregados públicos, sujeitam-se aos seguintes encargos: (a) até julho/2001: juros de mora: 1% ao mês (capitalização simples); correção monetária: índices previstos no Manual de Cálculos da Justiça Federal, com destaque para a incidência do IPCA-E a partir de janeiro/2001; (b) agosto/2001 a junho/2009: juros de mora: 0,5% ao mês; correção monetária: IPCA-E; (c) a partir de julho/2009: juros de mora: remuneração oficial da caderneta de poupança; correção monetária: IPCA-E.
3.1.2 Condenações judiciais referentes a desapropriações diretas e indiretas. No âmbito das condenações judiciais referentes a desapropriações diretas e indiretas existem regras específicas, no que concerne aos juros moratórios e compensatórios, razão pela qual não se justifica a incidência do art. 1º-F da Lei 9.494/97 (com redação dada pela Lei 11.960/2009), nem para compensação da mora nem para remuneração do capital.
3.2 Condenações judiciais de natureza previdenciária.
As condenações impostas à Fazenda Pública de natureza previdenciária sujeitam-se à incidência do INPC, para fins de correção monetária, no que se refere ao período posterior à vigência da Lei 11.430/2006, que incluiu o art. 41-A na Lei 8.213/91. Quanto aos juros de mora, incidem segundo a remuneração oficial da caderneta de poupança (art. 1º-F da Lei 9.494/97, com redação dada pela Lei n. 11.960/2009).
3.3 Condenações judiciais de natureza tributária. A correção monetária e a taxa de juros de mora incidentes na repetição de indébitos tributários devem corresponder às utilizadas na cobrança de tributo pago em atraso. Não havendo disposição legal específica, os juros de mora são calculados à taxa de 1% ao mês (art. 161, § 1º, do CTN). Observada a regra isonômica e havendo previsão na legislação da entidade tributante, é legítima a utilização da taxa Selic, sendo vedada sua cumulação com quaisquer outros índices."

Quanto aos juros de mora, nas condenações em geral contra a Fazenda Pública (ações indenizatórias e ações que envolvem a remuneração de servidores públicos), devem ser fixados com base no índice oficial de remuneração básica aplicado à caderneta de poupança: 0,5% ao mês, caso a taxa Selic ao ano seja superior a 8,5%; 70% da taxa SELIC ao ano, mensalizada, nos demais casos (artigo 1º-F da Lei nº 9.494/1997, com a redação dada pela Lei nº 11.960/2009, c/c a Lei nº 8.177/1991, redação dada pela Lei nº 12.703/2012).

Quando se imaginou que a matéria estaria pacificada, foi publicada a Emenda Constitucional nº 113/2021 que, seu artigo 3ºestabeleceu o seguinte:

"Artigo 3º Nas discussões e nas condenações que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, de remuneração do capital e de compensação da mora, inclusive do precatório, haverá a incidência, uma única vez, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), acumulado mensalmente."

O novo preceito impôs que a taxa Selic [7], que já era utilizada nas causas tributárias, passe a ser utilizada como índice da correção monetária e dos juros moratórios em todos os casos em que houver condenação da Fazenda Pública. Então, a partir de 09/12/2021, data em que foi publicada e que entrou em vigor a referida emenda, os débitos judiciais decorrentes das condenações da Fazenda Pública, independentemente de sua natureza, deverão ser atualizados com o emprego da taxa Selic como índice de remuneração do capital e de compensação da mora. Essa opção do legislador constituinte derivado está sendo questionada no STF por meio das ADIs nºs 7.074 e 7.064, em que se alega que a supracitada taxa não recompõe adequadamente as perdas inflacionárias nem indeniza justamente o credor que sofre com a (de)mora. Defende-se que a Corte Suprema já definiu que, nas condenações não tributárias do poder público, o melhor indexador para preservar o poder aquisitivo da moeda, isto é, o direito de propriedade dos credores, é o IPCA-E ou o INPC. 

E a crítica se mostra fundada, uma vez que a taxa Selic, a rigor, é taxa referencial de juros, não de correção monetária. Ela "reflete a remuneração de investidores pela aquisição de títulos públicos"[8], sendo também empregada em caso de mora na quitação de tributos federais, nos termos do artigo 39, § 4º, da Lei nº 9.250/95.

De outro lado, há de se admitir que a SELIC, embora de caráter volátil, sensível a oscilações por diversos fatores, "não é taxa pura de juros, pois abrange a atualização monetária e a expectativa inflacionária" [9], de modo que o Judiciário tem vedado sua cumulação com qualquer outro índice de correção monetária (Súmula nº 523 do STF e, v.g., REsp n. 1.875.198/SP, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 24/11/2020, DJe de 3/12/2020). O entendimento é o de que a incidência da Selic impede aplicação de outro índice de atualização da dívida, pois ela engloba tanto os juros moratórios como a correção monetária.

Se o governo utiliza a Selic para cobrar seus créditos fiscais, parece razoável admiti-la também como índice de atualização de suas dívidas, já que ela costuma suplantar 1% ao mês. O problema é que, segundo o enunciado nº 20 da 1ª  Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal[10], "a utilização da taxa Selic como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do artigo 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3º, da Constituição, se resultarem juros reais superiores a doze por cento ao ano". [11]

Também há de se considerar que a Selic adotada no plano judicial para a compensação da mora é a Selic mensal, não a capitalizada, utilizada no mercado financeiro. A esse respeito, há muito Márcio José de Aguiar Barbosa[12] esclareceu:

"(…) não é possível haver completa correlação entre a taxa Selic para fins financeiros (i.e., para cálculo dos juros incidentes sobre títulos da dívida pública interna) e essa mesma taxa para fins tributários (i. e., para cálculo de juros moratórios incidentes sobre créditos tributários inadimplidos). É que o mercado financeiro, tanto no que respeita aos títulos públicos, quanto aos títulos privados, é generalizada a utilização de taxas de juros acumuladas racionalmente, isto é, de forma composta — forma de acumulação vedada na área tributária — em face de não ter o CTN, no seu artigo 161, excepcionalizado a regra do Decreto 22.626/33 ou da Súmula 121 do STF."

Assim, se o período de inadimplência é muito longo, a Selic mensal (juros simples) utilizada em juízo (para atualizar o valor das condenações da Fazenda Pública) ficará muito aquém daquela que baliza o mercado financeiro (Selic capitalizada), restando claro o prejuízo ao credor num contexto de inflação.

Ademais, o emprego da Selic como índice de juros de mora e de correção monetária promove um desarranjo no sistema, pois os juros moratórios e a correção monetárias são institutos diversos, com propósitos distintos. Os juros moratórios representam uma indenização, isto é, têm o objetivo de indenizar o credor pelo descumprimento de um pacto, funcionando como uma sanção ao devedor pelo retardamento no cumprimento da obrigação [13]. A correção monetária é um reajuste destinado a preservar o poder aquisitivo da moeda diante da sua desvalorização nominal provocada pela inflação.

Ela não representa nenhum plus, isto é, nenhum acréscimo remuneratório efetivo, mas, tão somente, a recomposição da perda do poder aquisitivo da moeda corroído pela inflação verificada entre o período em que houve o inadimplemento. Também há de se considerar que, conquanto os termos finais dos juros moratórios e da correção monetária coincidam (incidem até o pagamento da dívida), geralmente são diferentes os termos iniciais, havendo particularidades a serem observadas. São várias as súmulas que disciplinam a matéria.

E o novo preceito constitucional, ao empregar a expressão "uma única vez" para afastar a incidência de juros sobre juros (capitalização), deixa dúvidas e questionamentos sobre se o valor deveria ficar congelado após a elaboração dos cálculos de liquidação e a expedição do precatório/RPV. Isso foi, então, esclarecido pelo artigo 7º da Resolução nº 822/2023 do CJF: "Art. 7º Para a atualização monetária de precatórios e RPVs tributários e não tributários, serão utilizados, da data-base informada pelo juízo da execução até o efetivo depósito, os índices estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, ressalvado o disposto no artigo 74 desta Resolução".

Enfim, se a mudança é vantajosa para a Fazenda Pública, parece não o ser para os cidadãos que com ela litigam, por longos anos, em causas indenizatórias, desapropriatórias, previdenciárias etc. Seja como for, cumpre aguardar a decisão da Suprema Corte nas supracitadas ADIs.

 


[1]Art. 1º-F. Os juros de mora, nas condenações impostas à Fazenda Pública para pagamento de verbas remuneratórias devidas a servidores e empregados públicos, não poderão ultrapassar o percentual de seis por cento ao ano.”

[2] A TR é uma taxa básica de juros, um indexador utilizado “para corrigir os saldos das cadernetas de poupança” e também do FGTS. Era calculada com base na remuneração mensal média dos CDBs/RDBs (FREITAS, Newton. Dicionário Oboé de Finanças. 14. ed. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2004, p. 331). Atualmente é calculada com base na Taxa Básica Financeira – TBF, apurada a partir das Letras do Tesouro Nacional (LTNs).

[3] CARVALHO, Marcos Antônio Garapa de. A nova disciplina dos juros e da correção monetária nas condenações da Fazenda Pública. Revista da I Jornada de Estudos de Direito Civil e Processo Civil. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Brasília: ESMAF, 2010, p. 322.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 870.947/SE. Relator: Ministro Luiz Fux.  Brasília/DF. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/listarDiarioJustica.asp?tipoPesquisaDJ=AP&numero=870947&classe=RE>. Acesso em: 10/12/2018.

[5]  Houve “contrabando legislativo”. Segundo Marcos Antônio Garapa de Carvalho, “(…) como a matéria dos juros aplicáveis nas condenações da Fazenda Pública, introduzida pelo Senado Federal no texto aprovado na Câmara, não guarda qualquer pertinência com o objeto principal da MP, muito menos lhe é afim ou conexa, aquela alteração é flagrantemente inconstitucional, por ofender o art. 59, parágrafo único, da CF/1988” já que disciplinou matéria afeta à lei complementar. Ele destacou que também não havia a menor urgência para se alterar, às pressas, a sistemática da incidência de juros e correção monetária nas condenações impostas à Fazenda Pública (CARVALHO, Marcos Antônio Garapa de. A nova disciplina dos juros e da correção monetária nas condenações da Fazenda Pública. Revista da I Jornada de Estudos de Direito Civil e Processo Civil. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Brasília: ESMAF, 2010, p. 318-319 e 321).

[7] O “Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC), criado em novembro de 1979 pelo Banco Central e pela Associação Nacional das Instituições Financeiras do Mercado Aberto – ANDIMA, realiza a custódia e a liquidação financeira das operações envolvendo títulos públicos”. Por sua vez, a taxa SELIC, fixada pelo Comitê de Política Monetária (COPOM) do Banco Central do Brasil, “é a média ajustada dos financiamentos diários apurados no SELIC para títulos federais, conforme definição da Circular n. 2.900, de 24 de junho de 1999, do BC, art. 2º, parágrafo 1º)” (FREITAS, Newton. Dicionário Oboé de Finanças. 14. ed. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2004, p. 304-305).

[8] FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. Vol. Único. 4. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 868.

[9] FARIAS; BRAGA NETTO; ROSENVALD, op. cit., 2019, p. 868.

[10] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Revista das jornadas do CJF: direito civil, direito comercial, direito processual civil, prevenção e solução extrajudicial de litígios / Superior Tribunal de Justiça, [Gabinete do Ministro Diretor da Revista], Conselho da Justiça Federal. – Brasília: Superior Tribunal de Justiça, 2018, p. 26.

[11] Porém, quanto a esse último aspecto, é preciso consignar que, no âmbito judicial, para a atualização dos valores, não se utiliza a SELIC capitalizada, mas a SELIC mensal, de modo que não se verifica a propalada incompatibilidade com a regra do art. 591 do Código Civil. E aqui eu aproveito para agradecer ao colega juiz federal Márcio José de Aguiar Barbosa pela troca de ideias.

[12] BARBOSA, Márcio José de Aguiar. A ilusão da SELIC. Revista Jurídica da Procuradoria Geral da Fazenda Estadual. N. 40. Belo Horizonte: Procuradoria Geral da Fazenda Estadual, Out/Dez de 2000, p. 11.

[13] FARIAS; BRAGA NETTO; ROSENVALD, op. cit., 2019, p. 867.

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