Opinião

Direito à morte digna: superando o tabu e a desinformação

Autor

  • Reis Friede

    é desembargador federal diretor-geral da Escola de Magistratura Federal da 2ª Região (biênio 2023/25) ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21) mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

24 de outubro de 2023, 6h33

O direito à vida constitui um patrimônio individual, não pertencente a quem nos deu ou concedeu. Do contrário, a conclusão lógica seria que nada nos foi dado ou concedido. E o gênero humano não seria senhor do próprio destino, em uma clara revogação do seu livre-arbítrio. Não se pode deixar de considerar que a concepção primordial da vida fundamenta-se em escolhas livres, baseadas no preceito elementar do livre-arbítrio. Quando por qualquer motivo se perde a capacidade de optar, perde-se também a própria razão de viver. Em suma, perde-se tudo aquilo que, em linguagem coloquial, pode ser traduzido por meio da expressão "fazer a vida valer a pena".

O direito à dignidade na vida é tema recorrente em inúmeros ensaios jurídico-doutrinários. Mas pouco se fala e se escreve sobre o direito à dignidade na morte, tema considerado um verdadeiro tabu, como se esse evento simplesmente inexistisse, não obstante ele constituir a maior certeza humana e, consequentemente, um inevitável evento futuro, ainda que de razoável imprecisão temporal.

Uma das possíveis razões que fazem com que o debate acerca do direito à morte digna não avance é que esse assunto é permeado por fatores de natureza religiosa. Ainda que outros povos estejam bastante avançados nessa questão, admitindo a eutanásia e o suicídio assistido como formas de propiciar, em casos pontuais e específicos, uma dignidade mínima ao ser humano no momento da morte, a verdade é que a maioria dos povos continua com a postura de pouca ou nenhuma reflexão sobre o assunto.

"A morte de David Goodall traz a lume um assunto polêmico por seus aspectos morais, éticos e filosóficos. A grande questão a responder é: pode um ser humano, no domínio de suas faculdades mentais, ante um quadro de deterioração irreversível da saúde ou na medida em que sua vida atinja um nível de falta de dignidade incompatível com seus valores presentes abdicar de seu direito à vida? A resposta não é simples e nem universal, mas merece a atenção de nossos legisladores, pois a cada dia um número maior de brasileiros está sujeito a tal dilema" (Celso Bohrer Teixeira; O Globo, 12 mai. 2018, p. 15).

De fato, a forte religiosidade dos brasileiros influencia na concepção que eles têm sobre a morte e os cuidados que desejariam ter no fim da vida. Segundo o geriatra Douglas Crispim, da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), a religiosidade realmente interfere nessa questão. Mas para ele também falta informação adequada sobre o que significam cuidados paliativos. Optar por um procedimento que reduza a dor, e que permita ao paciente estar com a família ao invés de uma assistência focada unicamente no prolongamento dos dias dentro de uma unidade de terapia intensiva (UTI) , tem sido uma escolha natural e humana cada vez mais aceita internacionalmente, em especial quando se trata de doença grave e incurável. Entretanto, por diversas razões, tal ainda não acontece no Brasil.

Estudo feito em quatro países (Estados Unidos, Japão, Itália e Brasil) pela revista The Economist e pela Kaiser Foundation mostra que estender os dias de vida o máximo possível é "extremamente importante" para 50% dos brasileiros, quando estimulados a pensar sobre o próprio fim da vida dentro de um hospital. Nos Estados Unidos, na Itália e no Japão, as taxas apuradas são bem inferiores (variam entre 9% e 19%); e lá a prioridade são os cuidados paliativos, cujo objetivo principal é possibilitar uma morte sem dor, desconforto ou estresse. No Brasil, só 42% da população percebem tal fato como algo muito importante.

Além do tabu presente no tema, é possível dizer também que há muita desinformação. Na opinião de Maria Goretti Sales Maciel, Médica do Hospital do Servidor Público Estadual (São Paulo), e uma das pioneiras em cuidados paliativos no Brasil, essa desinformação atinge até mesmo os profissionais de saúde. Ela ressalta que "muitos acham que cuidados paliativos são 'o fim da linha', mas já há estudos mostrando que doentes podem viver mais e melhor através de procedimentos paliativos do que submetidos a terapias agressivas e inúteis" (Cláudia Collucci; "No Fim da Vida, Brasileiro Prefere Prolongar Dias a Sentir Menos Dor", Folha de S.Paulo, 7 mai. 2017, p. B7).

Geriatra atuante em cuidados paliativos, Ana Claudia Quintana explica que os cuidados paliativos se inserem em uma área da assistência que pretende oferecer uma atenção integral para uma pessoa acometida por uma doença que ameaça a continuidade de sua vida. Portanto, um cuidado que vai além da doença. Ela relata ainda que, quando cursava a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), percebeu uma "absoluta apatia diante do sofrimento das pessoas", tendo sido aconselhada pela psicóloga da USP a se afastar da profissão, justamente por ser "empática demais". Ana Claudia abandonou o curso e chegou mesmo a planejar suicídio. Hoje, dá palestras na própria USP para alunos de Medicina, curso no qual as taxas de suicídio na instituição são elevadas e vêm aumentando (Ana Claudia Quintana; entrevista concedida ao programa Conversa com Bial, em 17 de julho de 2018). Quando ela conheceu os cuidados paliativos, identificou-se com o assunto e voltou a estudar, sendo atualmente uma representante da causa.

"A gente tem uma perspectiva de que o 'fazer tudo' é cuidar do corpo. Mas na medicina paliativa amplia-se esses cuidados. Você cuida do sofrimento físico, emocional, social, espiritual e familiar para que essa pessoa possa ter um sentido de qualidade de vida e dignidade. Quando perguntava o que fazer quando o paciente estava morrendo com muita dor, me diziam que não havia o que fazer. Fui classificada como uma pessoa incapaz de ser médica. Eu tinha 'empatia patológica'. Quando tomei a decisão de cuidar de pessoas que morrem, isso foi muito mal visto por todo mundo. Apesar da sociedade estar mais aberta para discutir esse assunto, encontrar ouvidos dentro da área de Saúde ainda é um item complicador, uma vez que a instituição se nega a acolher o que é a boa prática, o que seria melhor a ser feito" (Ana Claudia Quintana; entrevista concedida ao programa Conversa com Bial, 17 de julho de 2018).

O tabu e a desinformação que pairam sobre o assunto na sociedade brasileira dificultam a promoção de um debate isento e desapaixonado a respeito do direito à morte digna. Mas tabus existem para serem superados. Por meio de um debate informativo, respeitoso e nunca ofensivo a quem quer que seja é que as soluções surgirão. Portanto, não fujamos do debate.

Autores

  • é desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).

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