Reflexões Trabalhistas

Os muitos equívocos do STF na análise da competência da Justiça do Trabalho

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1 de setembro de 2023, 8h00

A definição da competência é fundamental para o exercício da jurisdição, já que o Poder Judiciário só pode decidir um caso concreto dentro dos limites de sua atuação. No caso da Justiça do Trabalho, sua competência é determinada pela natureza jurídica da questão controvertida, que deve ser decorrente de uma relação de trabalho.

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A Emenda Constitucional nº 45 de 2004 ampliou a competência dessa Justiça Especializada para abarcar, dentre outras situações, as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios (inciso I do artigo 114 da CF).

Não é novidade que a relação de trabalho é o gênero, do qual a relação de emprego é a espécie. Porém, tal conceituação não resolve a determinação da competência trabalhista que não se limita à análise do vínculo empregatício, mas àquelas que envolvem uma relação de trabalho. Assim, como enquadrar as relações estatutárias; as relações de consumo, em que existe a prestação de serviços; o trabalho por meio de plataformas digitais; o trabalho voluntário e outros?

Tais dúvidas vêm sendo resolvidas, pouco a pouco, pelo Supremo Tribunal Federal. Entretanto, em muitas situações, a decisão nos parece equivocada.

Recentemente, o STF decidiu ser da Justiça Comum a competência para julgar ação ajuizada por servidor celetista contra o poder público, apesar da natureza incontroversa do vínculo empregatício (celetista) existente entre as partes. A única ministra a votar contra, foi Rosa Weber. A decisão, por maioria de votos, foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.288.440, com repercussão geral (Tema 1.143) [1].

Em outro entendimento, igualmente equivocado, o STF decidiu que a competência para processar e julgar ações que envolvam contratos de representação comercial autônoma é da Justiça Comum e não da Justiça do Trabalho. A questão foi objeto do Recurso Extraordinário (RE) 606.003, com repercussão geral (Tema 550), que entendeu ser a representação comercial um contrato típico de natureza comercial. Ficaram vencidos os ministros Marco Aurélio (relator), Edson Fachin e Rosa Weber, que entendiam (com acerto) que há relação de trabalho na representação comercial, o que por si só, já atrairia a competência da Justiça trabalhista, como expresso pelo inciso I do artigo 114 da CF [2].

Infelizmente, os equívocos não param por aí!

Observamos, perplexos, reclamações (constitucionais) em que o STF cassou decisões da Justiça do Trabalho que haviam reconhecido a existência de vínculo empregatício entre as partes.

Na reclamação (RCL) 61.115, por exemplo, o ministro Alexandre de Moraes cassou a decisão proferida pela 39ª Vara do Trabalho de Salvador, confirmada pelo TRT da 5ª Região, que havia acolhido a pretensão de uma médica para reconhecer o vínculo empregatício com um hospital, para o qual esta trabalhou de 1996 a 2013, com todas as características da relação de emprego, como a execução de tarefas de forma contínua, sob subordinação jurídica, técnica e econômica, mediante salário fixo e mensal [3].

O hospital, na reclamação para o STF, alegou que a decisão teria contrariado a ADPF 324, sobre a constitucionalidade da terceirização da atividade-fim ou meio das empresas; e, a possibilidade de organização da divisão do trabalho não só pela terceirização, mas de outras formas desenvolvidas por agentes econômicos (RE 958.252, Tema 725 da repercussão geral).

O erro do julgamento do STF é que o processo de origem não discutia se a terceirização da atividade-fim era válida ou não, mas sim, se estavam presentes os requisitos necessários para a confirmação da existência do vínculo empregatício entre as partes. De fato, o reconhecimento da fraude na "pejotização", com a incidência do artigo 9º da CLT, era decorrente da presença dos elementos básicos da relação de emprego, previstos nos artigos 2º e 3º da CLT.

Assim, andou mal a decisão do ministro Alexandre de Moraes que afastou o vínculo empregatício apesar da existência dos requisitos da pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade.

Em contrapartida, vale ressaltar a correta decisão da reclamação 61.438 de relatoria do ministro Cristiano Zanin [4].

Trata-se de reclamação para o STF proposta contra acórdão proferido pelo TRT da 4ª Região, nos autos do Processo 0020392-16.2015.5.04.0028, que reconheceu o vínculo empregatício entre um corretor de imóveis e uma imobiliária.

O autor da reclamação trabalhista pleiteou basicamente, o reconhecimento do vínculo empregatício e o pagamento de verbas salariais e rescisórias. A imobiliária ré apresentou contestação, arguindo, em preliminar, a inépcia da petição inicial. O juízo de primeiro grau, acolheu a preliminar e extinguiu o feito sem resolução de mérito. O autor recorreu da sentença e o TRT determinou o retorno à Vara do Trabalho para que o reclamante emendasse a inicial.

Regularizada a exordial, as partes compareceram em audiência de instrução, na qual foi aplicada a pena de confissão ficta à imobiliária por desconhecimento dos fatos pela preposta.

Encerrada a instrução processual, a sentença reconheceu o vínculo empregatício com o corretor de imóveis, determinando a condenação da imobiliária ao pagamento das verbas salariais e rescisórias devidas.

O TRT da 4ª Região manteve a sentença de origem, ementando o acórdão nos seguintes termos:

"VENDEDOR DE IMÓVEIS. VÍNCULO EMPREGATÍCIO. NEGATIVA DE RELAÇÃO DE EMPREGO. RECONHECIMENTO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. ÔNUS DA PROVA. Negada a relação de emprego, mas incontroversa a prestação de serviços em favor da ré, que invocou situação excepcional – prestação de serviço autônomo, na atividade de corretor/vendedor de imóveis, como fato modificativo, a teor do disposto nos arts. 818, II, da CLT, era dela o ônus da prova deste fato, do qual não se desonerou. Prevalência da primazia da realidade sobre a documentação formal invocada pela ré. Reconhecimento do vínculo empregatício que se impõe. Sentença mantida. PROCESSO nº 0020392-16.2015.5.04.0028 (ROT)"

Inconformada com o acórdão que manteve a sentença de origem, a imobiliária interpôs Recurso de Revista que não foi recebido, tendo sido remetido ao Tribunal Superior do Trabalho para julgamento de agravo de instrumento interposto.

Diante disso, a imobiliária condenada apresentou reclamação perante o STF defendendo a licitude da contratação dos serviços autônomos e pleiteando a cassação da decisão que reconheceu o vínculo empregatício com o corretor por violação às teses firmadas no julgamento da ADPF 324, da ADC 48, das ADIs 3.991 e 5.625 e do RE 958.252, assim como o reconhecimento da licitude da relação jurídica controvertida, mediante julgamento da improcedência da reclamação trabalhista originária.

Entendeu o ministro Zanin, entretanto, que a reclamação não poderia ser conhecida pela falta de aderência do caso concreto aos precedentes vinculantes do STF.

De fato, constatou o ministro que a controvérsia não era relativa à validade de eventual terceirização de mão de obra, mas sim quanto à apreciação da "configuração dos elementos fático-jurídicos necessários à formação do vínculo empregatício entre a reclamante e o beneficiário do ato reclamado, em conformidade com o artigo 3º da CLT".

Aliás, ressaltou o ministro Zanin que para se chegar à conclusão diversa, seria indispensável o revolvimento de fatos e provas, o que não é possível mediante o procedimento da reclamação constitucional, concluindo:

"Enfatizo, por fim, que a reclamação não tem por finalidade substituir as vias processuais ordinárias, sendo equivocada a sua utilização como sucedâneo de recurso ou da medida processual eventualmente cabível.

O papel constitucionalmente reservado a esse instituto é o de garantir a integridade do ordenamento jurídico mediante a tutela da efetividade das decisões desta Suprema Corte, bem como de sua competência jurisdicional. Como assinalado pelo Ministro Celso de Mello:

'[…] a reclamação não se qualifica como sucedâneo recursal, nem configura instrumento viabilizador do reexame do conteúdo do ato reclamado, nem traduz meio de uniformização de jurisprudência, eis que tais finalidades revelam-se estranhas à destinação subjacente à instituição dessa medida processual.' (Rcl 34.519 AgR/ PB, DJe de 4/5/2020).

Posto isso, nego seguimento à reclamação (art. 21, § 1º, do RISTF).

Fica, por conseguinte, prejudicada a análise do pedido liminar."

Por fim, a questão que merece destaque e que precisa ser observada pelo STF é que a Justiça do Trabalho tem competência especializada, prevista constitucionalmente, sendo a única que pode decidir quanto à existência ou não de vínculo empregatício e mais, é o órgão da Justiça competente para analisar as relações de trabalho de forma geral.

 


[4] (STF – Rcl: 61.438 RS, Relator: CRISTIANO ZANIN, Data de Julgamento: 21/08/2023, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 22/08/2023 PUBLIC 23/08/2023)

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