Opinião

Economia Ecológica e a busca de efetividade dos direitos de 3ª dimensão

Autor

  • Maicon Natan Volpi

    é especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP) e analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

18 de outubro de 2023, 7h02

Em artigo publicado na revista Nature, destacou-se que, "embora a Terra tenha passado por muitos períodos de mudanças ambientais significativas, o meio ambiente do planeta tem estado excepcionalmente estável nos últimos 10.000 anos. Este período de estabilidade conhecido por geólogos como o Holoceno viu civilizações humanas surgirem, se desenvolvererem e prosperarem. Tal a estabilidade pode estar agora ameaçada. Desde o Revolução Industrial, uma nova era surgiu, a Antropocena, em que as ações humanas tornaram-se o principal motor da mudança ambiental global. Isso poderia fazer com que as atividades humanas empurrassem o sistema terrestre para fora do estado ambiental estável do Holoceno, com consequências prejudiciais ou mesmo catastróficas" [1].

Diante da perda gradativa de resiliência do clima e da estabilidade do planeta pelo modelo de exploração econômica adotado a partir da revolução industrial [2][3], dá-se início ao estudo da chamada Economia Ecológica ou a Economia dos Ecossistemas, e "cujo objetivo principal é a gestão eficiente e sustentável do capital natural, considerando-o como um portfólio de ativos que rendem benefícios cruciais às atividades humanas" [4].

Este quadro instala-se diante duma situação de crise global socioeconômico-ambiental, que se contrapõe ao propalado princípio do desenvolvimento sustentável, o qual tomou papel central no debate internacional, em especial no sistema global de proteção dos direitos humanos, a partir dos anos 1970, conforme se verifica da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano de Estocolmo de 1972 [5], do relatório Nosso Futuro Comum [6], da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro, 1992) [7], da Declaração de Joanesburgo de 2002 [8], da Agenda 2030 (17 objetivos para o Desenvolvimento Sustentável) [9], e das inúmeras Conferências de Partes no âmbito das agências da ONU sobre mudanças climáticas [10].

Contudo, conforme se verifica, apesar da preocupação internacional quanto ao equilíbrio do desenvolvimento econômico frente às questões ambientais, as normas ambientais mantêm seu caráter de soft law, isto é, continuam representando "um processo de produção de standards normativos, que têm como vocação a regulação de comportamentos sociais, sem caráter vinculativo e cujo incumprimento não estão associadas sanções jurídicas" [11].

Em que pese o papel transformador que estes compromissos internacionais possuem, pelo incentivo ao comportamento conforme compromisso internacional aderido, não se pode desconsiderar que, por conta da sua natureza de recomendação, sem sanção pelo descumprimento, há claro comprometimento da efetividade destes compromissos internacionais.

No âmbito interno, por sua vez, o quadro não é diverso. Tratando o meio-ambiente ecologicamente equilibrado como um direito de 3ª dimensão, novamente instaura-se a crise de efetividade da tutela deste bem jurídico, agora sob o âmago de que estes direitos fundamentais são materializados por normas programáticas, cuja implementação dar-se-á na maior medida possível.

Assim como ocorre com os direitos humanos, a categorização dos direitos fundamentais em dimensões atende a finalidade de manutenção do status quo estabelecido pelas revoluções liberais. Há verdadeiro compromisso de manutenção do estado de coisas, relegando para segundo plano a concretização de normas igualmente fundamentais, sem promover uma comutação da realidade social, em especial a realidade socioeconômico-ambiental, em que pese ontologicamente todos os direitos possuírem dimensões prestacionais ou não-prestacionais.

A indivisibilidade e a interdependência dos direitos fundamentais exigem ampla efetividade na tutela de interesses jurídicos, independentemente de categorização.

Como alternativa de concretização destes direitos, diante do caráter compromissório que se atribui a estes, vem adotando-se o método indireto para proteção destes direitos, por meio do qual é apresentada uma faceta de direitos civis (liberdades públicas) aos direitos de 2ª e 3ª dimensão, método este que tem por inteligência demonstrar a ausência de diferença ontológica dos direitos.

Exemplo mais claro é o recente Tema 1.204, do STJ [12], que reafirmou o caráter ambulatorial das obrigações ambientais, fixando a seguinte tese: "as obrigações ambientais possuem natureza propter rem [13], sendo possível exigi-las, à escolha do credor, do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores, ou de ambos, ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente" [14].

Quanto à tese supra, para além dos fundamentos apresentados no precedente [15], podemos extrair também a existência de mandamento constitucional determinando que "a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, e que tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social (…)" deve observar os princípios da função social da propriedade e da defesa do meio ambiente (artigo 170, incisos III e VI). Logo, há que se comutar as relações socioeconômico-ambiental, para atribuir a todo aquele que adquire bem, com passivo ambiental, a obrigação de reparar o dano, independente de culpa, nexo causal, ou ocorrência de dano ambiental antes da aquisição do bem.

Para além dum direito de 3ª dimensão, estamos diante de direitos de 1ª dimensão, pois aquele que, valendo-se da sua liberdade, e da autonomia da vontade, adquire bem que exige reparação de danos, por este também se torna responsável, tendo em vista a indisponibilidade do interesse.

Trata-se de aplicar aqui o princípio geral econômico/contábil de avaliação prévia da depreciação de ativos quando da aquisição. Isto é, a ordem econômica não pode ignorar mais as "avarias ambientais" de um bem quando do cálculo do preço de aquisição, pois esta é uma obrigação que acompanha o bem, como se verifica, por exemplo, num veículo ou qualquer outro produto exposto no mercado de consumo, e que esteja avariado.

A lógica da menos-valia do produto avariado, por imposição constitucional, também deve acompanhar as "avarias ambientais" existentes no bem, não cabendo, consequentemente, ao adquirente, sob pena de enriquecimento ilícito, alegar excludente de responsabilidade por fato de terceiro. Trata-se da Economia Ecológica instaurada pela ordem constitucional.

O mínimo existencial compõe a dimensão ecológica dos direitos, pois o meio ambiente ecologicamente equilibrado, para além de um direito, representa o contexto no qual naturalmente estamos inseridos, dele fazemos parte, e dele extraímos todos os elementos essenciais à nossa subsistência. É valor fundamental que deve ser levada a sério.

 


Referências

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 8ª tir. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 12.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

NASSER, Salem Hikmat. Fontes e Normas do Direito Internacional: um estudo sobre a Soft Law. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2006

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2010.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Meio Ambiente. 5. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

_____. Princípios do Direito Ambiental. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

 


[1] Rockström, J., Steffen, W., Noone, K., Persson, A., Chapin, F. S., Lambin, E. R., Lenton, T. M., Scheffer, M., Folke, C., Shellnhuber, H. J., Nykvist, B., Wit, C. A., Hughes, T., Van der Leeuw, S., Rodhe, H., Sörlin, S., Snyder, P. K., Costanza, R., Svedin, U., Falkenmark, M., Karlberg, L., Corell, R. W., Fabry, V. J., Hansen, J., Walker, B., Liverman, D., Richardson, K., Crutzen, P., & Foley, J. (2009a). A safe operating space for humanity. Nature, 472–475. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/44160502_A_safe_operating_space_for_humanity/link/0fcfd502943d6b8f21000000/download. Acessado em 09/10/2023.

[2] MEA (2003). Ecosystem and human well-being: A framework for assessment. Millennium Ecosystem Assessment. Washington DC: Island Press. Disponível em: https://www.millenniumassessment.org/documents/document.356.aspx.pdf. Acessado em 09/10/2023.

[3] MEA (2005). Ecosystem and human well-being: Synthesis. Millennium Ecosystem Assessment. Washington DC: Island Press. Disponível em: https://www.millenniumassessment.org/documents/document.353.aspx.pdf. Acessado em 09/10/2023.

[4] Para mais informações vide: Andrade, Daniel Caixeta e Romeiro, Ademar Ribeiro. Degradação Ambiental e Teoria Econômica: Algumas Reflexões sobre uma "Economia dos Ecossistemas". Revista Economia, Brasília (DF), v.12, n.1, p.3–26, jan/abr 2011. Disponível em: https://anpec.org.br/revista/vol12/vol12n1p3_26.pdf. Acessado em 09/10/2023.

[5] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Declaracao%20de%20Estocolmo%201972.pdf. Acessado em 09/10/2023.

[6] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – Nosso futuro comum. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4245128/mod_resource/content/3/Nosso%20Futuro%20Comum.pdf. Acessado em 09/10/2023.

[7] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – Conferência Rio-92 sobre o meio ambiente do planeta; 1992. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4339.htm. Acessado em 09/10/2023.

[8] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – Declaração de Joanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável; 2002. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2023/08/em-declaracao-conjunta-lideres-do-brics-anunciam-a-entrada-de-seis-novos-paises/jhb-ii-declaration-24-august-2023.pdf/view. Acessado em 09/10/2023.

[9] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS); 2015. Disponível em: https://www.undp.org/sustainable-development-goals?gclid=EAIaIQobChMI7PD9sLXrgQMVxl9IAB00pwgvEAAYASAAEgI8J_D_BwE. Acessado em 09/10/2023.

[10] Sobre as Conferências de Partes vide: VOLPI, Maicon Natan. COP@&: Afinal, o que são e como surgiram as COPs? Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7072, 11 nov. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101062. Acesso em: 09/10/2023.

[11] NEVES, M. S. Soft Law. In: NASSER, S. H. Fontes e Normas do Direito Internacional: Um Estudo sobre a Soft Law. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 251.

[12] Referido entendimento já havia sido fixado por meio do Enunciado da Súmula 623/STJ, publicada no DJe de 17/12/2018, com o seguinte teor: "As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor".

[13] Lembrou a relatora que o artigo 2º, parágrafo 2º, da Lei 12.651/2012 atribui expressamente caráter ambulatorial à obrigação ambiental, ao dispor que elas têm "natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural".

[14] REsp 1.953.359-SP, rel. ministra Assusete Magalhães, Primeira Seção, por unanimidade, julgado em 13/09/2023. RESP 1.962.089-MS, rel. Ministra Assusete Magalhães, 1ª Seção, por unanimidade, julgado em 14/09/2023.

[15] Acrescentando ilustre escólio dos Ministros do STJ: "o atual titular que se mantém inerte em face da degradação ambiental, ainda que pré-existente, comete ato ilícito, pois a preservação das áreas de preservação permanente e de reserva legal constituem imposições genéricas, decorrentes diretamente da lei. São, por esse enfoque, pressupostos intrínsecos ou limites internos do direito de propriedade e posse (…) quem se beneficia da degradação ambiental alheia, a agrava ou lhe dá continuidade não é menos degradador" (REsp 948.921-SP, rel. ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe 11/11/2009)

Autores

  • é analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo e especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP).

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