Opinião

Precisamos falar da prisão preventiva para extradição

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29 de outubro de 2023, 6h07

É indiscutível a excepcionalidade da prisão preventiva no Código de Processo Penal, admissível somente quando nenhuma das medidas cautelares alternativas à prisão for adequada e proporcional (CPP, artigo 282, §6º c/c artigo 319). Contraditoriamente, a prisão preventiva não tem sido a ultima ratio nos casos de extradição.

A extradição é a espécie mais clássica de cooperação jurídica internacional, em que um Estado (requerente) requer a outro Estado (requerido) a entrega de um indivíduo, que se encontra em seu território, para responder a um processo penal ou para cumprir pena no Estado requerente.

No plano internacional, a extradição é regulada por tratados ou promessa de reciprocidade, cabendo aos estados disciplinarem internamente os procedimentos necessários para sua implementação. No Brasil, o artigo 102, inciso I, g, da Constituição fixou a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar os pedidos de extradição passivos, nos quais o Brasil é o Estado requerido, cujo procedimento é previsto nos artigos 81 a 99 da Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017) e nos artigos 207 a 214 do Regimento Interno do STF.

A prisão preventiva para a extradição está prevista no artigo 208 do Regimento Interno do STF: "não terá andamento o pedido de extradição sem que o extraditando seja preso e colocado à disposição do Tribunal".

O dispositivo é uma reminiscência da época em que o Código de Processo Penal só previa, como medidas cautelares pessoais, dois institutos extremos: a prisão preventiva e a liberdade provisória. A brandura da liberdade provisória, de um lado, e a falta de medidas cautelares alternativas intermediárias, de outro, geravam uma presunção de elevado risco de fuga do extraditando solto (periculum libertatis máximo), especialmente em razão da sua nacionalidade estrangeira (na grande maioria dos casos). Daí porque o artigo 84, parágrafo único, do Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80) vedava a liberdade vigiada ou a prisão domiciliar do extraditando, sendo obrigatória a prisão preventiva para a extradição [1].

Com a alteração legislativa da Lei nº 12.403/2011, o artigo 319 do Código de Processo Penal passou a prever medidas cautelares diversas da prisão preventiva, em um escalonamento crescente de graus de restrição da liberdade de locomoção do acusado, reconhecendo que a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal e a aplicação da lei penal, poderiam ser garantidas com medidas menos gravosas que a prisão.

Nessa linha, o artigo 86 da Lei de Migração (Lei nº 13.445/17) corretamente passou a expressamente autorizar a prisão domiciliar, a liberdade provisória com retenção de passaporte ou outras medidas cautelares para indivíduo que aguarda decisão sobre extradição, quando pertinente, à luz da sua situação migratória, circunstâncias do caso e antecedentes pessoais.

O próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu, antes mesmo da entrada em vigor da Lei de Migração, que a obrigatoriedade da prisão para a extradição expõe "o extraditando a situação de desigualdade em relação aos nacionais que respondem a processos criminais no Brasil", inexistindo motivo "tanto com base na CF/88, quanto nos tratados internacionais com relação ao respeito aos direitos humanos e a dignidade da pessoa humana, para que tal entendimento não seja também aplicado às PPE´s" [2].

Entretanto, o artigo 208 do Regimento Interno do STF permanece em vigor e, mesmo as decisões que revogam prisões preventivas para extradição partem, inicialmente, de uma regra geral da prisão preventiva para fins de extradição, para depois analisar situações excepcionais que permitem que o extraditando responda ao processo em liberdade, com ou sem a imposição de medidas cautelares alternativas. 

Essa lógica desvirtua o artigo 5º, caput, inciso LXVI, da Constituição  "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança" , aplicável a todos os tipos de prisão cautelar. Também é incompatível com a presunção de inocência, em seu aspecto de regra de tratamento do acusado, da qual se infere que a liberdade é a regra e a prisão, a exceção.

Cria, ainda, injustificadamente, uma situação excessivamente mais gravosa a indivíduos sujeitos à extradição, quando comparados com indivíduos submetidos a processos penais no Brasil, desconsiderando que os procedimentos de cooperação jurídica internacional, assim como todos os demais, são regidos pelo respeito aos direitos humanos (CF, artigo 4º, inc. II), em linha com o entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal [3] e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso Wong Ho Wing vs. Peru, Exceções preliminares, mérito, reparação e custas. Sentença de 30 de junho de 2015, §§119 e 208).

Sendo possível garantir a utilidade e a eficácia de uma ordem futura de extradição com medidas cautelares alternativas e menos gravosas, a prisão preventiva para extradição deixa de ser uma condição de procedibilidade do processo de extradição, motivo pelo qual o artigo 208 do seu Regimento Interno do STF deveria ser expressamente revogado.

Em seu lugar, defendemos, com base na análise conjunta dos artigos 282, §6º, 312 e 319 do Código de Processo Penal e do artigo 86 da Lei de Migração, que a decisão sobre a necessidade de uma medida cautelar pessoal instrumental à extradição seja guiada por dois requisitos: 1) fumus boni iuris de uma decisão futura de extradição; e 2) periculum libertatis do extraditando.

No Brasil, o processo de extradição não inclui uma análise do mérito do processo penal estrangeiro, sendo irrelevante, assim, o fumus commissi delicti. O que se deve analisar é o fumus boni iuris, ou seja, a probabilidade de uma decisão judicial futura favorável a extradição.

A relação instrumental entre essa medida cautelar e o processo de extradição é evidenciada no artigo 84, §§4º e 5º da Lei de Migração, que determina a colocação do indivíduo em liberdade, caso o pedido de extradição não seja formalizado em determinado prazo (previsto em tratado que fundamente o pedido ou, caso baseado em promessa de reciprocidade, em 60 dias, nos termos do artigo 84, §§4º e 5º da Lei de Migração).

Sem antecipar o juízo de contenciosidade limitada realizado no julgamento da extradição, a decisão sobre a medida cautelar necessária para garantir a eficácia de ordem de extradição futura, deve incluir, no fumus boni iuris, uma análise, prima facie, desses requisitos, previstos nos artigos 82, 84 e 89 da Lei de Migração. Afinal, se houver um prognóstico de que o mérito do pedido futuro possa ser julgado em favor do extraditando, sendo negada a extradição, não deve ser decretada a sua prisão preventiva, sequer medidas cautelares pessoais alternativas enquanto aguarda o referido julgamento [4]. 

Já o periculum libertatis da decisão que decreta uma medida cautelar pessoal vincula-se à garantia da efetividade da provável ordem futura de extradição, que pode ser frustrada pelo risco de fuga do indivíduo.

Obviamente não pode haver uma presunção absoluta de fuga apenas pela nacionalidade do indivíduo, sem elementos concretos que indiquem que, em liberdade, o indivíduo buscará se furtar à aplicação da lei penal estrangeira.

A avaliação do risco deve considerar a situação migratória, as circunstâncias do caso e os antecedentes pessoais, conforme previsto no artigo 86 da Lei de Migração.

Propomos uma análise ampla da situação migratória, incluindo, além do status de documentado/indocumentado, também os vínculos profissionais, familiares e de afinidade com o Brasil. Embora tais fatores não impeçam a extradição, segundo a Súmula 421/STF, se todos eles forem positivos, enfraquecerão sobremaneira o risco, isto é, o prognóstico de o indivíduo sair do país, em linha com decisões recentes do próprio STF [5].

Além disso, é preciso considerar diversamente as duas espécies de extradição: a executória e a instrutória. Há casos de extradição instrutória em que uma ordem de prisão é decretada no Estado requerente visando a apresentação de um investigado para interrogatório e imposição de medidas cautelares alternativas à prisão.

Muitas vezes, se estiver residindo no Brasil, o indivíduo sequer saberá da existência do processo no exterior, não tendo propriamente dele se evadido, para evitar a sua responsabilização penal. Ou seja, neste caso, a não localização do indivíduo no Estado requerente não decorre de fuga, mas de mero desconhecimento.

Ademais, é corolário da presunção de inocência (CR, artigo 5º, caput, LVII; artigo 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos) na matéria probatória, a impossibilidade de obrigar o acusado a colaborar com a investigação dos fatos, sendo reconhecido expressamente como garantia constitucional o nemo tenetur se detegere (CF, artigo 5º, caput, inciso LXIII), o que também impede que a sua não apresentação para prestar depoimento, por exemplo, subsidie uma ordem de prisão preventiva [6].

O princípio da igualdade (CF, artigo 5º, caput) impõe que se analise também a proporcionalidade entre a situação do extraditando que prática o crime no exterior, e a situação de brasileiros e estrangeiros que praticam crimes similares no Brasil.

Por isso, defendemos ser incabível a prisão preventiva para extradição instrutória, se não estiver diante de uma das hipóteses que, abstratamente, a admitem, do artigo 313 do CPP. Não é cabível, portanto, a prisão para extradição instrutória em crime culposo ou em crime doloso, com punido com pena privativa de liberdade máxima igual ou inferior a quatro anos (inciso I), salvo, no último caso, se o extraditando for reincidente (inciso III).  

A medidas cautelares também devem guardar uma relação de proporcionalidade, em sentido estrito, com a gravidade da pena em concreto que se pretende garantir. É desproporcional decretar a prisão preventiva se, em caso de condenação, o acusado não será punido com pena privativa de liberdade. De forma mais simples: se não se vai prender ao final, não se pode prender durante o processo! [7] Como adverte Cordero, "medida cautelar e quantificação da pena são termos correlativos" [8].

Assim, também sustentamos que não deve ser decretada prisão preventiva, em caso de extradição executória, para crime cuja pena em concreto é inferior a oito anos, nos termos do artigo 33 do Código de Processo Penal, exceto se justificada com outras circunstâncias, em linha com o entendimento recente do STF sobre a incompatibilidade da manutenção de prisão preventiva quando é fixada, em sentença penal, o regime semiaberto para o início do cumprimento de pena, ressalvadas situações excepcionais [9].

Ademais, os critérios jurisprudenciais utilizados em situações equivalentes nacionais devem guiar a decisão sobre a necessidade de medida cautelar pessoal para extradição, vedando a prisão preventiva, salvo exceções justificadas por outros fatores, para crimes sem violência ou grave ameaça e para crimes cuja pena em abstrato ou em concreto é inferior a oito anos [10].

Aliás, também por uma questão de igualdade, se em casos criminais nacionais, a nacionalidade (ou dupla nacionalidade) do indivíduo é insuficiente, per se, para embasar uma ordem de prisão, justificando apenas retenção do passaporte [11], também não pode ser utilizada como fundamento para a prisão preventiva para extradição.

Já os antecedentes pessoais incluem a periculosidade do agente, em linha com outras decisões do STF em casos de extradição [12].   

Por fim, caso o fumus boni iuris e o periculum libertatis justifiquem a decretação de prisão preventiva para a extradição, assim como em casos equivalentes nacionais, a medida deverá ser cumprida em modalidade domiciliar, por razões humanitárias, nas situações previstas no artigo 318 do Código de Processo Penal.

Esperamos que as recentes decisões que têm corretamente substituído prisões preventivas para a extradição, por medidas cautelares alternativas (como a decisão mais recente sobre o tema, do ministro Dias Toffoli no PPE no 1130) sinalizem uma mudança mais ampla da racionalidade que as guia.

É passada a hora de superar o entendimento de que a prisão preventiva é condição de procedibilidade para o processo de extradição, passando a considerá-la o que deveria ser: uma medida cautelar excepcional. A liberdade deve ser a regra. Havendo fumus boni iuris e periculum libertatis, primeiro, verifica-se se medidas cautelares alternativas são suficientes e adequadas para garantir a executoriedade de uma futura ordem de extradição e, apenas caso não sejam, deve ser decretada, como ultima ratio e quando comprovada a sua indispensabilidade, a prisão preventiva.

 

 


[1] A constitucionalidade do artigo 84 do Estatuto do Estrangeiro foi corretamente questionada na ADPF nº 425, extinta sem julgamento de mérito, com a revogação do dispositivo pela Lei de Migração (STF, ADPF nº 425, Pleno, relator ministro Edson Fachin, j. 10.10.2018, v.u.).

[2] STF, HC nº 91.657/SP, Pleno, relator ministro Gilmar Mendes, j. 13.09.2007, m.v.

[3] STF, AgR no PPE nº 760/DF, 1ª T., relator ministro Edson Fachin, j. 10.11.2015, v.u.

[4] Nesse sentido: STF, AgRg no PPE nº 760/DF, 1ª T., relator ministro Edson Fachin, j. 10.11.2015, v.u.

[5] STF, PPE nº 1.067, relator ministro Dias Toffoli, decisão monocrática de 22.11.2022; PPE nº 1.030, relator ministro Gilmar Mendes, decisão monocrática de 05.09.2022; STF, Ext nº 1.578, relator ministro Edson Fachin, decisão monocrática em 7.5.2019; STF, PPE 874, relator ministro Ricardo Lewandowski, decisão monocrática de 8.10.2018; STF, STF, PPE nº 1.042, relator ministro André Mendonça, decisão monocrática de 19.12.2022.

[6] Antonio Magalhães Gomes Filho, Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 40.

[7] Gustavo Henrique Badaró, A Prisão preventiva e o princípio da proporcionalidade, publicado na obra Estudos Criminais em Homenagem a Weber Martins Batista. LIMA, Marcellus Polastri e RIBEIRO, Bruno de Morais (Org.) Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 160.

[8] Franco Cordero, Procedura penale. Milano: Giuffrè, 2000, p. 475.

[9] STF, AgRg no HC nº 197.797/PA, 1ª T., relator ministro Roberto Barroso, relator p/ acórdão relator ministro Aurélio, j. 08.04.2021, m.v. Reiterado em STF, AgRg no HC nº 221.936/RJ, 2ª T., relator ministro Nunes Marques, relator p/ Acórdão ministro André Mendonça, j. 27.03.2023, m.v.

[10] STF, PPE nº 1.130, relator ministro Dias Toffoli, decisão monocrática de 29.9.2023; STF, PPE nº 1105, relator ministro. Dias Toffoli, decisão monocrática de 28.06.2023; STF, PPE nº 1.067, relator ministro Dias Toffoli, decisão monocrática de 22.11.2022.

[11] Nesse sentido, STJ, 5ª T., HC nº 422.500/CE, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, j. 05.12.2017; STF, HC nº 152676/PR, 2ª T., relator ministro Edson Fachin, j. 09.04.2019.

[12] STF, PPE nº 1105, relator ministro Dias Toffoli, decisão monocrática de 28.6.2023; STF, PPE nº 1077/DF, relator ministro André Mendonça, decisão monocrática de 8.03.2023; STF, STF, PPE nº 1.030, relator ministro Gilmar Mendes, decisão monocrática de 05.09.2022. 

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