Embargos Culturais

Castro Neves e as relações entre Direito e cultura

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

22 de outubro de 2023, 8h00

José Roberto de Castro Neves é um escritor, advogado, professor e pesquisador que tem alavancado de forma surpreendente as relações entre Direito e cultura. Conhece literatura, teatro, música, cinema, pintura, e aproxima todos esses campos com os problemas do Direito, de uma forma ousada e inovadora. Essa aproximação é aliciante. Seus livros, tanto os autorais quanto os que organiza, são diretos, objetivos, desprovidos de concepções teóricas vazias ou de qualquer sentido prático. Além do que, são livros de leitura de extremo prazer, bem editados, com selos de altíssima qualidade, a exemplo da Nova Fronteira. 

Spacca
Conheci o trabalho desse autor por volta de 2016, quando li a quinta edição de Medida por Medida: o Direito em Shakespeare. O autor, logo em nota de início, revela que em perspectiva própria, de advogado e professor de Direito Civil, "o jurídico permeia toda a obra do dramaturgo". Indica que há vários temas do Direito que contam com acentuado relevo na obra de Shakespeare, a exemplo, entre outros, do tema do devido processo legal, da tensão entre conteúdo e forma, das relações entre misericórdia e justiça, da responsabilização do homem por seus atos, entre outros. 

Nesse livro fundamental para a disciplina (Direito e literatura), o autor explicita as circunstâncias de vida de Shakespeare, em pequeno (porém denso) excurso biográfico, que começa retomando a celeuma relativa à historicidade do bardo, que, para muitos, não teria existido. Castro Neves moteja dessa obsessão negacionista (mais uma) e inclusive elenca os fieis leitores do inglês: Borges (para quem, segundo Castro Neves, Shakespeare era ninguém e todo mundo), Freud, Dickens, Mark Twain.  

Lembra, inclusive, de um famoso julgamento simulado que houve nos Estados Unidos (em 1987), quando três juízes da Suprema Corte debateram a autoria dos livros (isto é, das peças e dos sonetos) atribuídos a William Shakespeare. A decisão foi unânime: autoria comprovada. Ainda que os julgadores não fossem necessariamente homens de letras, ou filólogos, ou especialistas em dramaturgia, ou poetas, o evento é simbólico e qualifica o que estava em disputa.  

Retomava-se, de algum modo, o tema do plágio, que outro americano que conhece do assunto, Richard Posner, chamava de criptomnésia. Posner, em um de seus livros, indagou os porquês de o plágio atrair tanta atenção. Provavelmente, argumentou, porque é fato comum nos dias de hoje. Os limites do plágio seriam presentemente mais vagos e contestáveis, detectados com mais regularidade, reflexo de processos de digitalização e de utilização de material cibernético. Posner insistia nos motivos misteriosos e nas curiosas desculpas que marcam o plágio, com seus meios de detenção, e com suas formas de punição e de absolvição. Certamente deve ter acompanhado o julgamento noticiado por Castro Neves, e tenho dúvidas se absolveria Shakespeare da acusação.  

Em seu livro sobre as relações entre Shakespeare e o Direito, Castro Neves vincula as obras que dissecou a um problema jurídico específico. Em Macbeth, explora o tribunal da consciência. Em Júlio César, o tema da retórica. Em O Mercador de Veneza, o abuso de direito. Em Tito Andrónico, o problema do silêncio nos tribunais. Em A Megera Domada, as relações de família. Em Otelo, o Mouro de Veneza, o complexo problema da prova.  

Não sei se por causa da obsessão que tenho com Romeu e Julieta, talvez seja esse o capitulo que me pareceu mais cativante.  É um drama que trata do problema da qualificação (é o mote de Castro Neves) e que tem como pano de fundo, penso eu, o dilema do acaso.  

Foi talvez por acaso que Romeu decidiu ir a um baile na casa de uma família inimiga. Não fora convidado, e talvez quisesse comparar as mulheres belas de Verona com Rosalinda, a quem amava, e que não lhe correspondia. E foi por acaso que Romeu encontrou Julieta, que não menos por acaso se apaixonou por Romeu, que imediatamente correspondeu. E por acaso viveram um amor intenso.  

Por acaso, a estória foi muita rápida: não passou de uma semana; metaforicamente, uma rajada. E foi por acaso que um padre muito compreensivo decidiu ajudá-los. E por acaso um desencontro selou a sorte (ou o infortúnio) dos dois jovens apaixonados. Shakespeare, talvez mais do que qualquer outro autor ocidental, adverte sobre êxtases e catástrofes que decorrem dos impulsos da sexualidade. Tema a ser refletido com a crônica "Amor é prosa, sexo é poesia", de Arnaldo Jabor.  

Mas não é por acaso que Romeu e Julieta simbolizam o amor eterno e transcendente, que se esgota e se nutre nele mesmo. Morreram muito jovens. Peça a ser lida com a impressionante crônica de Ferreira Gullar sobre o amor.  

A mediação que Castro Neves faz entre a obra de Shakespeare e o Direito é um importante ponto de inflexão da história das instituições jurídicas, ao mesmo tempo em que provoca reflexões em torno de uma concepção não necessariamente metafísica de Justiça. É o que se infere nas ponderações sobre a sanção, cujo propósito não seria "apenas de punir quem infringiu a regra legal, mas também de servir de desestímulo para alguém que venha a pensar em descumprir a norma", como se lê no desafiador capítulo sobre a peça que dá título ao livro. 

Um livraço. Uma obra de iniciação que estimula a leitura dos outros livros do autor, como Caixa de Palavras, A invenção do DireitoO Espelho Infiel, que são os que me contagiaram mais simbolicamente. Castro Neves aproxima Direito e cultura, não só estimulando que advogados leiam, mas também, o que me parece primordial e radical em sua obra, mostrando para quem cultivamos as humanidades que o Direito transcende aos lugares-comuns do formalismo dogmático. 

Mais do que livros de cultura para juristas, Castro Neves também escreveu livros de Direito para leitores que se interessam por tudo que é humano, porque tudo que é humano não nos é entranho, como teria dito Terêncio, dramaturgo e poeta romano do século II a.C.  

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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