OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL

Percursos dos deveres de proteção nos 35 anos da Constituição: omissões e problemas

Autores

  • Paula Pessoa Pereira

    é doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) professora adjunta da Universidade de Brasília (UnB) e assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal.

  • Marcella Pereira Ferraro

    Doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Assessora Especial na Assessoria Processual da Presidência do Supremo Tribunal Federal.

2 de setembro de 2023, 14h19

Promulgada em 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil é produto de amplo e plural compromisso político por meio do qual se buscou atender a demandas de diferentes setores sociais. A autêntica renovação do pacto social teve como premissa fundadora a afirmação dos direitos fundamentais — tanto na dimensão individual e das liberdades públicas, quanto na dimensão coletiva e dos direitos sociais, voltados aos projetos de distribuição dos recursos essenciais à realização da justiça social — como pilar para a consecução da autonomia individual e coletiva.

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Em razão da adoção dessa premissa, foi atribuído um sistema correspondente de deveres de proteção aos poderes constituídos, no qual o Poder Judiciário assumiu posição institucional central para a reivindicação de direitos, quando constatada inadimplência inconstitucional por parte de outros Poderes e atores responsáveis. Isso porque, na perspectiva dos deveres de proteção, ao Legislativo e ao Executivo compete, em suas funções primárias, a obrigação constitucional de adoção dos atos normativos, a instituir políticas e procedimentos necessários e suficientes para a adequada tutela dos direitos.

Não cumprido o dever de proteção, por meio das práticas formais legislativas e administrativas, a vindicação recai sobre o Judiciário, enquanto poder constituído, que atua de forma coordenada e dialógica – idealmente — com os demais atores institucionais para concretizar referidos deveres. A justificação normativa da legitimidade da jurisdição constitucional nessa função, concretizadora dos direitos fundamentais, liberdades constitucionais e prerrogativas condicionadas à mediação legislativa, quando configurada a mora legislativa ou executiva (ausência de resposta a tempo e modo da moldura normativa), encontra suporte no desenho da democracia constitucional.

A preocupação com a tutela adequada e efetiva dos direitos fundamentais, em especial de sua dimensão positiva e procedimental, e com o cumprimento dos deveres de proteção impostos aos poderes, assumiu centralidade na arquitetura constitucional. Um olhar atento e crítico dos momentos constitucionais da história constitucional brasileira, e mesmo na abordagem comparada, permite inferir que o controle jurisdicional de constitucionalidade foi o principal instrumento de garantia da normatividade e autoridade das constituições.

No que diz com o controle de constitucionalidade da inércia estatal, diante de omissão total ou parcial, assume especial relevância o conjunto de mecanismos estabelecidos pela Constituição, em particular com a abertura das vias do mandado de injunção (arts. 5º, LXXI, e 102, I, “q”) e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 3º).

Ao longo dos 35 anos de inaugurada a nova ordem constitucional, atuou o próprio legislador, a adimplir a obrigação constitucional de tornar mais densos os instrumentos processuais previstos para o controle de constitucionalidade e a tutela dos direitos fundamentais, com destaque, na presente seara, para as Leis n. 9.868/1999 (ação direta de inconstitucionalidade), n. 9.882/1999 (arguição de descumprimento de preceito fundamental), n. 12.063/2009 (ação direta de inconstitucionalidade por omissão) e n. 13.300/2016 (mandado de injunção). Mas referido instrumental também foi objeto de desenvolvimento pelo Supremo Tribunal Federal, em atenção ao direito à tutela jurisdicional efetiva (art. 5º, XXXV, CF) e à concretização das normas fundamentais.

As mais de três décadas de vida do projeto constitucional evidenciam desenvolvimento da tutela da conduta omissiva dos demais poderes constituídos em ao menos três dimensões, que se imbricam na busca da efetiva resposta jurisdicional à inércia e na imposição dos deveres de proteção, com amparo na abertura conferida pelo próprio texto constitucional, que, ao prever a hipótese de declaração de inconstitucionalidade por omissão — vale dizer, pela não adoção de medida necessária à efetivação das normas constitucionais —, explicitou tanto a inércia legislativa como a mora administrativa. Ou seja, omissão que pode ser normativa ou executivo-material, desde que necessária à efetividade constitucional.

As dimensões da transformação do controle da inércia estatal, na jurisdição constitucional, dizem, primeiro, com o desenvolvimento dos instrumentos processuais, inicialmente não regulamentados no plano legal. De modo correlato, por um lado, tem-se a alteração da compreensão da omissão passível de resolução judicial, não apenas normativa tampouco pontual, e, por outro, a variação das técnicas decisórias e soluções normativas.

As mudanças permeiam o mandado de injunção e a ação direta, mas relevante espaço também ganhou, na tutela do adimplemento dos deveres fundamentais, a arguição de descumprimento de preceitos fundamentais, cujo objeto tem conformação constitucional aberta. A sua densificação ficou a cargo do legislador (art. 102, § 1º, CF), o que foi feito de maneira ampla, seja porque cabível a arguição para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público (art. 1º, caput, da Lei 9.882/1999) – ato comisso ou omissivo, até mesmo estrutural –, seja porque, no juízo de procedência, compete a fixação das condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental (art. 10 da lei).

Nesse contexto, o mandado de injunção, ao lado da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, com as diferenças e limitações de funcionalidade atribuídas a cada, constituíram, nas três primeiras décadas, os processos constitucionais principais de resolução dos problemas das omissões inconstitucionais.

No devir da sua atividade jurisdicional, o Supremo Tribunal Federal desenhou uma linha de raciocínio decisório, acerca do papel e limites do mandado de injunção, marcada por momentos constitucionais bem definidos. Falamos em momentos constitucionais para analisar a história jurisprudencial do mandado de injunção, porque os precedentes formados em cada um desses intervalos revelam, em seus pressupostos, uma sucessão de diferentes compreensões do papel delineado ao Judiciário no quadro das premissas da separação de poderes, dos diálogos institucionais e da função jurisdicional.

Tais premissas norteiam os momentos constitucionais construídos pelo Supremo Tribunal para oferecer solução ao problema da omissão inconstitucional, marcada pela inércia legislativa no seu dever de proteção dos direitos e liberdades. Nessa ordem de ideias, três foram os momentos constitucionais que se inferem do estudo da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, quais sejam: (a) o momento não concretistai, (b) o momento concretista individual intermediário e puroii, e (c) o momento concretista geraliii.

Cumpre destacar uma propriedade identificada nos contextos decisórios tanto da posição concretista geral quanto da concretista individual pura, qual seja, a existência de parâmetro normativo preestabelecido ou outro critério igualmente previsto em legislação que pudesse ser aplicado de forma analógica. Dentro desse quadro normativo, a postura de concretizador geral assumido pelo Poder Judiciário, com aparo na analogia, encontrou resistências por parte da doutrina e dos atores políticos e institucionais.

Ademais, com o recurso a sentenças aditivas e manipulativas, as técnicas decisórias assumem, nesse terceiro momento, protagonismo nas respostas dadas para a superação da omissão legislativa, redefinindo a estrutura da função e limites do Poder Judiciário, com vista à concretização direta da norma constitucional, e abrindo possibilidades decisórias para além da analogia.

O quadro transformador das premissas e possibilidades da tutela do adimplemento dos deveres de proteção diante de omissões inconstitucionais também se refletiu, como dito, na ação direta de inconstitucionalidade por omissão, de regulamentação específica tardia, passados vinte anos da promulgação da Constituição.

Em compasso com a compreensão progressivamente adotada pela Suprema Corte em relação ao papel da jurisdição constitucional na via do mandado de injunção, tem-se, em primeiro lugar, na ação direta, a adoção de técnicas decisórias e soluções normativas diferenciadas. Tanto para explicitar ao Legislativo o prazo para sanar a omissão inconstitucional — o que para ele não previsto no texto constitucional, apenas aos órgãos administrativos — como para desde logo estabelecer regime normativo transitório ou temporário, a viger até que o dever de proteção normativa seja observado pelo órgão competente.

Assim é que o Supremo Tribunal Federal, para além de declarar a mora legislativa, passou a estipular prazo para o Congresso Nacional adotar as providências cabíveis.iv Indo além, ao lado do estabelecimento de prazo dentro do qual razoável a efetiva atuação legislativa, também definiu as normas aplicáveis enquanto não editado o diploma pertinentev ou  após escoado o lapso temporal estabelecidovi.

De outra parte, indo adiante da mora no dever de legislar estabelecido pela Constituiçãovii, admitida ação direta de inconstitucionalidade por omissão na tutela de quadro de inércia administrativa consistente na não adoção de prestações normativas e fáticas abrangidas por dever de proteção fundamental, no intuito de ativar mecanismos para o enfrentamento de problemas estruturais.viii

Abertura dada que se conecta com o espaço que ganhou a arguição de descumprimento de preceitos fundamentais na tutela dos deveres de proteção, em particular na hipótese de omissão parcial atribuível ao Executivo, ou mesmo de modo imbricado ao Legislativo e ao Executivo, em delinear e executar políticas públicas adequadas e necessárias à proteção dos direitos fundamentais. Da indefinição constitucional de seu objeto, cujo delineamento legal foi amplo, conforme visto, a ADPF passou a ser locus da instalação do debate de problemas estruturais e da busca — pretendida e em alguns casos admitida — de soluções igualmente estruturais.ix

É dizer que, embora outros instrumentos processuais — em particular a ação civil pública — se apresentem como importantes veículos de litígios que visam à realização de reformas ou reconstruções estruturais no combate da inércia estatal, a ADPF assume perfil coletivo-estrutural na jurisdição constitucional brasileira. Especificamente essa nova conformação de demanda constitucional, de cariz estrutural, redimensionou o papel da ADPF como instrumento necessário para a solução dos litígios estruturais, que envolvem, em essência, a problemática das omissões parciais, ao lado das ações clássicas do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade, em especial na hipótese de se estar diante de (i) uma violação generalizada de direitos humanos; (ii) uma omissão estrutural dos três poderes; e (iii) uma necessidade de solução complexa que exija a participação de todos os poderesx.

Essa conformação traz novos influxos e desafios ao Supremo Tribunal Federal, na medida em que acentua a presença do complexo problema da incompletude da formulação e da execução de políticas públicas e exige, não raro, alto grau de envolvimento da Corte e demais atores interessados, seja na compreensão do problema estrutural trazido à arena jurisdicional, seja na construção de criativos remédios judiciais, o que pode traduzir dificuldades epistêmicas na averiguação das causas e soluções, dada a tendência de violações estruturais de direitos serem resultado de prolongada inércia estatal, possivelmente acoplada à adoção de condutas positivas inadequadas que agravam o quadro estrutural e funcionalmente inconstitucional.

i STF, MI 107, Tribunal Pleno, rel. Min. Moreira Alves, j. 21.11.1990; STF, MI 168, Tribunal Pleno, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 21.3.1990; STF, MI 107-QO, Tribunal Pleno, rel. Min. Moreira Alves, j. 23.11.1989 e STF, MI 168, Tribunal Pleno, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 21.3.1990.

ii STF, MI 283, Tribunal Pleno, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 20.3.1991; STF, MI 284, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ acórdão Min. Celso de Mello, j. 22.11.1992; STF, MI 232, Tribunal Pleno, rel. Min. Moreira Alves, j. 2.8.1991; STF, MI 361, Tribunal Pleno, rel. Min. Neri da Silveira, red. p/ acórdão, Min. Sepúlveda Pertence, j. 8.4.1994; STF, MI 472, Tribunal Pleno, rel. Min. Celso de Mello, j. 6.9.1995; STF, MI 758, Tribunal Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. 1.7.2008. Na mesma linha decisória deste último precedente, foram os julgamentos dos STF, MI 788, Tribunal Pleno, rel. Min. Carlos Britto, j. 15.4.2009; STF, MI 795, Tribunal Pleno, rel Min. Cármen Lúcia, j. 15.4.2009.

iii STF, MI 712, Tribunal Pleno, rel. Min. Eros Grau, j. 25.10.2007; STF, MI 670, Tribunal Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 25.10.2007 e MI 4733, Tribunal Pleno, Rel. Min. Edson Fachin, j. 13.06.2019.

iv STF, ADI 3682, Tribunal Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 09.5.2007; STF, ADO 67, Tribunal Pleno, rel. Min. Dias Toffoli, j. 06.6.2022; STF, ADO 27, Tribunal Pleno, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 03.7.2023.

v STF, ADO 26, Tribunal Pleno, rel. Min. Celso de Mello, j. 13.6.2019; ADO 30, Tribunal Pleno, rel. Min. Dias Toffoli, j. 24.8.2020.

vi STF, ADO 25, Tribunal Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 30.11.2016.

vii Como se tem, exemplificativamente, quanto ao direito de greve dos servidores públicos no art. 37, VII, da Constituição, o Código de Defesa do Consumidor no art. 48 do ADCT e o piso salarial nacional do magistério da educação básica pública no art. 212-A, XII, do ADCT.

viii STF, ADO 59, Tribunal Pleno, rel. Min. Rosa Weber, j. 03.11.2022.

ix Com maior ou menor dimensão estrutural pretendida, podem ser citadas as seguintes ações, conquanto nem todas admitidas ou apreciadas: ADPF 347 (sistema carcerário); ADPF 404 (sistema penitenciário baiano); ADPF 635 (“ADPF das Favelas”); ADPFs 655 e 786 (sistema tributário); ADPFs 690, 691 e 692 (dados relativos à Covid-19); ADPF 708 (Fundo Clima); ADPF 709 (proteção dos povos indígenas na pandemia da Covid-19); ADPF 742 (proteção das comunidades quilombolas na pandemia da Covid-19); ADPF 743 (gestão ambiental brasileira no Pantanal e na Amazônia); ADPF 754 (Plano Nacional de Imunização); ADPF 756 (crise no sistema de saúde de Manaus durante a pandemia); ADPF 760 e ADO 54 (desmatamento da Floresta Amazônica); ADPF 822 (enfrentamento da pandemia da Covid-19); ADPF 828 (direito à moradia de pessoas vulneráveis na pandemia); ADPFs 831 e 885 (combate à fome e segurança alimentar); ADPF 866 (política de saúde); ADPF 918 (política nacional de cultura); ADPF 939 (prazo de análise de requerimentos administrativos pelo INSS); ADPF 940 (repasses orçamentários a universidade e institutos federais de ensino superior); ADPF 973 (racismo institucional e estrutural); ADPF 976 (população em situação de rua); ADPF 984 (ICMS sobre combustíveis); ADPF 991 (proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato); e ADPF 1.059 (violência policial contra comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul).

x STF, ADPF 635-MC, Tribunal Pleno, rel. Min. Edson Fachin, j. 18.8.2020.

Autores

  • é doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, professora na pós-graduação do IDP e do Mackenzie/Brasília, pesquisadora do Núcleo de Direito Processual Comparado do PPGD-UFPR e assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal.

  • Doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Assessora Especial na Assessoria Processual da Presidência do Supremo Tribunal Federal.

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