Opinião

Lei do Vale-Pedágio e a prescrição de 12 meses para cobrança da dobra do frete

Autor

  • Rafael Caselli Pereira

    é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) membro do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e Ceapro (Centro de Estudos Avançados de Processo) e advogado.

7 de agosto de 2022, 15h16

A Lei n° 10.209/2001 instituiu o Vale-Pedágio obrigatório para utilização efetiva em despesas de deslocamento de carga por meio de transporte rodoviário nas rodovias brasileiras (artigo 1º). No sentido de evitar uma prática muitas vezes abusiva adotada pelas empresas tomadoras e/ou embarcadoras das cargas, estabeleceu-se que o valor do vale-pedágio não integra o valor do frete, não será considerado receita operacional ou rendimento tributável, nem constituirá base de incidência de contribuições sociais ou previdenciárias (artigo 2º).

Spacca

Após anos de intensos debates jurisprudenciais sobre a validade da indenização pela dobra do valor do frete pelo não fornecimento antecipado do vale-pedágio, concluiu-se pela constitucionalidade do artigo 8º, da Lei nº 10.209/2001. Tal conclusão se deu na data de 27/3/2020, ocasião em que o Supremo Tribunal Federal julgou a ADIn 6.031[1] proposta pela Confederação Nacional da Indústria, fixando precedente vinculante e obrigatório sobre o tema.

Ocorre que a Lei nº 10.209/2001 sofreu recente e relevante alteração instituída pela Lei nº 14.229, de 21/10/2021. Estamos nos referindo ao artigo 4º da Lei nº 14.229/2021 que reduziu o prazo prescricional para 12 meses, através da inserção do parágrafo único no artigo 8º, na Lei nº 10.209/2001, dispondo que: "Parágrafo único. Prescreve em 12 (doze) meses o prazo para cobrança das penas de multa ou da indenização a que se refere o caput deste artigo, contado da data da realização do transporte". Antes da alteração legislativa o prazo prescricional pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça era o de dez anos [2], ou seja, reduziu-se substancialmente o prazo de prescrição.

A nova disposição legal entrou em vigor na data de sua publicação (cf. artigo 7º, inciso I da Lei nº 14.229/2021), isso é, em 22/10/2021 (dia em que a referida Lei foi publicada no Diário Oficial da União), contudo, por ausência de qualquer regra de transição e direito intertemporal, faz-se necessário demonstrar como se daria o alcance do prazo prescricional para os fretes prestados antes e após a vigência da Lei nº 14.229, em 21/10/2021.

Sobre o tema da irretroatividade dos efeitos da Lei nº 14.221/2021 para os fretes prestados antes da vigência da referida lei, a jurisprudência já vem se manifestando. Em acórdão da apelação nº 50021477420208210155 [3], julgado pela 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, concluiu o desembargador relator Aymoré Roque Pottes de Mello que "a superveniência da Lei nº 14.229/2021 — que alterou a redação do parágrafo único do art. 8º da Lei nº 10.209/2001 e fixou o prazo prescricional de um ano para a cobrança das penas de multa e indenização previstas no caput do artigo —, não produz efeitos no caso concreto, porquanto ausente previsão legal expressa que determine a retroação de seus efeitos".

No julgamento dos Agravos de Instrumento nº 51999168520218217000 [4] e 52240005320218217000 [5], concluiu a desembargadora relatora Cláudia Maria Hardt ser descabida a pretensão de aplicação da alteração legislativa (Lei nº 14.229/21), onde definido o prazo prescricional de 12 meses a contar da data da realização do transporte. Ante o princípio da irretroatividade da lei, aplicável ao caso o prazo decenal previsto no artigo 205 do CC, conforme reconhecido por este órgão fracionário.

Como sabemos, a contagem do novo prazo prescricional reduzido em relação às situações jurídicas pendentes quando do início da vigência da nova lei pode ocorrer de maneiras distintas a depender das seguintes particularidades: a) existência de vacatio legis; b) existência de regras específicas de direito intertemporal que regule a transição entre os regimes jurídicos; c) ausência de vacatio legis e regras de transição. Cada uma dessas situações enseja tratamento diferente em relação à contagem do prazo prescricional reduzido, sendo que aqui nos interessa esta última hipótese.

A vacatio legis [6], desde que estabelecida em prazo que assegure a observância do princípio da segurança jurídica, é considerada regra de transição suficiente para assegurar a aplicação imediata da lei nova a todas as situações jurídicas pendentes, entendidas estas como aquelas representativas de direitos ainda não exercidos por seus titulares, independentemente da época do nascimento da pretensão (actio nata) sujeita à prescrição.

A propósito do tema, importa consignar que o artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil estabelece que "a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada". Embora a regra seja a imediatidade dos efeitos da lei, o direito positivo brasileiro não contém regra genérica de transição para a contagem do prazo prescricional reduzido em relação às situações jurídicas pendentes quando do início da vigência da nova lei [7]. Como é evidente, o problema ora examinado não é "de pequena repercussão". Alteração tão drástica não poderia ser promovida sem que se previsse regra de transição ou, ao menos, prazo de vacatio legis alargado, a fim de que as pessoas lesadas pudessem exercer sua pretensão judicialmente. Ao não o fazer, a lei acabou por violar a garantia fundamental prevista no inciso XXXV do caput do artigo 5º da Constituição ("a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito").

Diante disso e considerando a falta de regra expressa de transição e de direito intertemporal pela ausência de um prazo mínimo que possibilitasse que fosse exercido tempestivamente o direito adquirido antes da alteração legislativa, a regra de eficácia imediata do artigo 4º inserida no parágrafo único do artigo 8º da Lei nº 10.209/2001 pela Lei nº 14.229/2021, que estabelece prazo prescricional de 12 meses da data da realização do transporte para o exercício da pretensão:

a) Não se aplica para as ações ajuizadas antes de 21/10/2021;

b) Não se aplica para as ações ajuizadas após 21/10/2021 que buscam cobrar a indenização pela dobra do frete considerando os fretes prestados sem o fornecimento antecipado do vale-pedágio antes de 21/10/2021;

c) Aplica-se integralmente às pretensões surgidas a partir de sua entrada em vigor, ou seja, para todos as ações ajuizadas que tenham como pretensão os fretes prestados após 21/10/2021.

Em síntese: quanto as pretensões para cobrança da dobra do frete surgidas para fretes prestados antes da Lei nº 14.229/2021, ou seja, até 20/10/2021, observa-se o prazo prescricional que era o observado à luz do contexto normativo precedente, ou seja, de dez anos e quanto às pretensões surgidas para cobrança de fretes prestados após a Lei nº 14.229/2021, ou seja, após 21/10/2021, observa-se o prazo prescricional de 12 meses.


[1] STF – ADI: 6031 DF, Relator: CÁRMEN LÚCIA, data de julgamento: 27/3/2020, Tribunal Pleno, data de publicação: 16/04/2020.

[2] STJ – REsp: 1520327 SP 2011/0283355-0, relator: ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, data de julgamento: 5/5/2016, T4 – 4ª TURMA, Data de Publicação: DJe 27/5/2016.

[3] Apelação Cível, Nº 50021477420208210155, 11ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Aymoré Roque Pottes de Mello, Julgado em: 23/3/2022.

[4] Agravo de Instrumento, nº 51999168520218217000, 12ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relatora: Cláudia Maria Hardt, julgado em: 24/3/2022.

[5] Agravo de Instrumento, nº 52240005320218217000, 12ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relatora: Cláudia Maria Hardt, julgado em: 24/3/2022

[6] O Supremo Tribunal Federal ao se basear nos precedentes que deram origem à Súmula 445 e no julgamento do RE 566.621, concluíram que a vacatio legis é regra de transição suficiente para assegurar a eficácia imediata do prazo prescricional reduzido a partir da vigência da nova lei, essa conclusão foi sempre precedida da análise da suficiência da regra de transição para atender o princípio da segurança jurídica.

[7] CAVALCANTI, Marisa Pinheiro. A redução do prazo prescricional e a sua aplicação às situações jurídicas pendentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, nº 3338, 21 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22454. Acesso em: 28 jul.2022.

Autores

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    é advogado no Rio Grande do Sul, mestre pela PUC-RS, especialista e membro da Academia Brasileira de Direito Processual (ABDPC), além de professor convidado da Escola Superior de Advocacia (ESA).

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