Opinião

A continuidade delitiva aplicada ao processo administrativo e a visão do STJ

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7 de setembro de 2023, 7h04

Dispõe o Código Penal, em seu artigo 71, que "quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro", impondo, então, a aplicação da pena de um só dos crimes ou aquela que for mais grave, conforme o caso, aumentada de um sexto a dois terços.

A caracterização da infração continuada visa a observância do princípio do bis in idem, cuja definição, em termos simples, é a vedação de aplicar-se duas penas ou sanções sobre a mesma falta.

Assim sendo, para que seja caracterizada a continuidade delitiva, ou seja, a prática de continuadas infrações — e não a habitualidade criminosa, instituto diverso , exige-se, segundo a disposição supramencionada, o cometimento de crimes da mesma tipificação legal — mesma espécie , e nas mesmas condições de tempo, de lugar, bem como que os crimes tenham sido cometidos segundo o mesmo modus operandi e, ainda, que tais delitos configurem uma continuação do primeiro ilícito praticado.

Em relação ao requisito relacionado ao tempo da prática dos crimes, o Superior Tribunal de Justiça, em regra, não admite que o intervalo de tempo seja superior a trinta dias, conforme se observa no julgamento do AgRg no REsp nº 1.747.139/RS, o qual transcrevo trecho da ementa:

O artigo 71, caput, do Código Penal não delimita o intervalo de tempo necessário ao reconhecimento da continuidade delitiva. Esta Corte não admite, porém, a incidência do instituto quando as condutas criminosas foram cometidas em lapso superior a trinta dias.

Ademais, no que tange ao requisito relativo ao cometimento dos crimes no mesmo lugar, a Corte Superior também firmou o entendimento de que os ilícitos não precisam, necessariamente, ter sido praticados no mesmo lugar, sendo admitida a identidade de lugares também na hipótese de lugares vizinhos ou limítrofes, como já destacado em diversos julgamentos, a exemplo do RHC 164167/SP e HC 490707/SC.

Assim, descritos os principais pontos a respeito da continuidade delitiva segundo o Código Penal, seguimos adiante com o tema.

Aplicação subsidiária da legislação penal ao processo administrativo
Muito se discute a respeito da possibilidade ou não de aplicação de dispositivos da legislação penal no âmbito de procedimentos administrativos.

Nesta seara, importante destacar a Teoria do Diálogo das Fontes, trazida da Alemanha por Erik Jayme, cuja primordial lição é tratar o ordenamento jurídico de forma unitária, ou seja, como um todo.

Segundo tal teoria, as normas, oriundas das fontes do Direito  Código Penal, Código Civil, etc , que compõem o ordenamento jurídico, não se excluem e, sim, se complementam, tratando-se tais fontes de uma mera divisão metodológica, didática.

Assim, se extrai da teoria que o Direito deve ser aplicado de forma ampla, tendo por objetivo primitivo, a resolução dos conflitos.

A aplicabilidade do diálogo das fontes já foi reconhecida no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que expressamente expôs que "o Direito deve ser compreendido, em metáfora às ciências da natureza, como um sistema de vasos comunicantes, ou de diálogo das fontes (Erik Jayme), que permita a sua interpretação de forma holística. Deve-se buscar, sempre, evitar antinomias, ofensivas que são aos princípios da isonomia e da segurança jurídica, bem como ao próprio ideal humano de Justiça", conforme se observa da ementa do julgamento do AgRg no REsp 1.483.780/PE, de relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho.

Desta forma, trazendo-se tal conceito ao tema do presente artigo, é manifesta a estrutura sancionatória e a natureza punitiva do Direito Administrativo, encontrando alguma sintonia com o Direito Penal.

Esta conformidade entre as duas searas do Direito já foi reconhecida também pela Corte Superior, ao aplicar, por exemplo, benesse trazida da legislação penal a procedimentos administrativos, como no caso da retroatividade da lei mais benéfica, senão vejamos:

"DIREITO ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA AO ACUSADO. APLICABILIDADE. EFEITOS PATRIMONIAIS. PERÍODO ANTERIOR À IMPETRAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULAS 269 E 271 DO STF. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973. APLICABILIDADE. I – Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte na sessão realizada em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do provimento jurisdicional impugnado. In casu, aplica-se o Código de Processo Civil de 1973. II – As condutas atribuídas ao Recorrente, apuradas no PAD que culminou na imposição da pena de demissão, ocorreram entre 03.11.2000 e 29.04.2003, ainda sob a vigência da Lei Municipal n. 8.979/79. Por outro lado, a sanção foi aplicada em 04.03.2008 (fls. 40/41e), quando já vigente a Lei Municipal nº 13.530/03, a qual prevê causas atenuantes de pena, não observadas na punição. III – Tratando-se de diploma legal mais favorável ao acusado, de rigor a aplicação da Lei Municipal nº 13.530/03, porquanto o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no artigo 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador. Precedente. IV – Dessarte, cumpre à Administração Pública do Município de São Paulo rever a dosimetria da sanção, observando a legislação mais benéfica ao Recorrente, mantendo-se indenes os demais atos processuais. V – A pretensão relativa à percepção de vencimentos e vantagens funcionais em período anterior ao manejo deste mandado de segurança, deve ser postulada na via ordinária, consoante inteligência dos enunciados das Súmulas nº 269 e 271 do Supremo Tribunal Federal. Precedentes. VI – Recurso em Mandado de Segurança parcialmente provido. (RMS n. 37.031/SP, relatora ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 8/2/2018, DJe de 20/2/2018)."
"ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. PODER DE POLÍCIA. SUNAB. MULTA ADMINISTRATIVA. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. POSSIBILIDADE. ARTIGO 5º, XL, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRINCÍPIO DO DIREITO SANCIONATÓRIO. AFASTADA A APLICAÇÃO DA MULTA DO ARTIGO 538, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC. I. O artigo 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage. Precedente. II. Afastado o fundamento da aplicação analógica do artigo 106 do Código Tributário Nacional, bem como a multa aplicada com base no artigo 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil. III. Recurso especial parcialmente provido". (REsp nº 1.153.083/MT, relator ministro Sérgio Kukina, relatora para acórdão ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 6/11/2014, DJe de 19/11/2014.)

Percebe-se, portanto, que a aplicação subsidiária da legislação penal ao processo administrativo, em atenção à Teoria do Diálogo das Fontes, é amplamente reconhecida no ordenamento jurídico, sendo tal entendimento validado pelo STJ.

O STJ e a teoria da continuidade delitiva aplicada no âmbito administrativo
Conforme brevemente explanado nos tópicos anteriores, o Superior Tribunal de Justiça aplica, de forma ampla, a legislação penal no âmbito administrativo.

Mas e no que tange a teoria da continuidade delitiva? Será que tal instituto também é reconhecido e aplicado aos processos administrativos?

A jurisprudência nos mostra que sim, cujos casos são, inclusive, ressaltados em Informativos de Jurisprudência daquela Corte Superior.

Vejamos a ementa do julgamento do AgInt no REsp 1.783.746/RJ, de relatoria do ministro Benedito Gonçalves, no qual foi expressamente aplicada a teoria em questão:

"PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA CONTINUADA. APLICAÇÃO DE MULTA SINGULAR. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. REEXAME DO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. FUNDAMENTO AUTÔNOMO NÃO IMPUGNADO. SÚMULA 283/STF. 1. Tendo o recurso sido interposto contra decisão publicada na vigência do Código de Processo Civil de 2015, devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele previsto, conforme Enunciado Administrativo nº 3/2016/STJ. 2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça define que 'há continuidade infracional quando diversos ilícitos de idêntica natureza são apurados durante mesma ação fiscal, devendo tal medida ensejar a aplicação de multa singular' (AgInt no AREsp n. 1.129.674/RJ, relator ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 8/3/2021, DJe de 11/3/2021). 3. A Corte de origem, após ampla análise do conjunto fático-probatório, firmou compreensão de que há continuidade delitiva no caso concreto, bem como de que a sanção aplicada pela ANP é desproporcional. A revisão de referida conclusão demanda o reexame dos fatos e provas constantes nos autos, o que é vedado no âmbito do recurso especial. Incide ao caso a Súmula 7/STJ. 4. A ausência de impugnação a fundamento que, por si só, respalda o resultado do julgamento proferido pela Corte de origem impede a admissão do recurso especial. Incide ao caso a Súmula 283/STF. 5. Agravo interno não provido."

Ainda, a fim de sedimentar a questão, o ministro relator destacou em seu voto que "a Corte de origem adotou entendimento consolidado nesta Corte, segundo o qual a sequência de várias infrações de mesma natureza, apurados em uma única autuação, é considerada como de natureza continuada e, portanto, sujeita à imposição de multa singular".

E não é só. É possível perceber também no julgamento do REsp 1.894.400/SP, que a aplicabilidade da teoria da continuidade delitiva no âmbito da Administração Pública é tema pacífico, conforme se ressalta no seguinte trecho do voto da ministra relatora, Regina Helena Costa:

No caso, verifico que o acórdão recorrido está em confronto com  orientação desta Corte segundo a qual seria possível reconhecer a continuidade delitiva administrativa quando a Administração Pública, exercendo seu poder de polícia, constata, em uma mesma oportunidade, a ocorrência de múltiplas infrações da mesma espécie.

Neste caso, foi determinado o retorno dos autos ao tribunal de origem para análise fático-probatória da proporcionalidade da multa com fundamento na configuração (ou não) da continuidade delitiva administrativa.

Assim sendo, revela-se que a continuidade delitiva é amplamente aplicada ao âmbito administrativo pelo Superior Tribunal de Justiça, não obstante alguns tribunais insistirem na inexistência de diálogo entre tais fontes do Direito, merecendo tal questão, portanto, especial atenção aos operadores do direito.

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