Opinião

Violência não é normal: tributo à Mãe Bernadete da Bahia

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2 de setembro de 2023, 13h17

Diante das inovações da revolução digital e do modelo híbrido de convivência social, novos desafios éticos e morais na sociedade contemporânea, enfrentá-los é essencial para formação cidadã. O mundo atual é tão impessoal e dinâmico, que fatos importantes, palavras e ideais passam despercebidos, diante de tantas informações e telas.

A história do Brasil é forjada por lutas contra injustiças e autoritarismo de governantes, pela necessidade de evolução das condições sociais para garantia de direitos e liberdades do povo brasileiro.

A Bahia é considerada o "estado mãe" do Brasil, por ser o local do descobrimento, do jeito acolhedor do "povo baiano" e por ser o "berço" de grandes artistas, intelectuais e manifestações culturais. No território baiano, foram gestados movimentos contra o domínio europeu no Brasil, com participação efetiva de homens e mulheres, negras e caboclas, que se posicionaram firmemente contra a exploração estrangeira. O ápice dessas ações foi a independência da Bahia, movimento social e militar, iniciado em 19/2/1822, que se encerrou na data de 2/7/1823, dia que, segundo a maioria dos historiadores, representa a verdadeira independência do Brasil. Nesse tempo, os populares estavam revoltados por pagar impostos à coroa portuguesa assim como por ter que sustentar os seus luxos pelo trabalho braçal [1].

Atualmente, a sociedade brasileira continua marcada por desigualdades raciais e sociais alarmantes. As condições sociais são nefastas para a maioria da população, muitas pessoas suportam insegurança alimentar, há carência de educação de qualidade, serviços de saúde são precários, sistema de segurança pública é ineficiente, nunca houve reforma agrária, os indígenas não têm cuidados adequados, há racismo estrutural, o trabalho escravo persiste, dentre outras mazelas.

O contexto social exige a implementação urgente de politicas públicas direcionadas ao acolhimento dos vulneráveis e respeito ao próximo, trazendo dignidade para as diversas classes e áreas sociais. O estado precisa valorizar o "povo" e não apenas os visitantes das nossas belas praias, florestas e construções coloniais.

Nesse contexto, não se pode admitir que o assassinato de Mãe Bernadete, ocorrido na Bahia no dia 17/8/2023 "caia no esquecimento", passando a figurar como mais um número nas estatísticas da violência brutal. Nenhum ato violento pode ser banalizado, todo crime é uma anomalia social (teoria da anomia).

A violência contra Mãe Bernadete merece especial atenção e uma resposta incisiva das autoridades competentes, especialmente, pelo fato de que se tratava de uma pessoa idosa, com 72 anos de idade, que combatia a desigualdade racial e promovia movimentos sociais. Mais uma líder, "pessoa do bem", foi executada de modo brutal, dessa feita, com 14 tiros na cabeça, dentro de sua própria casa na companhia dos netos. É de causar medo e revolta, face à tamanha brutalidade.

Maria Bernadete Pacífico foi líder religiosa, ativista social e uma chefe quilombola brasileira, coordenou a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos e o "Quilombo Pitanga", em Simões Filho, na Bahia; exerceu o cargo de secretaria de Políticas de promoção da Igualdade Racial, no mesmo município, de 2009 e 2016. Além disso, a Mãe Bernadete atuava numa associação junto com cerca de 120 (cento e vinte) agricultores, que produzem e vendem farinha para vatapá, comercializam frutas e verduras. Importa, ainda, ressaltar que seu filho, Flávio Pacífico ("Binho do Quilombo"), foi também líder quilombola e também brutalmente assassinado no ano de 2017.

Nessa conjetura, os tiros contra a mãe Bernadete se revelam, até mesmo, previsível e deveriam ter sido evitados pelas forças de segurança pública.

Não causa estranheza que, na atual sociedade, com milhares de mensagens instantâneas e discurso livre de ódio e preconceito, as pessoas não fiquem consternadas com tamanha barbaridade. Ora, fatos similares já ocorreram, por exemplo, com a pessoa de Marielle Franco, vereadora e ativista social, que liderou diversos coletivos e movimentos feministas, negros e de favelas, que foi assinada à tiros no Rio de Janeiro em 2018 [2], até hoje não se sabem os mandantes do crime. De igual modo, ocorreu com Dorothy Stang, missionária americana, que foi assassinada no Pará em 2005, tendo se dedicado a defender o direito à terra para camponeses e à criação de projetos de proteção da floresta, agindo junto à população e ao governo [3].

O Brasil aparece no quinto lugar do ranking mundial de feminicídio, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas de Direitos Humanos (Acnud). O nosso país estar melhor apenas que os países de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos de assassinato de mulheres. Se comparado com países desenvolvidos, no Brasil se mata 48 vezes mais mulheres que o Reino Unido, 24 vezes mais que a Dinamarca e 16 vezes mais que o Japão ou Escócia [4].

Não menos importante, convém citar o caso emblemático dos ativistas Bruno Pereira, considerado um dos maiores indigenistas do século [5]; e o jornalista Dom Phillips, que foram assassinados no Vale do Javari, no Amazonas em 2022 [6], por conta da atuação pela conservação da floresta e a proteção dos povos nativos.

A impunidade nos crimes contra ativistas sociais não pode ser tolerada, exigindo uma resposta rápida e contundente das forças policiais e dos poderes republicanos, sobretudo, porque é urgente a implementação de um desenvolvimento sustentável. Tais atos bárbaros sufocam os movimentos sociais e incutem temor nas pessoas, impedindo ações para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz, igualdade e de prosperidade.

 Infelizmente, temos que dizer que essa mesma barbárie atinge milhares de crianças no Brasil, há muito tempo a morte violenta de crianças virou notícia comum nas redes sociais e na televisão. Segundo recentes pesquisas, 19 crianças e adolescentes foram assassinados todos os dias no Brasil, em 2021, conforme estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Outrossim, de 2016 a 2020, foram registrados 35 mil assassinatos de crianças e adolescentes [7]

É estarrecedor. A situação de violência generalizada não pode nos deixar insensíveis ou menos humanos nas nossas relações pessoais e profissionais, não podemos estar sempre na "superfície" dos fatos. Os poderes públicos precisam evitar esses fatos, com proteção especial aos líderes e aos movimentos sociais pacíficos. Mais do que isso, é preciso reagir contra essas atrocidades, todos devem olhar para dentro de si e avaliar, como podem influenciar positivamente a vida do outro e da sociedade em busca de paz. Há de haver solidariedade entre as pessoas.

A sensação é de que há uma falência das forças de segurança pública. Lideranças, ativistas, pessoas que representam milhares de excluídos e vulneráreis, promovem movimentos coletivos são brutalmente assassinados, não há uma estratégia para impedir esses crimes, também não se vê uma investigação eficaz e imediata para coibir e punir os criminosos.

Os referidos atos violentos têm nítida motivação social, são quase que anunciados e previsíveis, tendo em vista a posição de destaque dos vitimados, mesmo assim, não há punições para agressores, não há reparação social. A sociedade permanece inerte. O Brasil parece estar doente, adoecido pelo medo e pelo discurso de discriminação e odiosidade.

Chega de violência! Basta! Cada ser humano desse planeta é importante para a vida em sociedade; a vivência harmônica entre os atores sociais é a força motriz capaz de unir pessoas, acrescentando novos caminhos para conhecimento e evolução individual, em prol da segurança e igualdade. Estamos sempre construindo conexões pessoais, independente da relação, um ser humano pode abraçar e acolher o outro, com um simples: "Bom dia, está tudo bem?".

Não podemos esquecer a importância de cada pessoa, que cruza nossa vida, por mais rápido e singelo que seja o enlace. Há aquelas pessoas que nos guiam para o bem e nos deixam ainda mais consciente do amor e do respeito ao próximo, da necessidade de se entregar ao trabalho ou ao convívio sem medo de arriscar, sem medo de externar sentimentos, ter compaixão e praticar empatia. Outras pessoas, nos indicam o caminho do mal e, pelo modo de agir, nos mostram uma forma como não devemos agir, mas todas as pessoas são importantes na nossa caminhada.

Importante destacar que, segundo estudos, facilitar o acesso às armas de fogo não é uma medida eficaz contra a violência, o armamento acessível em vez de diminuir a criminalidade, apenas aumenta o número de mortes, homicídios, suicídios e acidentes domésticos [8]. Outrossim, essa política pode gerar o falso juízo de que o cidadão está autorizado a se defender com as próprias mãos, diminuindo ou excluindo a responsabilidade estatal na área da segurança pública. Esse cenário social armamentista e autoritário reflete a frase atualíssima da filosofa alemã Hannah Arendt: "Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança".

Quanto aos líderes, ativistas sociais, a sociedade não deve se limitar a lamentar suas mortes prematuras, "As autoridades locais devem adotar providências para o urgente esclarecimento e reparação do acontecido, a fim de que sejam responsabilizados aqueles que patrocinaram o covarde enredo e imediatamente protegidos os familiares de Mãe Bernadete e outras lideranças locais. É absolutamente estarrecedor que os quilombolas, cujos antepassados lutaram com todas as forças e perderam as vidas para fugir da escravidão, ainda hoje vivam em situação de extrema vulnerabilidade em suas terras. Assim como é direito de todos os brasileiros, os quilombolas precisam viver em paz e ter seus direitos individuais respeitados[9].

Maria Bernadete Pacífico, caridosa mãe, sua luta e a do seu filho nunca serão esquecidas. Essa singela homenagem é também um alerta para a sociedade de que esse ato brutal não será jamais ignorado e que seu legado é vivo, sua atitude é um farol a guiar milhares de brasileiros, que se aquilombam para promover atos e políticas que objetivam a edificação de uma sociedade brasileira justa, humana e solidária.

Mãe Bernadete, sempre presente!

 


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