Consultor Tributário

A lúcida manifestação da AGU sobre o regime diferenciado de precatórios

Autor

  • Hugo de Brito Machado Segundo

    é mestre e doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (de cujo programa de pós-graduação — mestrado/doutorado — foi coordenador) professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado) membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA) advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität em Viena (Áustria).

25 de outubro de 2023, 8h00

A Advocacia Geral da União manifestou-se no último dia 25 de setembro, nos autos das ADIs 7.047 e 7.064, pela inconstitucionalidade das Emendas Constitucionais 113 e 114, ambas de 2021, que instituíram (mais um) regime diferenciado para o pagamento de precatórios. Elogiável sob todos os aspectos, na forma e no conteúdo, a manifestação revela a nova fase pela qual parece passar a AGU. Defende-se a administração, mas com amparo no ordenamento jurídico e na ideia de Estado de Direito, em vez de se ficar forçando a criatividade para justificar o injustificável e atender aos interesses do governo de plantão.

Spacca
Já havia escrito, aqui na ConJur, a respeito da invalidade de tais emendas, quando ainda se achavam em tramitação no Congresso (clique aqui). Representam clara violação a diversos princípios constitucionais, em especial ao Estado de Direito, porquanto não é lícito ao Poder Público, em tese submetido às leis e às decisões judiciais que as aplicam, definir se, como, quando e em que termos cumprirá uma decisão judicial. Do contrário, voltar-se-á ao tempo das Ordenações Filipinas, em que "nenhuma lei, pelo rei feita, o obriga, senão enquanto ele, fundado na razão e igualdade, quiser a ela submeter o seu poder real" (Livro 2, Título 35, § 21).

Em um Estado de Direito, que preza pela separação de poderes e pela reserva de jurisdição, pagamentos de condenações judiciais não podem ser vistos como despesas discricionárias, que o governante escolhe honrar ou não, a depender de suas conveniências e das necessidades de se realizarem outros gastos.

Na referida manifestação que apresentou nas ADIs, a AGU, além de não seguir o costume de simplesmente defender, com qualquer argumento, a validade das disposições impugnadas, reconhecendo ao revés sua invalidade, o fez ressaltando que o Supremo Tribunal Federal já apreciou o tema, quando afirmou a inconstitucionalidade das Emendas Constitucionais 30/2001 e 62/2009. E isso é verdade. Leitura dos fundamentos empregados no julgamento das ADIs 2.356 e 4.425, respectivamente, indica que eles se aplicam, como uma mão à luva, às EC 113 e 114, como bem apontado pela AGU.

Esse, aliás, deve ser um motivo para que a corte, ao julgar procedentes as ADIs 7.047 e 7.064, não module os efeitos de sua decisão. Um dos pressupostos para que se possam limitar temporalmente os efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade é a boa fé do órgão emissor do ato inconstitucional, que não tinha, à época da edição do ato, como saber que ele seria declarado inválido. No caso presente, o aviso foi dado antes mesmo de o Congresso votar as PECs que deram origem às EC 113 e 114, não à toa apelidadas de "PECs do calote".

O Supremo Tribunal Federal já afirmou, no mínimo duas vezes, que não se podem editar emendas constitucionais limitando, restringindo ou embaraçando o pagamento de precatórios, pois, quando fez isso, o poder público "violou o direito adquirido do beneficiário do precatório, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Atentou ainda contra a independência do Poder Judiciário, cuja autoridade é insuscetível de ser negada, máxime no concernente ao exercício do poder de julgar os litígios que lhe são submetidos e fazer cumpridas as suas decisões, inclusive contra a Fazenda Pública, na forma prevista na Constituição e na lei. Pelo que a alteração constitucional pretendida encontra óbice nos incisos III e IV do § 4o do artigo 60 da Constituição, pois afronta 'a separação dos Poderes' e 'os direitos e garantias individuais'" (ADI 2356). A situação, agora, é rigorosamente a mesma.

Há, contudo, um dado adicional, ainda mais grave, e muito bem percebido e pontuado na manifestação da AGU: o represamento da dívida, que pode torná-la incontrolável. As EC 113 e 114 instituem um teto, um limite para o pagamento anual de precatórios. Os valores que ultrapassam esse limite não são pagos, sendo transferidos para adimplemento no exercício seguinte.

A sistemática funciona como uma bomba relógio, e em vez de pelo menos tentar equacionar o problema dos precatórios, cria condições para agravá-lo até que se torne insolúvel. A cada ano de aplicação do regime, além dos precatórios que normalmente seriam pagos naquele exercício, herdam-se os que não foram pagos nos anos anteriores por força do teto. E assim sucessivamente. Ao reconhecer a invalidade e procurar afastar o teto, para que com isso se possa desde logo saldar a dívida pública representada pelas condenações judiciais, o poder público dá um importante passo e exemplo no sentido da responsabilidade para com a sociedade, as contas públicas e o Estado de Direito. Uma preocupação, inclusive, para com as gestões futuras, elogiável sob todos os aspectos.

Há algumas coisas que, conquanto óbvias, precisam ser lembradas. Uma delas é a de que o precatório decorre de uma condenação judicial com trânsito em julgado. Isso significa que o Poder Judiciário, a quem a Constituição deu competência para afirmar e aplicar o Direito, reconheceu que o Estado cometeu uma ilegalidade e em virtude dela precisa reparar aquele que a sofreu. Diante deste cenário, leitora, evidencia-se a melhor forma de reduzir o saldo de precatórios, no médio e no longo prazo: basta que o Estado não leve adiante cobranças que sabe ilegais, ou inconstitucionais, confiando-se de que nem todos as discutirão, e de que os poucos que o fizerem só terão êxito depois de muito tempo, quando outro já for o governante. Basta que não insista para mudar a legislação do processo administrativo para reverter julgamentos que lhes são desfavoráveis (mas que são convergentes com o entendimento do Judiciário), cercear o direito de produzir provas, e inverter a lógica do que se deve fazer no caso de dúvida.

O Direito é um sistema, e tudo está conectado. Caso se seja complacente com um Estado que: (1) conscientemente comete ilegalidades; (2) faz com que o cidadão precise ir à Justiça; (3) depois, perdendo, insurge-se contra o pagamento da sucumbência e constrói retórica de que o precatório é um meteoro indesejável, ter-se-á a fórmula perfeita para indiretamente se abolir o Estado de Direito e tudo o que se construiu ao longo de séculos de aperfeiçoamento das instituições jurídicas. Em uma frase curta: para reduzir o estoque de precatórios, basta que o Estado cumpra a lei — e os precedentes judiciais — desde o início.

Autores

  • é mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), ex-coordenador (2012/2016) do programa de pós-graduação (mestrado/doutorado) da UFC, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität, em Viena, na Áustria.

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