Opinião

Equilíbrio fiscal e o Projeto de Lei das Subvenções Públicas

Autor

  • Sergio André Rocha

    é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj livre-docente em Direito Tributário pela USP diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro) advogado e parecerista.

30 de outubro de 2023, 7h00

Um dos temas controversos em Direito Financeiro é o princípio do equilíbrio orçamentário. O debate se tornou ainda mais complexo recentemente, conforme foi ganhando espaço no discurso público a chamada "Teoria Monetária Moderna", que basicamente sustenta que Estados monetariamente soberanos não precisam se financiar a partir da arrecadação de impostos. [1]

De toda maneira, a despeito das controvérsias entre economistas, cremos que na realidade brasileira de hoje o equilíbrio fiscal se impõe como um princípio que orienta diversas regras presentes no ordenamento jurídico.

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Com efeito, ao analisarmos o disposto nos artigos 165 a 169 da Constituição é possível facilmente construir um princípio implícito, entendido como uma norma que indica um estado de coisas a ser alcançado, no sentido de que se deve buscar o equilíbrio entre receitas e despesas. Como um princípio, o equilíbrio orçamentário não teria um caráter tudo ou nada e conviveria com orçamentos deficitários. Nada obstante, não nos parece questionável que haja implícito na Constituição um princípio que aponta para o equilíbrio fiscal como objetivo.

Se na Lei Maior o equilíbrio fiscal está implícito, na Lei de Responsabilidade Fiscal ele não poderia ser mais explícito. Desde o disposto no § 1º do seu artigo 1º, passando por todos os dispositivos que regulam a receita e sua renúncia, bem como a despesa pública, vemos que a Lei de Responsabilidade Fiscal é o estatuto do equilíbrio orçamentário e da transparência.

Como nos ensina o professor Marcus Abraham, um dos grandes nomes do nosso Direito Financeiro, "a disciplina na gestão fiscal responsável, a partir da contabilidade entre o volume de receitas e os gastos públicos, é considerada pela LRF uma condição necessária para assegurar a estabilidade econômica e favorecer a retomada do desenvolvimento sustentável". "Mas não se trata de uma equação matemática cujo resultado encontra sempre o mesmo valor de receitas e despesas e uma diferença numérica exata, sempre igual a zero, indicando o perfeito equilíbrio. Permite-se a flexibilidade financeira, desde que se tenha a identificação dos recursos necessários à realização dos gastos, de maneira estável e equilibrada, numa relação balanceada entre meios e fins". [2]

Dessa forma, o Poder Executivo tem o dever jurídico de buscar o equilíbrio fiscal, mesmo que não pareça que sejam a Constituição e a Lei de Responsabilidade Fiscal que estejam pautando a obsessão do governo com o equilíbrio das contas públicas. Existe um outro ente, mais abstrato que diplomas normativos, mas muito concreto na realidade política, que também é obcecado por equilíbrio orçamentário: o "Mercado".

Não é nosso propósito comentar se a busca desesperada por equilíbrio fiscal é a política econômica mais adequada neste momento. O propósito deste texto é lidar com suas consequências na área tributária, chegando ao tema do título acima, o projeto de lei que disciplina a tributação das subvenções públicas.

Parando algum tempo para refletir, vamos notar que praticamente todas as grandes iniciativas do governo no Congresso, que ganharam enorme divulgação na mídia, referem-se direta ou indiretamente à tributação. O Executivo federal até foi arrastado para algumas pautas como a demarcação de terras indígenas, a descriminalização do aborto e a exploração de hidrocarbonetos na Amazônia. Contudo, nenhum desses temas foi de iniciativa do governo. Praticamente todos os movimentos importantes da Administração federal se deram no campo tributário ou tiveram alguma relação com a tributação e a busca pelo equilíbrio fiscal.

Esse contexto mostra-se extremamente perigoso e fértil para discursos imperfeitos e elaborações legislativas defeituosas.

Um grande exemplo que une a imperfeição discursiva e uma lei obtusa veio com a volta do voto de qualidade no Carf — que, a propósito, sempre apoiamos.

Não havia dúvida que era necessário superar o modelo, estranho para dizer o mínimo, criado pela Lei nº 13.988/2020, que tinha sido aprovado na calada da noite em uma das primeiras deliberações do Congresso no período da pandemia. Basta pensarmos que a sessão da Câmara dos Deputados que votou o texto do que viria a ser o artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002 se deu em 18 de março de 2020, na primeira semana do lockdown, quando as pessoas só tinham atenção para o coronavírus.

Um propósito correto — reverter a patologia gestada pela Lei nº 13.988/2020 — foi seguido por desinformação, discursos equivocados feitos por diversos atores do Ministério da Fazenda, e redundou na aprovação da Lei nº 14.689/2023, cujo texto defeituoso tem desafiado a inteligência dos estudiosos do processo administrativo fiscal, como percebemos a partir das análises de Carlos Augusto Daniel Neto aqui e aqui, de Liziane Angelotti Meira, aqui, e de Thais de Laurentiis, aqui.

Parece que o mesmo açodamento está ocorrendo no que se refere à corrida para se alterar o marco legal tributário das subvenções públicas, atualmente objeto do Projeto de Lei nº 5.129/23.

O tema das subvenções públicas é amplo e complexo demais para ser tratado em toda a sua extensão em uma coluna. [3] A hipercomplexidade da matéria decorre diretamente de sua conexão com um dos temas que mais evidenciam a disfuncionalidade do Sistema Tributário Nacional: os benefícios fiscais de ICMS.

Seria possível argumentar que o modelo para a concessão de tais incentivos, estabelecido na alínea "g" do inciso XII do artigo 155 da Constituição Federal e na Lei Complementar nº 24/1975 estivesse fadado ao insucesso. Ainda mais tendo sido estabelecido sob a exigência de unanimidade para a aprovação de qualquer benefício fiscal do imposto estadual. Contudo, a ineficiência do modelo não pode ser culpada por um dos mais descarados descumprimentos das regras constitucionais e infraconstitucionais por entes públicos de nossa história tributária.

Nesse contexto, benefícios fiscais de ICMS, que deveriam ser utilizados como instrumentos excepcionais, constitucionais e legítimos, de política econômica estadual, foram sucessivamente editados sem respeito às balizas constitucionais e sem qualquer evidência de conexão com políticas públicas transparentes.

Esse comportamento inconstitucional acabou legitimado pela Lei Complementar nº 160/2017, que entendeu por bem premiar os desvios constitucionais dos Estados, constitucionalizando muitos benefícios que eram verdadeiros privilégios tributários.

Ora, não é de se espantar que a União, através da Receita Federal e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, se incomodasse com os reflexos dos incentivos fiscais estaduais na apuração dos tributos federais. Tal incômodo se manifestava nas intermináveis disputas sobre a qualificação desses benefícios como subvenção para investimentos ou subvenção de custeio.

Em sua dicotomia original, uma subvenção para investimentos refletiria benefícios fiscais concedidos como instrumento de política econômica dos estados, que direcionariam recursos públicos para investimentos privados, tendo como objetivo a realização de fins que beneficiariam, de alguma forma, a sociedade. A noção de uma subvenção de custeio, em que não estariam presentes tais finalidades, sempre nos pareceu estranha. A transferência de recursos públicos para entes privados sem a caracterização acima seria, segundo vemos, simplesmente inconstitucional.

Um benefício fiscal estadual legítimo, que gere o reconhecimento de uma receita no resultado da pessoa jurídica e que não seja distribuído para os seus sócios ou acionistas, não pode ser tributado pela União. Nesse sentido, parece-nos correto o entendimento do Superior Tribunal de Justiça nos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 1.517.492, no sentido de que as decisões de investimento dos entes subnacionais não podem ser impactadas pela tributação federal, sob pena de violação do pacto federativo — não é uma questão de imunidade recíproca, mas de desrespeito à autonomia financeira dos entes subnacionais.

Esta interpretação seria aplicável de forma mais clara aos créditos presumidos e a outras formas de subvenção governamental que transitem pelo resultado das empresas. Daí, em mais um capítulo surpreendente desta novela, inicia-se um debate sobre a aplicação desta posição a outros tipos de benefício fiscal, como, por exemplo, as isenções, que nunca foram contabilizadas como receitas.

Os motivos ulteriores que deram origem a esse debate sobre a contabilização das isenções e de outros benefícios fiscais equivalentes — e se eles resultariam nos objetivos almejados — fogem ao escopo deste artigo. Escrevemos sobre um aspecto desse debate, a diferenciação entre "grandezas positivas" e "grandezas negativas" aqui.

O que podemos afirmar é que o entendimento que defendemos acima, no sentido da não tributação de receitas geradas por benefícios fiscais estaduais, seria aplicável a todo e qualquer benefício fiscal que transite pelo resultado da pessoa jurídica. O quanto essa posição será compatível com a tese firmada pelo STJ no Tema 1.182, na versão final pós julgamento dos embargos de declaração que se encontram pendentes de análise, é algo que devemos esperar para ver. Ademais, essa matéria é evidentemente constitucional, de modo que se deve esperar que em algum momento o Supremo Tribunal Federal venha a se manifestar sobre o tema.

Feitos esses breves comentários, voltaremos nossa atenção ao Projeto de Lei nº 5.129/23 (PL 5.129).

O ponto de partida deste projeto de lei é a tributação das subvenções governamentais pelo Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ), pela Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), pela Contribuição para o PIS e pela Cofins. Neste particular, o PL 5.129 nos parece potencialmente inconstitucional.

Como vimos, tributar o reflexo no resultado de benefícios fiscais de ICMS legítimos, cujos efeitos financeiros não sejam distribuídos para os sócios ou acionistas da pessoa jurídica, não é uma decisão que possa ser tomada pela União, por incompatível com a autonomia dos entes subnacionais para realizarem políticas públicas por meio da concessão de subvenções.

O equívoco jurídico desta iniciativa legislativa pode acabar custando caro, como já se percebe pelas dificuldades em sua tramitação e pelo "preço" — com e sem aspas — que está sendo cobrado pelo Poder Legislativo para a sua aprovação.

Assim como aconteceu com o caso do voto de qualidade no Carf, faz bastante sentido que se busque "fechar a porteira" que foi aberta pela Lei Complementar nº 160/2017, com a equiparação de qualquer incentivo de ICMS a subvenções para investimento. Contudo, ignorar o tanto que já se avançou no debate deste tema, tendo como foco a busca do equilíbrio fiscal no curto prazo, parece errar o alvo. O PL 5.129 gerará um contencioso tributário que levará anos para ser solucionado.

Segundo vemos, o caminho mais adequado seria a edição de um novo regime tributário para as subvenções, que restringisse a sua não tributação àquelas situações em que estivesse claro o uso da subvenção de investimento como instrumento de política pública. Típicas subvenções para investimentos, quando a renúncia fiscal pode ser equiparada a um gasto tributário estratégico do ente subnacional, devem ser a exceção, e não a regra.

Poder-se-ia argumentar que a nossa sugestão seria alcançada com a concessão do crédito de IRPJ de que trata o projeto de lei. Contudo, cremos que argumento nessa linha seja equivocado. Caso se entenda, como estamos defendendo, que a tributação das receitas de subvenção é inconstitucional, teremos um cenário onde os fatos-acréscimo de patrimônio não serão tributáveis e, adicionalmente, o contribuinte terá o direito de apurar um crédito de IRPJ, um absoluto contrassenso.

Tirando o contencioso referente ao novo regime tributário das subvenções, que cremos ser inevitável, o PL 5.129 certamente gerará litígios decorrentes da sua própria interpretação/aplicação.

Podemos falar das dificuldades inerentes aos conceitos de instalação e expansão de empreendimentos econômicos, ou mesmo da restrição do crédito a instalações e expansões físicas de empreendimentos. Do fato de que não se previu um crédito de CSLL ou mesmo das eventuais controvérsias sobre o procedimento de habilitação das pessoas jurídicas para fazerem jus ao crédito de subvenção. Contudo, nada pior que a apuração do crédito.

Com efeito, o PL 5.129 — assim como a Medida Provisória nº 1.185/2023, antes dele — fez a opção por calcular o crédito tendo por base a dita "receita de subvenção", que não é equivalente ao montante do benefício fiscal contabilizado como receita, já que a sua determinação passa pelas condições e ajustes previstos nos artigos 7º e 8º.

Não nos parece necessária grande imaginação para antecipar que a determinação da "receita de subvenção" gerará inúmeras controvérsias. Afinal, se há situações óbvias de inclusão ou exclusão deste conceito, certamente haverá uma zona de penumbra onde a qualificação da receita não ficará tão evidente.

A complexidade aumenta quando consideramos o artigo 8º, I, do PL 5.129, segundo o qual não poderão ser computadas no crédito fiscal "as receitas não relacionadas com as despesas de depreciação, amortização ou exaustão relativas à implantação ou à expansão do empreendimento econômico".

O que é ser uma receita vinculada a despesas de depreciação, amortização ou exaustão da infraestrutura instalada ou expandida? Tudo indica que se quer restringir a apuração do crédito às receitas decorrentes da atividade econômica desenvolvida na estrutura física instalada ou expandida. Nada obstante, essa certamente será outra área em que o que se instalará e se expandirá serão as controvérsias.

Diante desses comentários, muito mais simples, para a fiscalização e para os contribuintes, seria estabelecer que o crédito de IRPJ seria calculado tendo como base a o montante do benefício fiscal contabilizado como receita, tendo como limite o valor total dos investimentos realizados.

Por todo exposto, queremos concluir este texto chamando a atenção para o fato de que a busca por equilíbrio fiscal, se é juridicamente justificável, não pode se dar de forma açodada, criando-se novas áreas de contencioso, na contramão da tão propagandeada mudança de paradigma nas relações entre Administração Pública e contribuintes. A criação de um novo marco legal para a tributação das subvenções públicas é não só razoável como necessária. Porém, o PL 5.129, no nosso sentir, erra o alvo, gerando desconfiança em relação ao Executivo federal e sendo a certidão de nascimento de várias controvérsias que nos acompanharão por longo tempo caso o projeto venha a ser aprovado da forma como atualmente redigido.

 


[1] Sobre o tema, ver: ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 2 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022. p. 132-137.

[2] ABRAHAM, Marcus. Lei de Responsabilidade Fiscal Comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. .31-32.

[3] Sobre o tema vale a pena ver a recente coletânea publicada pela APET (MARTINS, Ives Gandra da Silva; PEIXOTO, Marcelo Magalhães (Coords.). Subvenções Fiscais: Aspectos Jurídico-Tributários e Contábeis. São Paulo: MP Editora, 2023).

Autores

  • é professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), livre-docente em Direito Tributário pela USP (Universidade de São Paulo), diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), advogado e parecerista.

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