Opinião

Atuação de guardas municipais na repressão ao crime

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16 de outubro de 2023, 7h00

Questão tormentosa que se coloca à baila nos dias atuais refere-se à atuação de guardas municipais na repressão ao crime.

Sem a pretensão de esgotar o tema e com o devido respeito a opiniões divergentes, nunca houve dúvida acerca do papel de referidas instituições no Sistema de Segurança Pública, tanto que inseridas no respectivo capítulo em nossa Carta Magna.

Aliás, nesse diapasão, confirmando que já estava claro na norma constitucional, o E. STF, ao julgar a ADPF 995, assentou como "inconstitucional todas as interpretações judiciais que excluem as Guardas Municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de Segurança Pública".

Referido "decisum" reforçou o pensamento de alguns operadores do Direito de que guardas pudessem exercer poder de polícia de segurança pública de forma irrestrita.

Equivocada, porém, a meu ver, tal conclusão.

Isso porque, embora parte integrante do aparato de segurança pública, guardas municipais possuem finalidade específica e bem delimitada por regra do topo da pirâmide de Kelsen, não podendo ser contrariada por regras de patamar inferior.

Nesse sentido, o §8º, do artigo 144, é de clareza indubitável. Vejamos:

"Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei."

Corroborando a regra constitucional, a Lei 13.022/2014 (Estatuto Geral das Guardas Municipais) é imperativa ao reconhecer a legalidade da atuação de guardas municipais quando voltada "a proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município" (artigo 4º, caput).

Desta feita, não se pode admitir, com base na singela afirmação de que são parte do Sistema de Segurança Pública, a atuação de seus membros como se fossem policiais militares ou civis.

De fato, não podem à revelia da lei patrulhar indistintamente de maneira ostensiva, encetar diligências investigativas e revistar pessoas sem que haja bem delimitado o interesse público municipal, sob pena, assim agindo, incorrerem em nulidade que maculará futura e eventual ação penal.

Nesse sentido, "É pacífica a orientação nesta Corte Superior de que os integrantes da guarda municipal têm função delimitada, não tendo atribuição de policiamento ostensivo (…)” e que a guarda municipal “(…) não pode exercer atribuições das polícias civis e militares, de modo que a sua atuação deve se limitar à proteção de bens, serviços e instalações do município" (STJ, AgRg no HC 810.608 / SP, de relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgamento em 25/4/2023).

Conclui-se, portanto, que a exata delimitação de seus atos é a existência de interesse municipal em sentido amplo. Se não houver interesse de referido ente federado, ilegal será sua atuação, exceto em casos de flagrância delitiva, quando qualquer do povo possui autorização para agir.

Aliás, convém pontuar, recente decisão do E. STJ, prolatada após o julgamento da ADPF 995, que bem delimitou o tema em análise, ao deliberar que "conquanto não sejam órgãos policiais propriamente ditos, as guardas municipais exercem poder de polícia e também algum poder policial residual e excepcional dentro dos limites de suas atribuições", quais sejam, os de "proteger os bens, serviços e instalações municipais, assim como os seus respectivos usuários" (STJ, 3ª Seção, HC nº 830,530/SP, de relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz, VU, em 27/10/2023).

Há, contudo, uma "válvula de escape" para atuação de guardas municipais em temas não relacionados a interesses municipais, a saber, a possibilidade de prisões em flagrante por qualquer do povo.

Entretanto, mesmo aqui é necessário cautela.

Com razão, a autorização indistinta para se prender em flagrante, em especial em crimes permanentes, tornaria letra morta a vedação de atuação fora de suas atribuições constitucionais, sob o singelo argumento de que por haver flagrância, estariam os guardas autorizados a agir.

Situação semelhante foi enfrentada pelo E. STF ao analisar invasões de domicílio, sem mandado judicial, posteriormente justificadas com base na localização de drogas (Tema 280 do STF), oportunidade em que balizou, de forma clara, quando são admitidas e quando não são.

Seguindo a mesma "ratio", o E. STJ andou bem ao deliberar sobre a possibilidade de prisão em flagrante por qualquer do povo e também por guardas municipais, ainda que não constatada a existência de interesse do Município, em casos de certeza visual do delito.

Nessa linha, o E. STJ foi claro ao deliberar que referido artigo "contemplou apenas os flagrantes visíveis de plano, como, por exemplo, a situação de alguém que, no transporte público, flagra um indivíduo subtraindo sorrateiramente a carteira do bolso da calça de outrem e o detém. (…) Diferente, porém, é a hipótese em que a situação de flagrante só é evidenciada após realizar atividades invasivas de polícia ostensiva ou investigativa como a busca pessoal ou domiciliar, uma vez que não é qualquer do povo que pode investigar, interrogar, abordar ou revistar seus semelhantes.[…]" (STJ, 6ª Turma, REsp nº 1.977.119/SP, de relatoria do ministro Rogerio Schietti, em 16/8/2022)

Em suma, constatada a certeza visual do delito, estão autorizados os guardas a realizarem a prisão em flagrante. Caso contrário, em situações em que não existe a certeza visual do delito e que a situação flagrância só é evidenciada após a revista pessoal ou diligências posteriores, não está autorizada a prisão por qualquer do povo (nem a guardas municipais), com consequente nulidade das provas colhidas.

Tema correlato e que levanta dúvidas é a validade, ou não, da prisão em flagrante decorrente de delação anônima. Poder-se-ia aventar que tal ato consistiria em atividade investigativa por parte de guardas municipais.

Entretanto, o simples fato de existir delação anônima não importa o reconhecimento inevitável de ilegalidade da ação dos agentes municipais, pois cientificados de eventual crime em andamento, pode ocorrer que se deparem com situação de certeza visual do delito, o que, nos moldes já mencionados, os autoriza a agir.

Situação semelhante já foi enfrentada pelo E. STJ que assim decidiu:

"É possível que, durante o patrulhamento preventivo, destinado à salvaguarda da população local, bem como de bens, serviços e instalações, as guardas municipais se deparem com situação de flagrante delito ou, ainda, que, diante de notitia criminis, envolvendo qualquer dos bens jurídicos mencionados, procedam à atividade de vigilância no local indicado para se certificar de sua veracidade, hipóteses nas quais, de nenhum modo, estariam desautorizadas a agir" (STJ, AgRg no HC 621.586/SP, de relatoria do ministro Rogério Schietti, 6ª Turma, julgamento em 21/9/2021).

Por fim, convém ressaltar que, a par da necessária constatação do interesse municipal, a excepcional possibilidade de revistas pessoais por guardas municipais deve ainda observar a existência de "fundada suspeita" (artigo 240, §2º, do CPP), pois o "fato de haverem sido encontrados objetos ilícitos – independentemente da quantidade – após a revista não convalida a ilegalidade prévia" (STJ, RHC 158.580/BA, de relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz).

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