Opinião

Juiz das garantias: tudo como dantes, quartel-general em Abrantes

Autor

  • Christian Corsetti

    é advogado criminalista no Brasil e em Portugal mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) onde também concluiu a pós-graduação em Law Enforcement Compliance e Responsabilidade Empresarial.

2 de setembro de 2023, 11h19

A Lei nº 13.964/19 introduziu significativas mudanças no Código de Processo Penal, mas as mais importantes, sem dúvida, são as que dizem respeito à figura do juiz das garantias, previstas nos artigos 3º-A a 3.º-F.

O instituto do juiz das garantias representa um avanço significativo para o sistema acusatório, pois separa a posição do juiz que acompanha a fase inicial da persecução penal (inquérito policial). Este juiz é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário (artigo 3º-B do CPP). Por outro lado, o juiz de instrução e julgamento aprecia as provas produzidas pelas «partes» no processo penal, sob o crivo do contraditório, atuando somente após o recebimento da denúncia.

A separação destas duas fases tão distintas da persecução penal é crucial para um julgamento imparcial, evitando-se, com isso, a contaminação do julgador da causa.

A competência do juiz das garantias, conforme previsão expressa, foi fixada no artigo 3º-C do CPP, ao estabelecer que: A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do artigo 399 deste Código.

No entanto, a figura do juiz das garantias, apesar da entrada em vigor da Lei nº 13.964/19 e de sua significativa importância para o sistema de justiça criminal, teve a sua eficácia suspensa por decisão do então vice-presidente do STF, o ministro Luiz Fux, através de uma liminar proferida no dia 22 de janeiro de 2020.

Depois de uma longa espera pela decisão do Plenário do STF sobre o juiz das garantias, eis que o nosso Supremo Tribunal Federal, em 24 de agosto de 2023, ao pronunciar a decisão final do julgamento, conseguiu fazer o improvável: mudar o texto legal por meio de uma burla de etiqueta.

Não vou entrar no mérito do conceito de interpretação conforme a Constituição, pois o senhor professor doutor Lenio Luiz Streck, como muita propriedade, publicou um artigo nesta ConJur sobre o tema.

Ao alterar a regra de competência, através de uma burla de etiqueta (ICC), o STF esvaziou completamente o sentido teleológico do juiz das garantias, que tinha justamente a finalidade de evitar a contaminação do juiz de instrução e julgamento.

Em Portugal, por exemplo, há o juiz de instrução, que seria uma figura muito semelhante ao juiz das garantias no Código de Processo Penal brasileiro. Esse juiz acompanha o inquérito policial e também a fase de instrução processual. Encerrada a instrução, que é uma fase facultativa do processo penal português, pois depende do requerimento de abertura de instrução (RAI) por parte do arguido (réu) ou do assistente [1], a decisão instrutória pode ser, em princípio, uma de duas: o juiz de instrução termina a instrução com um despacho de pronuncia ou com um despacho de não pronúncia [2].

Pronunciado o arguido, nem sempre cabe recurso, mas em geral, ele vai a julgamento perante o juiz de julgamento, que é outro juiz, distinto daquele que acompanhou a investigação preliminar e a instrução processual e que pronunciou o arguido. Vale destacar que na instrução processual as provas já são produzidas sob o crivo do contraditório.

Entretanto, o STF, ao apreciar a matéria do juiz das garantias, alterou o texto do artigo 3º-C do CPP, modificando os limites da competência do juiz das garantias, estabelecendo que a competência deste juiz das garantias limita-se ao oferecimento da denúncia. Isso muda completamente o sentido desse instituto jurídico tão importante para o sistema de justiça criminal brasileiro.

Para apreciar o recebimento da denúncia, o juiz da instrução e julgamento terá que analisar toda a fase preliminar do processo penal, o que não havia previsão legal para tal atividade. A consequência lógica é a contaminação do juízo de instrução e julgamento. Era exatamente isso que a Lei nº 13.964/19 pretendia evitar.

O juiz das garantias é constitucional, não há dúvidas quanto a isso. Mas, infelizmente, a decisão do STF, ao alterar o texto do artigo 3º-C, por meio de uma burla de etiqueta, não é.

Ou seja, como diriam cá em Portugal, está tudo como dantes, quartel-general em Abrantes!

 


[1] MENDES, Paulo de Sousa – Lições de Direito Processual Penal, Almedina: Coimbra, 2021, p. 84.

[2] MENDES, Paulo de Sousa – Lições de Direito Processual Penal, Almedina: Coimbra, 2021, p. 89.

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