Garantias do Consumo

Entendendo o PL que tutela o tempo do consumidor e previne seu desvio produtivo

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6 de setembro de 2023, 8h00

Em agosto de 2022, fui procurado pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES) para colaborar na elaboração de um projeto de lei para tutelar o tempo do consumidor e prevenir o seu desvio produtivo, fundamentado na Teoria do Desvio Produtivo. Propus-lhe, então, que eu reunisse e coordenasse um grupo de juristas especialistas no assunto para desenvolver uma minuta de projeto de lei especial que apresentasse solução para os principais problemas relacionados com a matéria, o que foi aceito.

Portanto da iniciativa do senador Contarato, com a contribuição dos professores Fernando Antônio de Lima, Laís Bergstein, Maria Aparecida Dutra, Maurilio Casas Maia, Miguel Barreto e Vitor Guglinski, sob minha coordenação, nasceu o Projeto de Lei (PL) 2.856 de 2022 do Senado.

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Elaboramos a minuta do PL a partir de um cenário que eu havia detalhado na Teoria ampliada do Desvio Produtivo: no Brasil, os danos extrapatrimoniais são tradicionalmente chamados de "danos morais". Além disso, em parte da doutrina e da jurisprudência ainda persiste um entendimento já ultrapassado de que o dano moral restringe-se à dor, ao sofrimento, ao abalo psicológico. Ocorre que, na atualidade, o dano moral em sentido amplo, enquanto gênero que corresponde ao dano extrapatrimonial, conceitua-se como o prejuízo não econômico que decorre da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, no qual entendo que se insere o "tempo do consumidor".

Todavia a prática judicial revela uma dificuldade no reconhecimento de novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa, o que tem inclusive contribuído para a manutenção de uma jurisprudência anacrônica que ficou conhecida no país como a do "mero aborrecimento".

Diante desse panorama, mostra-se cada vez mais necessário que o legislador brasileiro reconheça que o "tempo do consumidor" é um bem jurídico essencial numa "sociedade de consumidores",[1] como meio para se superar aquela noção ultrapassada de dano moral — que acaba por negar o direito básico do consumidor à efetiva prevenção e reparação integral dos danos.

Em outras palavras, a positivação do "tempo do consumidor" como um bem jurídico mostra-se cada dia mais necessária para se conferir efetividade ao princípio da reparação integral e à defesa desse vulnerável.[2]

Diante da ampla utilização, compreensão e consolidação da expressão neológica "desvio produtivo do consumidor" na jurisprudência nacional (que até 15-12-2022 já havia sido citada em 45.144 acórdãos de todos os tribunais brasileiros, incluindo o STJ),[3] propusemos, de saída, que a ementa do PL explicitasse que a nova lei "dispõe sobre o tempo como um bem jurídico, aperfeiçoa a reparação integral dos danos e previne o desvio produtivo do consumidor".

Tal expressão foi por mim criada nos idos de 2005, e identifica um novo "fenômeno socioeconômico que afeta o dia a dia de um número incontável de pessoas no país, cujas consequências ultrapassam o 'mero dissabor ou aborrecimento' normal na vida do consumidor".[4] Conceitualmente, o desvio produtivo do consumidor "é o evento danoso […] que tem origem quando o fornecedor, no curso da sua atividade, cria um problema de consumo e se exime da sua responsabilidade de saná-lo voluntária e efetivamente em prazo compatível com a essencialidade, a utilidade ou a característica do produto ou do serviço".

"Com esse comportamento, o fornecedor leva o consumidor […] a desperdiçar o seu tempo vital e a se desviar das suas atividades existenciais para enfrentar o problema que lhe foi imposto, o que resulta na alteração prejudicial e indesejada do cotidiano e/ou do projeto de vida do consumidor, bem como na correspondente perda definitiva de uma parcela do seu tempo total de vida em situações desgastantes perfeitamente previsíveis e evitáveis." [5]

Elaboramos, então, o enunciado normativo mais importante e que inaugura o PL, o qual recebeu no Senado o número 25-A: "O tempo é bem jurídico essencial para o desenvolvimento das atividades existenciais do consumidor, sendo assegurado o direito à reparação integral dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais decorrentes de sua lesão".

Relativamente ao "tempo do consumidor", explanamos que "sob o enfoque ontológico, esse tempo […] — que denomino 'tempo vital ou existencial' — é o suporte implícito da existência humana, isto é, da vida, que dura certo tempo e nele se desenvolve. Dito de outra maneira, o tempo total de vida de cada pessoa é um bem finito individual; é o capital pessoal que, por meio de escolhas livres e voluntárias, pode ser convertido em outros bens materiais e imateriais, do qual só se deve dispor por autodeterminação".

"Em termos econômicos, ele é um recurso produtivo limitado – necessário para o desempenho de qualquer atividade – que não pode ser acumulado nem recuperado ao longo da vida das pessoas; ou seja, é um bem econômico. Na ótica do Direito, ele é um bem jurídico representado pela duração da vida de cada pessoa, na qual ela faz as suas escolhas existenciais." [6]

Com relação às "atividades existenciais" — que se desenvolvem justamente nesse tempo (de vida) do consumidor —, explicamos que "cada membro da sociedade contemporânea, no desenrolar da sua existência, está constantemente escolhendo as atividades que julga mais relevantes para o seu projeto de vida, cuja prática cotidiana é o meio para o desenvolvimento da sua personalidade e para a promoção da sua dignidade". Entre as principais atividades existenciais, das quais o consumidor acaba se desviando diante de problemas de consumo criados pelo próprio fornecedor, destacam-se estudar, trabalhar, descansar, dedicar-se ao lazer, conviver socialmente, cuidar de si, consumir. [7]

Tanto o primeiro artigo do PL quanto os dois seguintes foram muito bem recebidos pela comunidade acadêmica e jurídica, merecendo realce a opinião do professor Alexandre Freitas Câmara que consignou em artigo crítico: "Além do artigo 25-A, já elogiado, são também extremamente bem redigidos o artigo 25-B ('[o] fornecedor de produtos ou serviços deverá empregar todos os meios e esforços para prevenir e evitar lesão ao tempo do consumidor'), e o artigo 25-C ('[as] condutas do fornecedor que impliquem perda indevida do tempo do consumidor são consideradas práticas abusivas'). Do mesmo modo, o texto do parágrafo único do art.25-C trata de forma adequada de situação que vem se reiterando: '[c]onsidera-se também abusiva a prática de disparar, reiterada ou excessivamente, mensagens eletrônicas, robochamadas ou ligações telefônicas pessoais para o consumidor sem o seu consentimento prévio e expresso, ou após externado o seu incômodo ou recusa'." [8]

Considerando-se i) que a existência humana é indissociável do tempo (ou seja, que a vida dura certo tempo e nele se desenvolve, constituindo-se das próprias atividades existenciais que cada um escolhe nele realizar) e ii) que fornecedores criam problemas de consumo que resultam na alteração prejudicial e indesejada do cotidiano e/ou do projeto de vida do consumidor, o PL, mais do que tutelar o "tempo do consumidor", previne o seu "desvio produtivo" — que é um fenômeno socioeconômico mais abrangente e já amplamente reconhecido pelo Direito pátrio, que impacta o dia a dia dos consumidores ao lhes causar danos patrimoniais e extrapatrimoniais, notadamente o dano existencial.

O artigo subsequente do PL, numerado como 25-D, estabelece que "na apuração dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais decorrentes da lesão ao tempo do consumidor, deverão ser consideradas as seguintes circunstâncias, entre outras". Nele elencamos circunstâncias que deverão ser verificadas pelo juiz, no caso concreto, para quantificar os danos extrapatrimoniais resultantes da lesão ao tempo do consumidor.

Dentre elas destaco a do inciso V: "o tempo total gasto pelo consumidor na resolução da sua demanda administrativa, judicial ou apresentada diretamente ao fornecedor". Embora o fornecedor não seja responsável pela propalada "morosidade judicial", é a resistência indevida ou injustificada dele (fornecedor), em cumprir um dever legal ou obrigação contratual, que leva o consumidor a gastar tempo e a se desviar de suas atividades propondo e enfrentando uma longa demanda judicial para exigir um direito evidente ou incontroverso, desse modo sobrecarregando o Poder Judiciário desnecessariamente.

A própria jurisprudência já vem reconhecendo tal circunstância, citando-se por todos um acórdão do TRT-17, in verbis: "Diante das similaridades existentes entre as relações de consumo e de trabalho, […] entendo plenamente cabível nessa Especializada a referida teoria, impondo-se ao empregador que descumprir dever legal que lhe competia, levando o trabalhador ao desgaste de ajuizar uma ação para obter o bem da vida (incontroverso diga-se de passagem, pois a baixa da CTPS é dever do empregador) ao pagamento de uma reparação por danos morais". [9]

Na sequência, propusemos o artigo numerado como 25-E: "Considera-se presumido o dano extrapatrimonial decorrente da lesão ao tempo do consumidor, podendo sua reparação, em tutela individual ou coletiva, ocorrer concomitantemente com a indenização de dano material ou moral". Justificamos, ao Senado, a necessidade de "diferenciar" o dano extrapatrimonial do moral (anímico) com base em abalizada doutrina. Judith Martins-Costa, por exemplo, leciona que "sendo mais ampla, a expressão 'danos extrapatrimoniais' inclui, como subespécie, os danos à pessoa, ou à personalidade, constituídos pelos danos morais em sentido próprio […], os danos à imagem, projeção social da personalidade, os danos à saúde, ou danos à integridade psicofísica, inclusos os 'danos ao projeto de vida', e ao 'livre desenvolvimento da personalidade', os danos à vida de relação, inclusive o 'prejuízo de afeição' e os danos estéticos". [10]

Nesse sentido, Francisco Amaral ensina que o dano extrapatrimonial "diz respeito ao dano sem valoração pecuniária, em um conceito mais amplo e genérico, que abrange, evidentemente, o sofrimento psicológico da pessoa".[11] Paulo de Tarso Sanseverino explicava que, no direito brasileiro, "os prejuízos sem conteúdo econômico têm sido abrangidos pela denominação genérica de dano moral".[12]

Na mesma direção, Fernando Noronha leciona que danos extrapatrimoniais são aqueles que decorrem da "violação de quaisquer interesses não suscetíveis de avaliação pecuniária" — os quais, no Brasil, são tradicionalmente denominados "danos morais". Para o autor, no entanto, "verdadeiros danos morais" são apenas os danos anímicos, os quais ocasionam "perturbações na alma do ofendido".

A propósito, o autor adverte que, no Brasil, existe uma "tradicional confusão entre danos extrapatrimoniais e morais […] presente em praticamente todos os autores justamente reputados como clássicos nesta matéria, desde Aguiar Dias até Carlos Alberto Bittar e Yussef S. Cahali".

E, em atenção àquela "designação tradicional" — de se chamar os danos extrapatrimoniais de morais —, Noronha defende que os danos extrapatrimoniais podem então ser denominados "danos morais em sentido amplo", e que os danos morais anímicos podem ser chamados de "danos morais em sentido estrito". [13]

No tocante à "presunção" do dano (rectius, do prejuízo) extrapatrimonial que decorre da lesão ao tempo, ressaltamos que "dano é a lesão a um bem jurídico". "Mais propriamente, é o prejuízo decorrente de uma lesão a um bem jurídico, do que nasce uma obrigação de indenizar." [14]

Logo "a configuração de um dano implica necessariamente a identificação de um prejuízo para o titular do direito violado; ou seja, todo dano pressupõe algum prejuízo resultante de um fato antijurídico. […] O dano extrapatrimonial em questão é presumido (in re ipsa) porque o prejuízo existencial é deduzido de dois postulados assim enunciados: o tempo é um recurso produtivo limitado, que não pode ser acumulado nem recuperado ao longo da vida das pessoas; e ninguém pode realizar, ao mesmo tempo, duas ou mais atividades de natureza incompatível ou fisicamente excludentes, do que resulta que uma atividade preterida no presente, em regra, só poderá ser realizada no futuro deslocando-se no tempo outra atividade." [15]

Por fim, sugerimos o artigo numerado como 25-F: "A reparação do dano extrapatrimonial decorrente da lesão ao tempo do consumidor deverá ser quantificada de modo a atender às funções compensatória, preventiva e punitiva da responsabilidade civil". A afirmação da "função punitiva" da responsabilidade civil, no PL, pretende dar ao juiz um fundamento legal para que a reparação do dano extrapatrimonial, nessa hipótese, não seja arbitrada em valores irrisórios como vem ocorrendo na jurisprudência. Consequentemente se confere efetividade à repressão da principal prática abusiva objeto do PL: "as condutas do fornecedor que impliquem perda indevida do tempo do consumidor" (artigo 25-C).

A propósito, Sanseverino ensinava que, nos danos extrapatrimoniais, a função preponderante da responsabilidade civil é satisfatória. Nessa modalidade de dano também é possível se observar a função punitiva da indenização e, como consectário lógico da sua característica de "pena privada", ainda é possível se verificar sua função preventiva. Nesse contexto, a natureza punitiva da indenização dos danos extrapatrimoniais exerce importante função no momento da sua quantificação [16] — exatamente como pretende o artigo 25-F.

O PL 2.856/22 está tramitando regularmente no Senado, o que ainda permite o seu aperfeiçoamento democrático a partir das contribuições da sociedade e dos especialistas.


[1] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo… Rio de Janeiro: Zahar, 2008. passim.

[2] DESSAUNE, Marcos. Teoria ampliada do desvio produtivo… 3. ed. rev., modif. e ampl. Vitória: Ed.Autor, 2022. passim.

[3] Conforme levantamento que fiz em 15-12-2022 na página de pesquisa de jurisprudência do site de todos os tribunais estaduais, federais e distrital, além do STJ.

[4] DESSAUNE, 2022, p. 247.

[5] DESSAUNE, 2022, p. 363.

[6] DESSAUNE, 2022, p. 186-187.

[7] DESSAUNE, 2022, p. 201-202.

[8] CÂMARA, Alexandre F. Uma crítica ao PL 2856/2002: o tempo como bem jurídico passível de lesão. Migalhas, 2022. Disponível em: [https://tinyurl.com/yc8jd498]. Acesso em: 01-12-2022.

[9] TRT-17, RO 0000210-16.2018.5.17.0101, j. 10-06-2019, v.u., 3ª Turma, rel. Des. Daniele Santa Catarina.

[10] MARTINS-COSTA, Judith. Os danos à pessoa no direito brasileiro… Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, P.Alegre, v. 19, p. 194, mar. 2001. Disponível em: [https://tinyurl.com/3v33rvkt]. Acesso em: 16-02-2021.

[11] AMARAL, Francisco. Direito civil… 10. ed. rev. e modif. S.Paulo: Saraiva, 2018. p. 954-957.

[12] SANSEVERINO, Paulo de T. V. Princípio da reparação integral… 1. ed., 2. tir. S.Paulo: Saraiva, 2011. p. 189.

[13] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. rev. e atual. S.Paulo: Saraiva, 2013. p. 584 e 590-592.

[14] AMARAL, 2018, p. 954.

[15] DESSAUNE, 2022, p. 106-107 e 332.

[16] SANSEVERINO, 2011, p. 270-271 e 274.

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