Opinião

STF e sua agenda política: a necessidade de intervenção legislativa

Autor

  • Víctor Gabriel Rodríguez

    é professor livre-docente de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP) membro do Prolam/USP autor do livro Delação Premiada: Limites Éticos ao Estado com versão ibero-americana pela Ed. Temis (Colômbia e Argentina) e bolsista da Fundación Carolina/España para professor convidado na Universidad de Granada e pela Capes na Autónoma de Madrid.

19 de outubro de 2023, 7h02

As iniciativas parlamentares para limitar a competência do Supremo Tribunal Federal necessitam análise cuidadosa, dado o risco em restringir a suprema função de garantia dos direitos cidadãos frente a possíveis abusos do Estado. Entretanto, reiterados passos da Corte, que avançam à competência do Legislativo, obrigam a mais de uma atuação parlamentar para o reequilíbrio do sistema republicano.

Muito antes que um ataque ao Estado de Direito, uma readequação da competência do STF denotaria a defesa da representatividade democrática, vontade maior da Carta.

Carlos Moura/STF
Presidente do STF, ministro Barroso, vice-presidente Geraldo Alckmin, presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (esq.), e presidente da Câmara, Arthur Lira (dir.)
Carlos Moura/STF

Breve desconstrução
Para que se possa introduzir este tema com alguma isenção, há que se romper paradigmas que se sedimentaram no imaginário coletivo. Divido-os entre os internos e os externos aos operadores do Direito.

Em primeiro lugar, desde o ponto de vista interno: aos operadores do Direito nos interessa a expansão de poder da Suprema Corte, porém a legitimidade desse interesse é questionável. Porque monopolizamos a compreensão e o manejo das decisões do STF, nossa utilidade social fermenta-se na mesma proporção em que a política é judicializada. Em outras palavras, quando a sociedade abandona as leis para ser regida por acórdãos, nosso mercado de trabalho incrementa-se. Isso, evidentemente, explica muito do silêncio da coletividade jurídica frente ao tema.

Segundo é um ponto externo, mas derivado do primeiro. Permitimos a cristalização do axioma de que qualquer crítica ao Poder Judiciário será sempre antidemocrática, quando não criminosa. A acertada máxima de que "sentença não se discute, cumpre-se" travestiu-se de proscrição a qualquer comentário ou denúncia sobre abusos pessoais ou sistemáticos de um dos poderes da nação. O Judiciário, reconheça-se, reforçou esse folclore, ao tomar medidas extremas contra aqueles que, a seu ver, abusaram de sua liberdade de crítica. Revisar um axioma é tarefa bastante difícil.

Transformações
É evidente que o papel da Suprema Corte alterou-se ao longo dos anos. Basicamente, a autoaplicabilidade dos Direitos Fundamentais deu poder aos órgãos de controle de constitucionalidade para intervirem diretamente no Executivo e no Legislativo, determinando políticas públicas ou construindo hermenêutica com força de lei. Trata-se de um fenômeno mundial, em que o Brasil não está isolado. Isolado está, entretanto, ao convencer-se de que existe uma função jurisdicional, ausente na Carta: a de substituir-se ao Parlamento.

Em nossa opinião, um caso paradigmático foi o da incriminação da homofobia (ADO 26). Naquele momento, frente a uma notória inércia do Congresso em proteger um direito fundamental, a maioria da Corte decidiu criar norma penal por analogia. A solução elementar seria a de, constatando a grave omissão legislativa, determinar prazo para que o Congresso votasse a lei incriminatória, com tudo o que isso implica: a difícil redação da norma primária e os critérios de cominação da pena [1].

O STF preferiu saltar essa fase e, sem resistência externa, criou um tipo penal por comparação, esquivando-se do comando da própria Carta que, até então, parecia clara ao dispor que não haveria crime sem lei anterior que o definisse (artigo 5º, XXXIX CF88).

Se tomamos esse caso por antonomásia, existem ao menos dois elementos em comum para situações em que o STF parece extrapolar sua esfera constitucional de poder. Primeiro deles, o fato de que trabalharia para defender direitos fundamentais, e só. Assim, ao criminalizar homofobia, descriminalizar aborto ou perseguir como instância única tudo o que julgue ser notícia falsa, estaria agindo em nome de valores absolutos, o que dispensaria do controle em freios e contrapesos. Nesse sentido, há que lembrar-se que muito foi demonstrado ao Supremo que também é absoluta a limitação constitucional de poderes, até mesmo no intuitivo princípio de que ninguém pode ser juiz em causa própria.

O segundo fator é ainda mais sensível. Ao optar por direcionar as políticas públicas ou construir lei penal, em lugar de determinar ao Poder Legislativo que sane suas omissões, o STF e a opinião pública se associam em matéria delicada: a de que os componentes da Corte Suprema seriam moral e intelectualmente mais preparados que os membros dos demais poderes.

Afirmação como essa, mesmo que possa ser materialmente verdadeira, não lhe autoriza qualquer sobreposição, como em um Iluminismo revisitado. Bem observada a realidade, é possível encontrar na Suprema Corte vicissitudes que lhe retirariam desse pedestal de incolumidade. Apenas para dar algum exemplo, restrinjo-me a uma única questão de pauta de julgamento: é notório que a emissão do primeiro voto no caso do aborto (ADPF 442) foi antecipado em plenário virtual [2], para que ocorrera antes da substituição compulsória do seu relator.

Em outros termos, nesses casos, por razões até honrosas porém distantes do interesse público [3], está incrustado o mesmo vício que o STF invoca como razão de sua superioridade frente a outros poderes: o de eleger quando deve agir e quando pode manter o direito dos jurisdicionados em pausa, no aguardo do momento mais conveniente ao órgão julgador.

Trata-se de vícios comuns a qualquer Poder, mas que escancaram a imprescindibilidade dos contrapesos. Se estes se desequilibram por algum motivo, há que reabilitá-los por norma jurídica, no status adequado.

Inércia e futuro
Diante desse quadro, há quem sustente a tese da desnecessidade de qualquer medida externa. Afinal, possíveis abusos teriam havido em um momento de excepcionalidade, que, agora superado, implicariam o restabelecimento da normalidade por si própria. Por essa tese, o Brasil estaria apenas um pouquinho atrasado na batalha mundial por reacender a democracia representativa, reinvestindo na atribuição constitucional dos legisladores eleitos pelo povo e na segurança da lei posta.

Porém, a insinuada posição de que o STF, em lugar de inércia e neutralidade, seguirá perseguindo uma agenda política para o país [4] põe em evidência que a sanação do desajuste não é mera questão de tempo. Parte da Corte aparenta realmente extrair, da Constituição, um poder de criar normas a despeito do processo legislativo. Essa, agora sim, nos parece uma hermenêutica bastante equivocada do texto Maior e, se o Congresso estiver em desacordo com ela, recebe o dever de fazer valer sua interpretação sobre quem detém legitimidade para ditar os rumos políticos da nação. Se existe, hoje, uma aguda inércia do Parlamento, ela reside em deixar de propor outras medidas que, sob o controle da nossa sempre essencial Suprema Corte, restabeleçam as engrenagens da Separação de Poderes.

 


[1] Foi nesse sentido o voto do ministro Ricardo Lewandowski: "A extensão do tipo penal para abarcar situações não especificamente tipificadas pela norma penal incriminadora parece-me atentar contra o princípio da reserva legal, que constitui uma fundamental garantia dos cidadãos, que promove a segurança jurídica de todos". p. 18 do voto no Acórdão ADO26/DF. O Min. Dias Toffoli acompanhou esse posicionamento. O ministro Marco Aurélio, mais incisivo, também clamava pela Separação de Poderes.

[3] O texto da PEC 8/2021 refere a "Manipular a pauta de julgamentos com motivações inconfessáveis é algo que deveria ser severamente punido".

Autores

  • é professor Livre-Docente de Direito Penal da USP, membro do Prolam/USP e autor do livro “Delação Premiada: Limites Éticos ao Estado”, com versão ibero-americana pela Ed. Temis (Colômbia e Argentina). Bolsista da Fundación Carolina/España, para professor convidado na Universidad de Granada e, pela Capes, na Autónoma de Madrid.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!