Opinião

Colaboração premiada: a vedação às cláusulas contra legem

Autor

  • Thainá Carício

    é advogada associada no escritório Antun Advogados formada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e pós-graduanda pelo IDP em Direito Penal e Processual Penal.

6 de setembro de 2023, 11h15

Em julgamento recente, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, por maioria, proferiu decisão autorizando o empresário Emílio Odebrecht a devolver cerca de R$ 71 milhões, mantidos no banco suíço Pictet, somente após o trânsito em julgado de sua eventual condenação pelo crime de lavagem de dinheiro, em processo da operação "lava jato" [1].

É importante assentar que, muito embora o presente artigo não se volte à análise do caso em si, não há dúvidas de que o julgado se mostra relevante à discussão sobre o tema. Afinal, o cerne jurídico da questão levada à Suprema Corte consiste em (1) qual seria o momento processual adequado à decretação da perda de bens e valores e (2) quais os limites das cláusulas previstas em acordo de colaboração premiada.

É certo que a nossa legislação penal prevê, como efeito secundário da pena (condenação), a perda em favor da União "do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso" [2]. Isto é, por ocasião da sentença, além da aplicação da pena — seja ela privativa de liberdade, de multa ou restritiva de direitos — poderá também se impor a perda, em favor do Estado, de bens e valores, em razão da prática do ilícito.

De acordo com Prado [3], o confisco trata-se de um dos efeitos da condenação penal irrecorrível, isto é, quando já se esgotarem todos os recursos disponíveis à defesa.

Afora a supracitada disposição normativa do Código Penal, a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98) e a Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06) também preveem expressamente a possibilidade de perda de bens e valores para os crimes nelas tipificados. Especialmente para o delito de lavagem de dinheiro, a peculiaridade é que, caso o processamento da ação penal ocorra na Justiça estadual, a perda se dará em favor do respectivo Estado-membro, e não da União.

Na seara internacional, a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção bem pontua que "por confisco se entenderá a privação em caráter definitivo de bens por ordem de um tribunal ou outra autoridade competente" [4]. Veja-se que a perda ocorre "em caráter definitivo", ou seja, de forma não sujeita a alteração.

Desse modo, o que se deixa claro é que, se, nem mesmo, há a certeza acerca da prática do delito, não se mostra possível assegurar a ligação dos bens ou valores a um fato típico. Assim, não faria sentido algum que a mera suspeita da origem ilícita do patrimônio se revelasse apta a autorizar o Estado a confiscar os bens do acusado.

Mas, por que, mesmo diante de preciso rigor linguístico nas disposições normativas, que claramente determinam o confisco dos bens como efeito da condenação, foi necessária uma discussão processual, na Suprema Corte, acerca da possibilidade ou não da perda de valores antes da existência de decisão condenatória?

Assim como se procedeu em diversos outros processos da operação "lava jato", no caso apontado, foi firmado acordo de colaboração premiada, com a concessão de benefícios em troca de informações acerca dos fatos prestadas pelo empresário. Uma das cláusulas previstas no acordo (cláusula 4ª, inciso IV), convencionada pelo Ministério Público Federal para sua formalização, foi justamente o imediato perdimentos de bens e valores que tivessem sido obtidos a partir da prática do ilícito.

Diante desse cenário de conflito entre o que estabelece a norma penal e a cláusula prevista em acordo, instaurou-se o debate litigioso com o escopo de definir qual das disposições deveria prevalecer.

Como se sabe, o acordo de colaboração premiada é negócio jurídico entabulado entre acusação e colaborador, por meio do qual este se afasta da posição de resistência na persecução penal em troca de benesses legais. No entanto, deve-se pontuar que, embora se trate de negócio jurídico bilateral, o instituto da colaboração premiada está inserido "no campo do Direito Público, que envolve o Estado (Ministério Público ou Polícia), e, portanto, a discricionariedade permitida para o acordo nunca é absoluta" [5].

Nesse contexto, é importante frisar que as cláusulas previstas em acordo de colaboração premiada devem encontrar limites na Constituição e na legislação infraconstitucional.

Em sua obra acerca do instituto da colaboração premiada [6], Vinicius Gomes Vasconcellos, atento à realidade dos recentes acordos firmados, expressa certa preocupação com a vastidão de "possibilidades de obrigações de colaboração imposta". Para ele, "os limites às cláusulas reguladas no acordo devem ser ponto de atenção, ainda que haja o consentimento das partes".

E os limites aos quais o autor se refere certamente incluem que as condições convencionadas pelo órgão acusatório estejam, primordialmente, de acordo com o ordenamento jurídico pátrio, não podendo ser admitidas cláusulas abusivas ou ilegais.

Se, no caso apontado, a própria Constituição Federal estabelece, em seu art. 5º, inciso LIV, que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal", não seria nada razoável entender que a cláusula de um acordo pudesse trazer disposição contrária à Carta Magna, que é a suprema lei de nosso país.

De maneira acertada, em seu voto, o ministro Ricardo Lewandowski reafirmou a supremacia da lei em detrimento do instituto negocial, aduzindo que "para viabilizar ao perdimento de bens e valores — ainda que haja previsão diversa no acordo de colaboração premiada —, a legislação de regência pressupõe a existência de um título judicial plenamente executável, representado por uma sentença condenatória transitada em julgado" [7].

É nesse sentido que a cláusula de acordo de colaboração premiada que trouxer disposição contrária à lei não deverá jamais ser admitida e chancelada pelo Poder Judiciário, sob pena de malferir o importante princípio da legalidade, que, aliás, no campo do Direito Penal, ganha ainda mais importância.

Em artigo anterior, já havia pontuado a preocupação com a concessão de prêmios que não se encontram previstos na legislação que rege o mecanismo premial. No entanto, agora, é preciso também haver uma atenção no tocante às obrigações convencionadas no acordo, de modo a evitar condutas ilegítimas, mesmo quando há o aceite do colaborador, que, diga-se de passagem, muitas vezes encontra-se em estado de vulnerabilidade, vindo a aceitar propostas com cláusulas que sequer poderiam estar previstas.

É inegável que a justiça penal negocial avança em um ritmo cada mais acelerado, não só no Brasil, como em diversas outras nações, e, com isso, deve-se haver ainda mais cautela. Afinal, estamos tratando de situação em que se possibilita a antecipação do poder punitivo estatal, colocando em risco os direitos e as garantias fundamentais do indivíduo.

Sendo assim, revela-se imprescindível que o Judiciário, ao examinar a regularidade do negócio jurídico, mantenha-se atento a eventuais cláusulas que se mostrem destoantes do sistema legal, deixando de homologar acordos que contrariem tanto regras legais quanto princípios jurídicos, garantindo a força normativa da constituição, princípio que orienta a atuação de todos os agentes estatais.

 


Referências

BADARÓ, Gustavo. A colaboração premiada: meio de prova, meio de obtenção de prova ou um novo modelo de justiça penal não epistêmica? In: BOTTINI, Pierpaolo Cruz; MOURA, Maria Thereza de Assis [Org.]. Colaboração premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

BOUZA, Thiago B. A colaboração premiada como um ilegítimo sistema de trocas. In: MENSDES, Soraia da Rosa (Org.). A delação/colaboração premiada em perspectiva. Brasília: IDP, 2016.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2016.

BRASIL. Convenção Interamericana contra a Corrupção. Presidência, Controladoria-Geral da União. Brasília: 2007.

CAPEZ, Fernando; SOUZA, Luana. Colaboração premiada no âmbito da improbidade administrativa. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-jul-27/controversias-juridicas-colaboracao-premiada-ambito-improbidade-administrativa – :~:text=O acordo de colaboração premiada,de poder-se converter em>.

CORDEIRO, Nefi; MARQUES, Marcel Bernardi. O Confisco Frente À Eficiência E Proteção Penais No Combate Ao Crime Organizado De Colarinho Branco. Revista de Direito Brasileira, Florianópolis, SC, v. 31, n. 12, p.207-228, Jan./Abr. 2022.

SOUZA, Cláudio Macedo de.; CARDOSO, L. E. A perda alargada em face da principiologia processual penal brasileira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 24, n. 118, p. 233-271, jan./fev. 2016.

STF autoriza Emílio Odebrecht a devolver R$ 71 mi de acordo da Lava Jato só após recursos esgotados. Carta Capital, 2023. Disponível em <https://www.cartacapital.com.br/justica/stf-autoriza-emilio-odebrecht-a-devolver-r-71-milhoes-de-acordo-da-lava-jato-somente-apos-fim-de-recursos>. Acesso em 15 de agosto de 2023.

STF autoriza Emílio Odebrecht a devolver R$ 71 milhões de acordo na Lava Jato após o fim de recursos. G1, 2023. Disponível em <https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/07/11/stf-autoriza-emilio-odebrecht-a-devolver-r-71-milhoes-de-acordo-na-lava-jato-apos-fim-de-recursos.ghtml > Acesso em 10 de agosto de 2023.

VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada no Processo Penal/Vinícius Gomes de Vasconcellos. – 5ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.

 


[2] Art. 91 – São efeitos da condenação:

II – a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé:

b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso.

[3] 2007 apud SOUZA; CARDOSO, 2016, p. 237

[4] ART. 2º

Aos efeitos da presente Convenção:

g) Por "confisco" se entenderá a privação em caráter definitivo de bens por ordem de um tribunal ou outra autoridade competente;

[6] Vasconcellos, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada no Processo Penal/Vinícius Gomes de Vasconcellos. – 5ª ed.rev. e atual. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. P. 240/241.

[7] Processo sob segredo de justiça.

Autores

  • é advogada associada no escritório Antun Advogados, formada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e pós-graduanda pelo IDP em Direito Penal e Processual Penal.

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