Opinião

Watchdog é um auxiliar do administrador judicial

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7 de setembro de 2023, 13h17

Já há algum tempo, tem sido notícia uma figura nominada por watchdog ­­— "cão de guarda" —, nomeada pelo juiz no âmbito dos processos de recuperação judicial de empresas. Apesar de não ser tão recente, o tema rompeu a barreira das publicações especializadas a partir das manchetes envolvendo recuperações judiciais de maior repercussão, como os casos das Lojas Americanas, da Odebrecht e da Itapemerim, por exemplo.

Nos processos em que a nomeação dessa figura acabou virando notícia sua utilização se deu, basicamente, em dois contextos: ou como um incremento na fiscalização das atividades do devedor, sem que tivesse sido necessária a destituição do administrador, ou fazendo o papel do gestor judicial, após destituição dos administradores.

Depois de stay period e cram down estaríamos nós recepcionando mais um instituto do direito norte-americano? Aliás, que instituto é este do cão de guarda — ou observador judicial — em uma recuperação judicial?

Ninguém discute que sociedade brasileira nas últimas décadas tem sido bastante influenciada pela cultura norte-americana. Assim, se na primeira metade do século passado citações e brocardos em latim, italiano e francês davam um tom erudito ao que se escrevia, hoje, talvez, esse papel seja realizado pelas expressões em inglês.

Sem pretender exercer o papel de Policarpo Quaresma e deixando de lado eventual ufanismo, o fato é que, muitas vezes, essas expressões importadas ou são mal empregadas ou acabam gerando mais confusão a respeito do que se pretende tratar, especialmente quando o direito positivo interno já disciplina a questão.

É o caso, por exemplo, da moratória decorrente do recebimento da petição inicial da recuperação judicial — stay period —, da concessão da recuperação judicial a partir do quórum alternativo previsto no § 1º, do artigo 58, da Lei 11.101/2005 — cram down e, agora, da figura do watchdog, em que a compreensão a partir do que se tem lá fora não parece deixar as coisas mais claras por aqui.

Em um processo de recuperação judicial são muitos os atores em cena. Nele, um dos personagens que cumula mais atribuições é o administrador judicial. Basta ver, por exemplo, o longo rol previsto no artigo 22 da Lei 11.101/2005 que, embora concentre parte de suas funções, não é o único que dispõe a respeito, pois é certo falar que seu papel vai além do que ali está previsto, sendo sua competência disciplinada ao longo de toda a citada lei.

Na recuperação judicial, o administrador judicial, dentre outras coisas, presidirá a assembleia, fará a verificação dos créditos, prestará relatórios mensais a respeito das atividades do devedor, funcionará como um órgão consultivo emitindo pareceres sobre os mais variados temas envolvendo o devedor e sua atividade empresarial, excepcionalmente será o gestor judicial na hipótese de afastamento do administrador e cumulará as funções do comitê de credores quando este não for instalado (o que, no geral, é regra nos processos de recuperação de empresas), além de exercer a fiscalização do devedor. Nos feitos falimentares, o administrador judicial também funcionará na arrecadação e avaliação dos bens, na realização do ativo, no pagamento aos credores, na representação da massa falida etc.

Segundo o artigo 21 da Lei 11.1001/2005 será ele profissional idôneo, "preferencialmente advogado, economista, administrador de empresas ou contador, ou pessoa jurídica especializada".

São muitas as atribuições — além de bastante variadas — por isso é cada vez mais comum a existência de pessoas jurídicas especializadas, composta por profissionais das mais diversas áreas, hábeis a exercerem todas as competências previstas em lei.

O ideal, portanto, é que o profissional ou a pessoa jurídica nomeada tenha estrutura suficiente para desempenhar todas as muitas competências previstas na Lei 11.101/2005. Isso, claro, para os processos e situações mais cotidianas, usuais, normais — as quais, comumente, já apresentam certa complexidade. Ou seja, nos processos em geral de recuperação de empresas o que se busca é um profissional ou uma pessoa jurídica especializada que consiga dar resposta às demandas igualmente usuais.

No entanto, há processos que extrapolam tais limites, seja pelo vulto econômico envolvido, pela quantidade de credores, número de estabelecimentos, ramo de atividade, ou qualquer outro ponto que dê um colorido especial ao caso.

Assim, por exemplo, nas falências em geral será o administrador judicial o responsável pela avaliação dos bens arrecadados, porém existirão situações em que ele necessitará de apoio de profissional ainda mais especializado.

Por isso, a previsão do artigo 22, I, h, da Lei 11.101/2005, que atribui ao administrador judicial a competência para "contratar, mediante autorização judicial, profissionais ou empresas especializadas para, quando necessário, auxiliá-lo no exercício de suas funções".

Além dessa previsão genérica sobre a possibilidade de o administrador judicial poder contar com o apoio de outros profissionais contratados para auxiliá-lo, a Lei 11.101/2005 volta a reafirmar a possibilidade quando dispõe que poderá ele contar com auxílio de profissionais ou empresas especializadas na verificação dos créditos [1], de avaliador na falência [2], de advogados na representação processual da massa falida [3] e de consultores, corretores ou leiloeiros na realização dos ativos do falido [4].

Avaliadores, leiloeiros e advogados são os profissionais que costumam ser mais comumente contratados para auxiliar os administradores judiciais. Mas, obviamente, como visto, não são os únicos auxiliares possíveis.

Aliás, a complexidade de determinados casos tem sido usada, inclusive, para justificar a nomeação de mais de uma pessoa jurídica como administradora judicial, como, por exemplo, aconteceu na recuperação judicial do Cruzeiro Esporte Clube.

E o watchdog se insere justamente nesse contexto, em que há casos que extrapolam os limites das exigências cotidianas, usuais, ordinárias. Em recuperações judicias de tal magnitude, por vezes são nomeados mais de um administrador judicial e em outras pode ser que sujam demandas processuais que exijam que o administrador nomeado seja auxiliado por outro profissional. Importante que fique claro que, assim como é ampla a autorização legal para a contratação de auxiliares do administrador judicial, igualmente são amplas as possibilidades de utilização da figura do observador judicial pelo juízo recuperacional. O fundamental é que o trabalho desempenhado pelo administrador judicial e seus auxiliares seja bem conduzido e que o juiz que presidir o processo esteja bem assistido.

Como se observa, por mais que se pretenda explicar tal figura à luz do direito comparado, o fato é que as disposições previstas na Lei 11.101/2005 dispensam essa tentativa. Ao contrário, temos base legal suficiente para fundamentar a utilização de tal ferramenta.

É claro que, por mais que eventualmente pareça simples explicar tal figura, obviamente desempenhará o auxiliar tarefas complexas em processos igualmente complexos, afinal nomeado justamente para atuar em apoio ao administrador judicial em demandas e situações peculiares.

A tendência, em nosso sentir, é que sigamos vendo a contratação desse tipo de auxiliar em casos e situações muito pontuais, como já vem acontecendo, em que se pôde notar a nomeação do watchdog para que este auxiliasse o administrador judicial em sua função fiscalizatória, a partir de uma série de particularidades muito específicas dos processos em questão. Foram situações em que se realizou a nomeação de um auxiliar para que este estivesse mais próximo do dia a dia operacional do devedor, representando, assim, um incremento na atividade fiscalizatória realizada pelo juízo recuperacional.

É possível, ainda, que haja a contratação de um auxiliar do administrador judicial para fiscalização mais próxima do fluxo de caixa do devedor, ou do relacionamento deste com eventuais fornecedores ou clientes. Assim como é possível um observador, por exemplo, acompanhando mais de perto os processos decisórios do devedor, tendo um assento – como ouvinte – em um eventual conselho diretivo. Assim como seria possível a contratação de um auxiliar para fazer as vezes do gestor judicial – até que a assembleia aprove um nome na forma do artigo 35, I, e, da Lei 11.101/2005[5] – caso o administrador judicial não tenha a expertise necessária para gerir o negócio, ainda que momentaneamente – talvez, inclusive, essa seja até uma medida mais adequada em boa parte das situações.

Enfim, são muitas as possibilidades e não há a menor pretensão de esgotá-las, até porque isso seria desnecessário, afinal, conforme expressamente autorizado pela Lei 11.101/2005, o administrador judicial poderá requerer a contratação de um auxiliar sempre que julgar necessário e, obviamente, o magistrado que presidir a recuperação judicial somente deverá deferir quando entender que a situação realmente foge à normalidade.

A intenção foi, portanto, tentar explicar a figura do watchdog — ou "observador judicial" — à luz do nosso direito positivo, a fim de que o tema possa ser adequadamente tratado de acordo com o que nós temos previsto em nossa legislação. Figuras e institutos estrangeiros são sempre bem-vindos, mas desde que já não exista o adequado tratamento do tema pela legislação interna, caso contrário o que teremos é mais confusão. É claro que traçar paralelos com a experiência estrangeira pode ser bastante produtivo, especialmente quando se está a tratar de alterações legislativas ou de temas ainda não disciplinados expressamente pelo direito positivo interno. Contudo, explicar figuras que encontram assento na legislação interna à luz do direito estrangeiro, parece trazer mais penumbra do que clareza.

O presente texto, portanto, não é uma crítica ao uso de expressões estrangeiras ou à menção a institutos estrangeiros, mas, sim, a tentativa de explicar, à luz do nosso direito positivo, a figura do watchdog — ou observador judicial — que, a bem da verdade, não passa de um auxiliar do administrador judicial.

 


[1] "Artigo 7º A verificação dos créditos será realizada pelo administrador judicial, com base nos livros contábeis e documentos comerciais e fiscais do devedor e nos documentos que lhe forem apresentados pelos credores, podendo contar com o auxílio de profissionais ou empresas especializadas."

[2] Artigo 22, III, h: "contratar avaliadores, de preferência oficiais, mediante autorização judicial, para a avaliação dos bens caso entenda não ter condições técnicas para a tarefa;"

[3] Artigo 22, III, n: "representar a massa falida em juízo, contratando, se necessário, advogado, cujos honorários serão previamente ajustados e aprovados pelo Comitê de Credores;"

[4] Artigo 142, § 2º-A, III: "poderá contar com serviços de terceiros como consultores, corretores e leiloeiros;"

[5] "Artigo 35. A assembléia-geral de credores terá por atribuições deliberar sobre:

I – na recuperação judicial:

[…]

e) o nome do gestor judicial, quando do afastamento do devedor;"

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