Opinião

Federação e colaboração: por uma Política Nacional de Alimentação Escolar

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4 de setembro de 2023, 6h37

No seu discurso quando da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães lembrava que "num país de 30.401.000 analfabetos, afrontosos 25% da população, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto". De lá para cá, os indicadores de aprendizado e de alfabetização brasileira melhoraram sensivelmente, mas ainda nos ressentimos com a qualidade da educação nacional quando nos comparamos com outros países do mundo, que são referências positivas nesse quesito.

A educação é, sem sombra de dúvida, pilar de estruturação da sociedade e, portanto, elemento imprescindível à formação da cidadania. "Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda", já profetizava Paulo Freire. Ao encararmos os diversos movimentos constatados em sociedades democráticas e que contestam conquistas históricas para toda a população, por falta de uma resposta adequada ao Estado diante de todas as promessas feitas com a globalização e o esmaecimento dos valores ditos como incontestáveis para o engrandecimento humano, voltamos à necessidade de investimento urgente em maior nível de educação de nosso povo.

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A Constituição de 1988 dispõe que cabe ao Estado promover a educação como meio para assegurar o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania, além de sua qualificação para o trabalho. É dever do Estado, ainda, efetivar o direito à educação mediante a garantia de programas suplementares de "“material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde" (CF, artigo 208, inciso VII). A ideia de suplementariedade conecta-se a algo que há de ser acrescentado de forma adicional, acessório, mas que não se aparta da noção básica de que estes programas são integrantes da educação em sentido amplo.

A Constituição, desse modo, institui uma tríplice e indissociável estrutura valorativa que precisa ser compreendida na formação do educando. Dito de outro modo, no processo de estruturação da educação básica é imprescindível que os programas suplementares de material didático escolar, de transporte, de alimentação e de assistência à saúde tenham o mesmo tratamento, inclusive no que diz respeito ao seu enquadramento como despesas para a manutenção e o desenvolvimento do ensino, posto que são absolutamente fundamentais para que este possa acontecer.

Algumas razões nos levam à afirmação acima. A primeira delas é que é a própria Constituição de 1988 quem dá tratamento igualitário aos referidos programas quando dispõe sobre eles no mesmo artigo que trata do dever do Estado com educação, aglutinados em um mesmo inciso do texto normativo (CF, artigo 208, inciso VII). A seguir, aduz que o ensino deve ser ministrado com base no princípio da igualdade de condições para o acesso (o que pode ser interpretado como a correlata necessidade de acesso físico às dependências das escolas, àqueles que se encontram distantes e que não disponham de transporte regular, por exemplo, para chegar às escolas) e de permanência na escola (àqueles que, muitas vezes, vão à escola sem terem feito qualquer refeição em suas casas, o que obstaculiza qualquer processo de aprendizagem concretamente, a indicar o direito fundamental a uma alimentação digna, no caso, à alimentação escolar adequada e de qualidade).

Nesse cenário, voltemos às históricas palavras de Ulysses Guimarães, em seu discurso na promulgação da Carta Cidadã, enaltecendo as marcas que esta deveria ter para poder comandar o Brasil: a "primeira é a coragem". "A coragem é a matéria-prima da civilização. Sem ela, o dever e as instituições perecem. Sem a coragem, as demais virtudes sucumbem na hora do perigo."

É preciso, pois, coragem, para iniciar o debate sobre a necessidade de estruturação de uma Política Nacional de Alimentação, repensando o modelo de alimentação escolar, a fim de que possamos dar-lhe uma nova roupagem e estruturando-o mediante a criação de incentivos positivos para os entes federativos municipais e estaduais. Isso se faz necessário pois os dados coletados no Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos (Siope), relativos ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) indicam que 85% das entidades possuem como principal fonte de custeio para aquisição de gêneros alimentícios da alimentação escolar os recursos federais. Na prática, isso implica que os recursos enviados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) perfazem 50% ou mais na aquisição dos recursos que alimentarão as crianças e jovens da educação pública brasileira.

Ademais, dados do Siope também indicam que 46% das entidades executoras possuem como fonte quase que exclusiva para aquisição dos gêneros alimentícios os recursos federais. Isso implica que tais entidades, nas aquisições de tais alimentos, tem 90% ou mais de recursos com fonte federal, advindo do FNDE.

Nesse contexto, nasce uma nova possibilidade para implementação do federalismo de cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, com foco na alimentação escolar, que é essencial para a permanência da criança na escola e berço para a formação do educando e o desenvolvimento da sua cidadania.

A edificação de uma Política Nacional de Alimentação passaria pela pactuação de percentuais mínimos de aplicação de recursos por cada um dos entes, a partir da delimitação do montante necessário para alimentar adequadamente cada estudante, atendidas as peculiaridades regionais e do tipo de educação ofertado. Contudo, uma premissa é básica nessa discussão: há de serem incluídas as despesas com alimentação escolar no conceito de ações de manutenção e desenvolvimento do ensino, uma vez que não seria possível afastá-la dos objetivos básicos das instituições educacionais.

Na prática, mais recursos poderiam ser destinados a alimentar os estudantes brasileiros no ambiente escolar, em um país em que a fome assola de forma mais agressiva as crianças e os adolescentes, segundo dados da Unicef: o Brasil passou de 9,8 milhões para 13,7 milhões de crianças e adolescentes privados de uma alimentação escolar entre 2021 e 2021.

Eis, portanto, o incentivo positivo que se pretende estabelecer mediante a estruturação dessa política nacional, admitindo que os investimentos realizados por estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios com alimentação escolar possam ser compatibilizados para fins de cumprimento do percentual mínimo anual de 25% da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino., previsto no artigo 212 da Constituição.

Essa conclusão decorre da interpretação do artigo 208, VII, da Constituição, que instituiu uma tríplice e indissociável estrutura valorativa que precisa ser compreendida na formação do educando. Tanta é verdade, que a redação do inciso mencionado foi dada pela Emenda Constitucional nº 59/2009, portanto, foi produto de manifestação expressa de vontade do poder constituinte reformador.

Uma vez estabelecidas as premissas pela Constituição, cabe ao Poder Público desenhar ou redesenhar o modelo da política pública educacional, tendo em vista sua expertise e a definição de critérios técnicos.

Para isso, é suficiente a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), ajustando-a ao modelo constitucional, com a inclusão da alimentação escolar no inciso VIII, do artigo 70, (re)compondo, assim, a tríade valorativa prevista no inciso VII, do artigo 208, da Constituição.

Porém, é possível que vozes possam argumentar pela inviabilidade da nossa proposta, apresentando, para tanto, a regra prevista no §4º, do artigo 212, da Constituição [1].

No entanto, parece-nos que esse argumento não merece acolhida, uma vez que não há qualquer vedação no texto constitucional à utilização da receita decorrente de impostos para aplicação na alimentação escolar. Ao contrário, o texto autoriza a utilização adicional, como fonte de custeio, de recursos provenientes de contribuições sociais e outros recursos orçamentários para financiamento de programa suplementar de alimentação.

Além disso, a possibilidade de utilização dos recursos recebidos pelos estados e municípios, a título de salário-educação, para a alimentação escolar, sem qualquer obstáculo para que isso ocorra na Lei nº 9.766, de 18 de dezembro de 1998, traria maiores possibilidades para os entes financiarem uma alimentação adequada e de qualidade para os estudantes brasileiros do ensino público. Ao inserir a alimentação escolar como despesa relativa à manutenção e desenvolvimento da educação, os recursos do salário-educação também se mostrarão viáveis para custeá-la.

Para finalizar, mais uma vez, Ulysses Guimarães, que deixa o alerta a todos de que "A Nação quer mudar". "A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança."

 

[1] § 4º Os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde previstos no art. 208, VII, serão financiados com recursos provenientes de contribuições sociais e outros recursos orçamentários.

 

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