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O mundo digital não criou o "almoço grátis"

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23 de outubro de 2023, 10h35

Em A riqueza das nações, Adam Smith pontificou: "Não é da benevolência do açougueiro, cervejeiro ou padeiro que esperamos nosso jantar, mas da preocupação por seu interesse" [1]. Milton Friedman, por sua vez, pontuou que "não existe almoço grátis".

As trocas voluntárias na economia ocorrem com os agentes econômicos buscando seus próprios interesses. A grande magia do mercado está justamente nisso. Smith observou o fenômeno das trocas voluntárias em uma feira perto de onde morava. A partir de sua observação, ele construiu as bases do que consideramos, atualmente, como ciência econômica.  

Há um comentário sobre o ponto de Smith, feito por Deirdre McClosky, que vale a transcrição: "É verdade que Smith, em uma passagem famosa, mas rotineiramente mal compreendida em 1776, falou em apelar para o amor-próprio dos outros, em vez de apelar para sua caridade senhorial ou sua obediência servil: 'Não é da benevolência (ou da obediência compelida) do açougueiro, cervejeiro ou padeiro que esperamos nosso jantar (e de sua mãe, querido Adam, com quem você morava e que preparou esse jantar), mas de sua consideração (como pessoas livres) para seu próprio interesse'. Ele está dizendo que você deve ser adequadamente democrático no teatro do mercado — não esperando por direito nobre receber sem recompensa, ou por uma mesquinha falta de dignidade receber sem recompensa. Você, o padeiro e o açougueiro são iguais na visão de Smith" [2].

Pois bem. Na época de Adam Smith, não havia computadores, internet, redes sociais, automóveis etc. Mas isso não impede que usemos o seu processo observacional para entender o mundo moderno. O universo de Adam Smith era físico e material, e, portanto, era mais fácil de ser percebido. Infelizmente, o mesmo não ocorre no mundo digital. O grande empecilho é que a experiência digital cria uma ilusão de gratuidade.  

Usamos diariamente celulares que, conectados com a internet, têm mais informação que todas as bibliotecas usadas por Adam Smith juntas. E não precisamos nos deslocar para ter acesso a esse universo de dados. Está tudo a um clique de distância. Isso gera uma sensação de instantaneidade. Em um estalar de dedos, sem colocar a mão na carteira, temos muita coisa à nossa disposição. A sensação é que tudo vem fácil e gratuitamente. No entanto, isso está longe de ser verdade. É apenas uma ilusão. 

Para que tenhamos acesso às informações, diversas pessoas estão trabalhando. Se formos para a lógica de Adam Smith, elas precisariam ganhar alguma coisa para nos disponibilizar informações e serviços. As necessidades prementes do ser humano não mudaram do século XVIII para cá. Precisamos comer, nos vestir, morar, entre outras coisas. Ninguém, portanto, age primordialmente para não conseguir suprir as suas necessidades. O que mudou não foi isso, foi a forma de realizar as remunerações. É a tal monetização digital.  

Atualmente, um indivíduo pode ter um canal no YouTube e receber pelos acessos das pessoas. Uma dúvida surge nas mentes mais inquietas: "Por que ele recebe se nada é cobrado? Ora, qualquer um entra assiste e não paga nada". Então, uma peça do quebra-cabeças parece estar faltando. "A internet criou o almoço grátis? Por que alguém se disporia a gastar tempo fazendo vídeos?". Algum desavisado poderia dizer: é a comprovação do que Andy Warhol disse, no futuro todos teriam os 15 minutos de fama. Será? Fama, por si só, não paga comida, vestimentas e moradia.  

Não é preciso muita ginastica intelectual para entender a magia, os chamados youtubers ganham em razão de propaganda. O mesmo se dava com as novelas da Globo. Nós assistíamos "de graça", mas éramos expostos à propaganda. Nos modernos sistemas de streaming, pagamos sem qualquer problema. Já entendemos o valor agregado no serviço, aceitando que não existe "almoço grátis".  

Mas a ilusão da gratuidade continua gerando confusões. Algumas empresas digitais sofrem por decorrência de uma incompreensão crônica. Há diversos serviços digitais que cobram valores. Em alguns deles, por exemplo, há uma intermediação. E, nesses casos, o modelo mais justo é cobrar um valor de cada uma das partes que foram reunidas em razão da existência da plataforma. A divisão do custo entre os usuários não sobrecarrega nenhum dos lados. É o mundo digital dando concretude a ideia de justiça, que, inclusive, sempre foi defendida pelo próprio Adam Smith.  

Dividir os custos não pode ser visto como dupla cobrança. Na intermediação, cada parte tem um interesse. Uma, por exemplo, quer vender; a outra, quer comprar. O vendedor precisa de alguns tipos de serviço, o comprador precisa de outros. Só há dupla cobrança quando o mesmo serviço é cobrado duas vezes da mesma pessoa. Quando não há identidade entre serviços e pessoas, está-se diante de uma alocação eficiente de despesas, diminuindo o custo individual. Se a plataforma não puder dividir, a consequência será um custo maior para uma das partes. E, por óbvio, esse montante acaba sendo repassado no preço da transação.   

Todo esse equilíbrio pode ser prejudicado por intervenções legislativas ou judiciais. Se não se entender a lógica econômica que, atualmente, está positivada no ordenamento jurídico brasileiro , uma mudança forçada pode aniquilar um negócio. Por exemplo, excluir uma das taxas de serviços pode anular a capacidade de a empresa realizar o seu objetivo de maximizar resultado para os acionistas e stakeholders. A nova economia volta para Adam Smith, pois ele se torna mais humana, contemplando a realização da satisfação de todos os envolvidos. Um negócio digital só prospera se for bom para todos.   

Independentemente disso, é fato que uma empresa precisa de remuneração. Sem isso, ela não gera resultados e perde a razão de existir. E, se ela não existe, os clientes ficam sem o serviço. Algum desavisado diria, outra empresa entrará no lugar! Neca, neca. Se não houver a possibilidade de receita ou se houver uma redução dela sem lógica econômica , não haverá empresário assumindo o risco, funcionários dispostos a trabalhar e impostos a serem pagos. Sem a possibilidade de retorno para todos, em colaboração, não há incentivos para a prestação do serviço.  

O mundo digital parece algo totalmente dissociado do que vivemos no passado. Mas, na verdade, ele guarda mais semelhanças do que diferenças. A aparência de gratuidade não significa que o mundo digital acabou com as leis de mercado. Não significou, tampouco, que os incentivos econômicos deixaram de existir. Tudo como dantes, no quartel de D'Abrantes. A atividade humana continua sendo remunerada, e, sem possibilidade de maximização de resultados, nenhum serviço será disponibilizado.

 


[1] Smith, Adam. A riqueza das nações, Coleção Clássicos de Ouro, p. 38. Nova Fronteira. Edição do Kindle.

[2] McCloskey, Deirdre Nansen; Carden, Art. Leave Me Alone and I'll Make You Rich (pp. 177-178). University of Chicago Press. Edição do Kindle (Tradução, versão Clube Ludovico, LVM Editora)

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