EMBARGOS CULTURAIS

O Primo Basílio, de Eça de Queiróz

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

29 de outubro de 2023, 8h00

O Primo Basílio, de Eça de Queiróz, é obra-prima da literatura realista portuguesa, equivalente a Madame Bovary, de Gustave Flaubert, na literatura francesa. Alguns de nós nos encantamos com a personagem principal, Luísa, cujo "cabelo louro um pouco desmanchado, com um toco seco do calor de travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea (…)". Outros a abominam, e a reação original negativa brasileira ao romance (especialmente com Machado de Assis, que criticou o romance) é indicativa dessa falta de compreensão. Luísa é um pomo da discórdia literário, exatamente como Emma Bovary, Capitu, Gabriela e Desdêmona.

Spacca

O objetivo de Eça — penso — era enfrentar a estética romântica, atacando seus excessos. Luísa era leitora compulsiva de A Dama das Camélias (Alexandre Dumas Filho), dos livros de Walter Scott (Ivanhoe) e de outros do gênero. Entorpecida pelas heroínas românticas, se imaginou uma delas, tudo potencializado pelo vazio existencial, pela confiança extrema do marido (Jorge) e pela canalhice desses aproveitadores de plantão

Vamos ao enredo. Retornando do Brasil (e pode haver aí alguma brasilofobia) depois da quebra do pai, Basílio procurou a prima, casada com um engenheiro de minas, Jorge. Luísa, cortejada, apaixonou-se, entregando-se ao primo, que, no entanto, apenas planejava incluí-la em sua coleção de conquistas. Chegou a locar um local imundo, por economia (Basílio era um sovina), que metaforicamente chamava de Paraíso, onde se encontravam. Juliana, a empregada amarga (e aí um inegável exemplo de luta de classes), achou no lixo um rascunho de carta de Luísa para Basílio. A partir de então passou a chantagear a patroa, tratando-a a partir de então como empregada.

Consumada a conquista, Basílio seguiu para Paris, pouco se importando com Luísa. Jorge, o marido traído, retornou para o lar, depois de uma viagem de trabalho. Luísa, em desespero, revelou a estória para um amigo do marido, que tomou de Juliana todas as cartas e provas que havia. Juliana morreu. Luísa passou a viver um delírio contínuo, não aceitando o que fizera, arrependida, com o casamento moralmente desfeito. Jorge interceptou uma carta de Basílio para Luísa, guardando-a, por duas semanas, e ao final revelando à mulher que de tudo sabia. A saúde de Luísa foi mais uma vez fortemente abalada. Ainda que perdoada por Jorge, talvez nesse momento uma alma nobre e santa e desarmada, que poucas há no mundo, Luísa sucumbiu a uma pneumonia. Eça argumentou que leitoras frívolas de livros românticos podiam se ressentir de malícia e de capacidade analítica.

Há nesse livro também uma figura aparentemente menor, o Conselheiro Acácio. Um tipo que primava pelas obviedades; por tudo que envolve esse esboço humano tão realista, o Conselheiro transformou-se em um personagem maior; foi elevado pelo tempo. É mais citado e lembrado do que o próprio Basílio, patife e aproveitador, do que o bem-comportado Jorge, do que a ingênua Luísa; também é mais lembrado do que Juliana, a empregada amargurada que chantageou a patroa, Luísa, de cuja traição sabia.

É de seu nome próprio (Acácio) que se construiu um adjetivo, "acaciano", identificador de tautologias e redundâncias. O Conselheiro Acácio é, na essência, o próprio cerne do bacharelismo oco. Eça descreve o Conselheiro como alto e magro. Veste-o recorrentemente de preto. Adorna-o com um colarinho entalado no pescoço. Marca-o com um rosto aguçado. De algum modo pendura no Conselheiro cabelos tingidos, que transitavam de uma orelha à outra, colando-os por trás da nuca. A calva então brilhava, em contraste com o cabelo escuro. O bigode, no entanto, não era tingido; assim, grisalho e farto o bigode caía-lhe pelos cantos da boca. Segundo Eça, o Conselheiro era muito pálido, vivia com as lunetas no queixo; o escritor português conta-nos que o Conselheiro possuía grandes orelhas, "muito despegadas do crânio". Uma caricatura.

Formalista, gongórico, pedante, ainda que delicado e educado, o Conselheiro fora Diretor-Geral do Ministério do Reino. Era um burocrata convicto, daqueles que adoram carimbos, despachos, fichas e relatórios que não servem para nada. Toda vez que o nome do Rei era pronunciado o Conselheiro erguia-se um pouco da cadeira. Dono de gestos medidos, calculava inclusive o modo como inalava o inseparável rapé. Era histriônico.

O vocabulário do Conselheiro era excêntrico; não usava palavras triviais. Por isso, lê-se no Primo Basílio, que o Conselheiro ao invés de dizer “vomitar”, utilizava o verbo "restituir", acompanhado de um gesto indicativo. Para o Conselheiro, Almeida Garret era "o nosso Garret", Alexandre Herculano era "o nosso Herculano".

O Conselheiro citava o tempo todo. Vivia, ao que consta, “amancebado com uma criada”. Resistia às investidas de Dona Felicidade, por ele apaixonada, porém mantinha um romance clandestino como a criada que de suas coisas cuidava. Preocupado com a Economia Política, o Conselheiro, sempre segundo Eça, teria escrito uma obra intitulada "Elementos Genéricos da Ciência da Riqueza e sua Distribuição Segundo os Melhores Autores"; esse imaginário e maravilhoso livro era acompanhado de um subtítulo: "Leituras do Serão".

O Conselheiro teria também publicado outra obra de tomo, e de muito interesse, denominada de "Relação de Todos os Ministros de Estado desde o Grande Marquês de Pombal até Nossos dias, com Datas Cuidadosamente Averiguadas de seus Nascimentos e Óbitos". Esse livro deveria ser interessante, rico em pormenor, e em informações de utilidade nenhuma.

O Conselheiro parece ser um homem triste, como às vezes triste deve ter sido também Eça, como triste foi às vezes Portugal no século XIX, e como tristes somos na inutilidade dos conhecimentos que pensamos que possuímos.  De igual modo, Luísa também merece alguma defesa. Luísa é consequência, e não causa, de um mundo de valores invertidos, de pensamentos perversos e de frustrações constantes.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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