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'Que a vontade do legislador na criação da SAF prevaleça no Judiciário', diz dirigente

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5 de setembro de 2023, 9h44

"Enquanto a Sociedade Anônima do Futebol cumprir os pagamentos previstos nesta seção, é vedada qualquer forma de constrição ao patrimônio ou às receitas, por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie sobre as suas receitas, com relação às obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol", diz o artigo 10 da Lei nº 14.193/2021, que instituiu a SAF.

Num dos casos concretos que o Poder Judiciário já decidiu sobre essa nova lei, um prestador de serviço do departamento de futebol do Cruzeiro teve seu contrato encerrado após a criação efetiva da SAF. Entenderam os magistrados que deve prevalecer a responsabilidade subsidiária da sociedade anônima, nos termos do artigo acima.

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"Assim, vê-se uma forma de responsabilização mais moderada, que de fato só seria efetivada em caso de não cumprimento do plano de pagamento a ser apresentado via RCE ou procedimento de recuperação. Entretanto, ainda assim entendemos que essa responsabilização não deveria ocorrer nesse momento", diz o advogado Sérgio Santos Rodrigues, presidente do Cruzeiro Esporte Clube, o primeiro gigante do futebol brasileiro a se transformar numa SAF.

"Outros acórdãos também chegaram à mesma conclusão, de forma que, apesar de ser notória a divergência entre alguns posicionamentos, espera-se que prevaleçam os últimos, que, seja pela especialidade da lei posterior, seja pelo objetivo do legislador, ou pelo fato de que haverá o pagamento dos credores, no tempo devido, somente essa interpretação dará segurança jurídica ao mercado para que haja investidores no futebol brasileiro. Caso contrário, o máximo que teremos será a constituição de novas SAFs, mas nunca a transformação (em estrito sentido) de associações antigas em SAFs, o que enterra boa parte do motivo da lei, que sempre foi incentivar o modelo empresarial do futebol no Brasil e permitir a recuperação econômica dos clubes que estavam altamente endividados e sem perspectiva de melhoria financeira."

Foi o que aconteceu com o time da Toca da Raposa, de Belo Horizonte. Clube que já revelou e teve grandes jogadores na história do futebol brasileiro, com cerca de oito milhões de torcedores (segundo a mais recente pesquisa do Datafolha sobre o tema), campeão de duas Taças Libertadores, quatro Campeonatos Brasileiros, seis Copas do Brasil, 38 Campeonatos Mineiros (cerca de 60 títulos nacionais e internacionais ao todo), o Cruzeiro entrou no fundo do poço financeiramente e esportivamente a partir do primeiro rebaixamento na elite do futebol brasileiro, em 2019.

Depois de brigar para não cair para a terceira divisão e sem perspectiva de pagamento das dívidas, que já estavam na casa do bilhão de reais, o Conselho Deliberativo do Cruzeiro, em assembleia geral no dia 17 de dezembro de 2021, aprovou alteração no estatuto da associação para autorizar a venda de até 90% das ações do Cruzeiro. No dia seguinte, Ronaldo Nazário de Lima — Ronaldinho quando começou a jogar profissionalmente nos anos 1990 pelo próprio Cruzeiro, ou Ronaldo Fenômeno, um dos maiores atacantes da história do futebol mundial —, por meio de sua empresa, assinou contrato de intenção de compra de 90% do futebol cruzeirense.

O ex-jogador concluiu o negócio acordado em 14 de abril de 2022. Estima-se um desembolso a longo prazo de até R$ 1,5 bilhão. Cerca de R$ 400 milhões de investimentos e pouco mais de R$ 1 bilhão em dívidas a pagar.

A partir de sua experiência pessoal como gestor esportivo, liderando a criação da primeira SAF do Brasil, Santos Rodrigues descreveu no livro Futebol S.A. um panorama do que levou a legislação brasileira a adotar o modelo de sociedade anônima do futebol, "depois que o associativo se mostrou falho, com os clubes assolados por dívidas bilionárias".

Com diversos exemplos práticos, o advogado registrou na obra as tentativas de profissionalização da gestão do futebol antes da SAF, por meio dos clubes-empresa. Também são apresentados diferentes modelos de criação de SAFs, a partir da edição da Lei 14.193/2021. O livro trata ainda do futuro da gestão do esporte no Brasil.

"Se no início a prática desportiva era mero lazer, hoje ela é uma indústria imensa, que envolve empregos, impostos, patrocínios, direitos de televisão, turismo. Assim, nenhum tipo societário se amolda melhor às palavras mercado e negócio que a sociedade anônima", afirma o autor, que conversou com a revista eletrônica Consultor Jurídico sobre o livro, que será lançado no próximo dia 14, em Belo Horizonte.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Presidente, o que levou o senhor a já escrever sua história à frente de uma SAF?
Sérgio Rodrigues — A ideia era fazer uma obra que não abordasse só o tema jurídico da sociedade anônima do futebol. É um livro não só para o meio do Direito, mas para jornalistas, para amantes do esporte, para empresários interessados na indústria esportiva, de entretenimento. Contar também a experiência prática que temos e fizemos no Cruzeiro. Ainda há muita jurisprudência a ser construída. Falta muito conhecimento desse novo modelo de gestão esportiva profissional. 

ConJur — Qual a diferença da Lei Pelé e da Lei Zico para a Lei das SAFs?
Sérgio Rodrigues — As duas anteriores foram leis gerais sobre o esporte. A Lei Pelé, a de número 9.615 (março de 1998), era bem ampla, tratava o desporto de modo geral, Justiça Desportiva, alguns aspectos trabalhistas. Já a da SAF é bem menor, muito específica, apenas sobre a criação dessa espécie da sociedade anônima, que já existe no ordenamento jurídico desde a década de 1960.
Agora criamos uma espécie, dando tratamento diferenciado para ela, sobretudo no que tange ao aspecto tributário e à sucessão de dívidas. Creio que sejam os pontos mais marcantes. Basicamente as diferenças são essas.  

ConJur — Qual a diferença da SAF para outros modelos de clube-empresa que já tentaram profissionalizar o futebol no país?
Sérgio Rodrigues —  A gente tem a criação do clube-empresa em 1993, com a Lei Zico (nº 8.672/1993). Escrevo muito sobre isso no livro. Tivemos alguns tipos societários criados anteriormente, de responsabilidade limitada. Na década de 1990, por exemplo, um modelo de parcerias gerais.

Começa com Palmeiras-Parmalat, em 1992. Depois a HMTF (Hicks, Muse, Tate & Furst) com o Corinthians e o Cruzeiro. Flamengo e Grêmio com a ISL (ex-gigante mundial de marketing esportivo). O Vasco com o Nation Banks (que depois virou Bank of America). Mas esses modelos eram de licenciamento, de parceria com a direção do departamento de futebol. Não de uma empresa efetiva como está sendo feita agora. A grande diferença é essa.

A SAF é uma sociedade anônima específica. Pode ser criada a partir da cisão do departamento de futebol de um clube. Da transformação de um modelo tradicional, como o do Cruzeiro. O Cuiabá, por exemplo, que já foi criado como clube-empresa, recentemente virou SAF. Ou até da criação direta. Temos o exemplo do Itabirito Futebol Clube, aqui em Minas, que já nasceu como SAF.

Agora temos uma SA específica que, para ter participação, utiliza-se de um mecanismo acionário como qualquer empresa de capital aberto (Lei da SAs, nº 6.404/1976). O time de futebol vai poder captar investimentos no mercado. Pode resolver entrar no mercado de capitais, por exemplo, caso haja regulamentação da CVM (Comissão de Valores Mobiliários). É mais uma possibilidade de captação de recursos no mercado.

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ConJur — Só que até o momento, presidente, entre os clubes mais tradicionais do país, com mais torcida, somente os falidos economicamente e esportivamente optaram pelo modelo da SAF. Não vimos ainda agremiações, digamos assim, "saudáveis" recorrer à nova lei. O cerne do problema parece ser as dívidas. Como se dá a sucessão delas?
Sérgio Rodrigues —  Essa é a parte mais atraente e diferente da Lei da SAF. Ela se inspira na Lei 11.101, de 2005, que disciplina a recuperação judicial e a falência das sociedades empresariais. Não há sucessão imediata da dívida. Isso é muito importante. Porque os clubes, sobretudo os grandes que tinham dívidas bilionárias, como Cruzeiro (participação de 90% da nova SAF e os 10% restantes do clube), Botafogo (também 90% e 10%) e Vasco (este com 70% e 30%), ninguém compraria. Uma empresa que tem muito potencial, muita torcida, capacidade de gerar receita, mas com uma dívida acumulada de muito tempo por conta desse modelo associativo falho.

Então a lei possibilita que se cumpra o pagamento da dívida, mas dá o tratamento da dívida. Por isso eu falo que a lei é inteligente, embora haja revolta de alguns que não recebem tudo o que querem imediatamente. Mas ela não é de forma alguma um calote institucional. Pelo contrário. Ela diz que a dívida deve ser tratada e paga. Tanto que, se não for, coloca de onde vai vir o recurso, que é o percentual de faturamento da SAF. E se não tiver sido cumprido o plano, lá na frente, a SAF tem responsabilidade subsidiária. Portanto, dá permissão para que a nova empresa recupere o velho departamento de futebol. Mas tem de haver preocupação com pagamento das velhas dívidas. Essa é a inteligência dessa nova lei. Por isso que a gente espera que o Poder Judiciário prevaleça e mantenha a vontade do legislador na criação dessa lei.

ConJur — Como o Judiciário tem julgado a sucessão das obrigações quando o clube se transforma de associação em SAF?
Sérgio Rodrigues —  Temos tido basicamente três posicionamentos completamente diferentes. Tem aqueles completamente radicais, que reconhecem até grupo econômico entre a SAF e o clube originário, a pessoa jurídica originária. A gente discorda imensamente. Tem aqueles que falam que há solidariedade imediata de pagamento da dívida. E tem aqueles que são mais corretos, o que a gente acha que está de acordo com a nova lei da SAF, que não existe essa responsabilidade neste momento.

Claro que, se não houver pagamento lá na frente, no cumprimento dos acordos, aí, sim, haverá depois uma responsabilidade direta da SAF. A gente explora bastante isso no livro. Casos, paradigmas, como os do Cruzeiro, que a gente têm vivenciado de perto. As discussões começaram na Justiça do Trabalho.

Essa matéria, aliás, também tem sido objeto de projeto de lei que o senador Rodrigo Pacheco (presidente do Senado) apresentou para fortalecer a Lei das SAFs (PL nº 2.978/2023), que altera e acrescenta dispositivos à Lei nº 14.193, de 2021, a fim de aperfeiçoar a governança das sociedades anônimas do futebol, resguardar os investidores e preservar os direitos dos clubes, dos profissionais do futebol e dos atletas em formação.

ConJur — Como está a SAF hoje no Brasil e no mundo?
Sérgio Rodrigues — A SAF existe na Europa ocidental desde os anos 1980. Inglaterra e Alemanha, por exemplo, nem legislação específica têm, mas já é uma realidade existir SAF por lá.

No Brasil vem crescendo. Teve o primeiro grande movimento de Cruzeiro e Botafogo. Depois, o Vasco. O problema desses três clubes era a emergência. Estavam completamente falidos. Já existem outras duas dezenas de SAFs menores pelo país. Agora há um movimento de clubes mais tradicionais, de torcida, fazendo o processo com maior maturação, como nos casos de Bahia e Curitiba, que não estão numa situação financeira tão desesperadora. Tem também uma alteração aprovada pelo Atlético-MG, que ainda não foi implementada. Fato curioso é que todos esses modelos são de alguma forma diferentes.

O Cruzeiro, por exemplo, foi comprado por uma empresa na figura de uma pessoa física bastante conhecida, como o Ronaldo Nazário. O Botafogo, personalizado num investidor estrangeiro (o empresário dos Estados Unidos John Textor). O Vasco, vindo por um fundo de investimentos (a 777 Partners).

Já o Bahia já tem por trás o grupo de futebol do City, que tem base em Manchester, mas investimentos no mundo inteiro, até no futebol boliviano (Bolívar), a partir do dinheiro do xeique Mansour bin Zayed, de Abu Dhabi. O Coritiba será gerido por empresários brasileiros  (Treecorp Investimentos)E o Atlético-MG traz o que chamamos de solução caseira: constituir um modelo de SAF a partir dos atuais dirigentes do clube.  

ConJur —  A SAF é um modelo ainda muito recente. Dos antigos, quais deram certo e quais deram errado? E por quê?
Sérgio Rodrigues — Nos anos 1990, talvez só o Cruzeiro se saiu bem depois de deixar a parceria com a HMTF. O Corinthians também se recuperou. Já o Palmeiras passou por muitas dificuldades depois da saída da Parmalat. O Vasco, com o Nations Bank. Talvez porque naquele momento era só investidor despejando dinheiro no departamento de futebol.

O conceito de SAF é diferente por isso. Vem acompanhado de gestão, de governança, de responsabilidade solidária. Agora o investidor estará gerindo recurso para si próprio. É a sua pele que estará em risco.

ConJur —  O senhor acredita que realmente haverá uma profissionalização na direção dos clubes, na legislação que rege contratos de jogadores, responsabilidade nos financiamentos?
Sérgio Rodrigues — Será um caminho obrigatório. No modelo associativo havia parentes, amigos de conselheiros em cargos-chave, só composição política. Via isso acontecer muito nas associações que formaram dívidas bilionárias. Era aquela responsabilidade do dirigente em seus três ou seis anos de mandato. Ganhar títulos e sair. E a responsabilidade vinha depois.

As grandes dívidas que a nossa gestão pagou foram contraídas de seis anos para trás. Agora o dirigente vai colocar dinheiro do próprio bolso. Não adianta se endividar irresponsavelmente para ele mesmo ter de pagar depois. Por isso é natural tentar buscar os melhores profissionais. Não necessariamente aqueles mais bem indicados para se sustentar politicamente no clube.

Sobre contratos de jogadores, a Lei da SAF não altera o vínculo de atletas e comissão técnica, que é gerido pela Constituição, pela CLT, pela Lei Geral do Esporte.

Já a parte de financiamento é uma grande vantagem. Há uma  possibilidade de captação de recurso no mercado de uma forma diferente, que a SAF pode fazer, como o próprio parecer de orientação da CVM informa. Da questão de acesso a fundos de investimentos em ações, participações, fundo imobiliário para construir, reformar estádio ou centro de treinamento.

Sérgio Santos Rodrigues é advogado, mestre em Direito pela Faculdade Milton Campos (MG), e doutorando pela Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal. É presidente do Cruzeiro Esporte Clube —  SAF. Cursou MBA em Gestão de Entidades Desportivas pela Escola do Real Madrid, na Espanha. Possui diploma de Club Management pela Fifa e de gestor de futebol pela CBF. Foi professor na Escola Superior Dom Helder Câmara e na Universidade Fumec, tendo ministrado aulas de Direito Empresarial, Direito Desportivo (graduação e pós-graduação), Direito do Consumidor e Teoria Geral do Direito. É autor dos livros: "Comentários ao Estatuto de Defesa do Torcedor"; "O Direito passado a limpo"; "Tópicos de Direito Municipal — Vol. 1 e 2"; e "Manual de Direito Desportivo". Foi membro do Conselho de Administração do Comitê Olímpico do Brasil (2018-2022), conselheiro seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (2016-2018) e conselheiro federal da OAB (2013-2015).

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