Opinião

A competência da Justiça do Trabalho e a preservação dos direitos sociais

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16 de outubro de 2023, 17h17

Nas últimas semanas, a comunidade jurídica voltou sua atenção para as decisões do STF (Supremo Tribunal Federal) proferidas em matéria trabalhista. Os ministros, por meio de decisões monocráticas, anularam decisões de tribunais trabalhistas nas quais se reconhecia a existência de vínculo empregatício em favor de trabalhadores que desempenharam suas atividades no âmbito de relações jurídicas que, na visão dos magistrados trabalhistas, tentavam maquiar a existência de relações de emprego para suprimir direitos trabalhistas.

Esta polêmica acontece em meio a um aumento exponencial do número de contratos de trabalho não celetistas — fenômeno visto por muitos como um avanço e modernização das relações de trabalho  e a uma indefinição a respeito da natureza jurídica destas novas formas de trabalho sob demanda, que ocorrem dentro do movimento conhecido como "uberização do trabalho".

Apesar de soar como algo novo, trata-se de problema conjuntural antigo, decorrente da própria formação histórica do direito do trabalho no Brasil, que levou à construção teórica do binômio subordinação/proteção x autonomia/desproteção.

No Brasil, a legislação trabalhista surgiu tardiamente, muito em função da predominância da atividade precipuamente agrícola até 1930. Até então, os efeitos prejudiciais decorrentes da atividade industrial na vida dos trabalhadores não eram reconhecidos a ponto de desencadear alguma mobilização para que se fizesse algo a respeito. Mais do que isso, não havia interesse político em criar uma legislação protetiva, uma vez que a classe dos trabalhadores era formada predominantemente por imigrantes que ansiavam retornar para a Europa e ex-escravos, os quais eram considerados "privilegiados" pelo simples fato de serem proprietários de si mesmos [1].

Com o advento da industrialização em larga escala, escancarou-se a insalubridade do ambiente fabril desregulamentado e, também, a necessidade de se pensar em uma estrutura normativa que impusesse algum limite à atividade econômica opressiva. Nesse contexto, forma-se, não só uma legislação trabalhista incipiente, mas também um esboço do que seria a Justiça do Trabalho enquanto justiça especializada.

Assim, a Constituição Federal de 1934 previu a Justiça do Trabalho, que foi efetivamente instalada por Getulio Vargas em 1º de maio de 1941. Posteriormente, a legislação trabalhista foi consolidada e aprimorada na CLT, em 1943. Este documento privilegia a figura do empregado, reconhecendo-o como a parte mais fraca da relação estabelecida com seu empregador, e busca protegê-lo das consequências adversas decorrentes do modelo capitalista de apropriação dos resultados do trabalho alheio.

Nesse panorama, as recentes decisões do STF abalam a própria estrutura histórica do direito do trabalho brasileiro, dando novo espaço para a discussão acerca da competência material da Justiça do Trabalho.

Nos termos do artigo 114, inciso I, da Constituição, compete à Justiça do Trabalho processar e julgar "as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios".

Não é novidade, no âmbito trabalhista, que relação de trabalho é gênero da qual a relação de emprego é espécie. Falta, contudo, maior esforço da doutrina para precisar esta terminologia e, assim, evitar as não raras tautologias que empregam os conceitos de maneira equivocada. A própria Constituição Federal, em seu artigo 7º, caput e inciso XXIX, utiliza as expressões "trabalho" e "relação de trabalho" para se referir a "emprego" e "relação de emprego". A CLT, por sua vez, embaralha os conceitos de relação de trabalho e emprego em diversas passagens, sempre que quer se referir à segunda.

Por essa razão, para delimitar a qual relação de trabalho a Constituição está se referindo ao definir a competência da Justiça Trabalho, deve-se utilizar um método interpretativo histórico, analisando-se a redação do artigo 114 da Constituição Federal anterior à Emenda Constitucional 45/2004.

Antes desta alteração normativa, entendia-se caber à JT julgar conflitos decorrentes de relações de emprego e, excepcionalmente, alguns decorrentes de relações de trabalho lato sensu. Isso porque a redação do artigo 114, à época, utilizava o critério pessoal, limitando a competência a litígios entre "trabalhadores e empregadores" e mantendo o entendimento das Constituições de 1934, 1946 e 1967, que lhe precederam.

Após a Emenda Constitucional 45/2004, o artigo 114 da CF rompe com a definição anterior e faz referência expressa a "ações oriundas da relação de trabalho". Conclui-se, então, que o Constituinte derivado conhece a diferença entre relação de trabalho e relação de emprego e, uma vez que a lei não comporta palavras vazias, é clara a intenção de alargar a competência da Justiça do Trabalho, atribuindo-lhe poderes para analisar uma maior gama de relações pautadas na exploração da força de trabalho humano.

Contudo, em uma sociedade em que o trabalho é um fato social e ocupa papel central nas relações sociais estabelecidas [2], é preciso verificar a qual relação de trabalho a Constituição está se referindo.

Para que o trabalho seja o liame de um vínculo jurídico obrigacional  e, portanto, matéria de interesse da Justiça do Trabalho  é indispensável que o objeto dessa relação jurídica seja propriamente a exploração da capacidade de trabalho de uma pessoa, e não a coisa produzida. Para tanto, o trabalho deve ser exercido por conta alheia. É que nesse tipo de relação, o trabalhador não é proprietário dos resultados de seu trabalho  que se revertem ao tomador  de maneira que o elo jurídico estabelecido entre as partes reside no próprio trabalho, ainda que o que se almeje sejam os resultados da atividade [3].

Vale dizer, no estado de natureza, todo o valor gerado pelo trabalho humano se reverte em benefício de seu realizador. Com a transição para a forma de produção capitalista, apenas parte dos frutos do trabalho passou a retornar ao produtor originário, de maneira que esse processo de alienação mercantil do valor do trabalho para pessoa diferente da que o produziu tornou-se o fundamento da relação de trabalho lato sensu [4].

Enquanto no trabalho por conta própria o trabalhador é detentor dos resultados de seu trabalho e só o que está à venda é o produto dessa atividade  e não a atividade propriamente dita , no trabalho por conta alheia a pessoa desempenha suas atividades sobre instrumentos e utilidades que não lhe pertencem e cujos resultados também lhe serão alienados. No primeiro caso, a relação jurídica é posterior ao trabalho e o objeto de negociação é o poder sobre a coisa produzida. Já no segundo, o objeto negociado é o próprio trabalho.

Além do trabalho por conta alheia, outro critério essencial para configurar uma relação de trabalho é a pessoalidade, atributo que vincula a própria pessoa do trabalhador ao trabalho que exerce, como um reflexo de sua identidade. Se cada indivíduo é único e o trabalho é uma forma de objetivação de sua subjetividade, então o trabalho de um será sempre diferente do trabalho do outro. Dessa forma, se um contrato de trabalho garante a possibilidade de alterar a pessoa que o executa, então não há o dever de conservar a subjetividade do contratado. Por conseguinte, o objeto explorado não será o trabalho em si, mas seu produto.

Embora possa haver alguma substituição ocasional  desde que não se perca a essência do trabalho , esse critério exclui da competência da Justiça do Trabalho os contratos verdadeiramente firmados entre pessoas jurídicas, ou outros revestidos de natureza cível ou mercantil [5].

Portanto, o artigo 114 da Constituição estabelece a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar as relações de trabalho por conta alheia que traduzam, em sua essência, uma relação jurídica cujo objeto é a exploração da capacidade de trabalho de uma pessoa natural, a qual desempenha suas atividades de maneira pessoal.

Ainda que toda Constituição nacional que estabelece a dignidade da pessoa humana como seu fundamento axiológico se comprometa a tratá-la como objetivo pedagógico e a vincular seus efeitos a todas as demais normas e ramos do direito, de forma tácita ou explícita [6], o direito do trabalho é o ramo especializado em estudar os efeitos do trabalho como fenômeno central das relações sociais e à imposição de limites ao avanço irresponsável do capitalismo, conciliando crescimento econômico com desenvolvimento humano.

É em razão deste objetivo maior que a ampliação da competência da Justiça do Trabalho foi  e continua sendo  fundamental para garantir a efetivação do trabalho enquanto direito social e assegurar o acesso à justiça a todos aqueles que sobrevivem por meio da alienação do próprio trabalho.

Qualquer tentativa de flexibilizar o direito do trabalho, seja por meio do enfraquecimento de seus órgãos especializados, seja por um narrativa que busca reduzir sua importância histórica na conquista do patamar civilizatório presente ou, ainda, pelos esforços generalizados para deixar os trabalhadores à mercê da própria sorte, é temerária e deve ser encarada com seriedade.

Se Nietzche estava errado em relação ao eterno retorno, então cada escolha e cada evento só acontece uma única vez ao longo de toda a história. Por acontecer apenas uma vez, tudo, com o passar do tempo, se torna irrelevante. Não é à toa que se perceba a sociedade cada vez mais relutante em encampar os compromissos históricos civilizatórios que nossos antecessores se viram obrigados a aceitar quando do surgimento urgente do direito social.

A máxima, contudo, persiste: não há progresso sem justiça social e qualquer retrocesso deve ser combatido. Verdadeiramente nova é a ideia que não envelhece, apesar do tempo.

 


[1] MAIOR, Jorge Luiz Souto. Breves considerações sobre a história do direito do trabalho no Brasil. In: CORREIA, Marcus Orione Gonçalves (org.). Curso de Direito do Trabalho, vol. 1: teoria geral do direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2007. p. 78.

[2] DUTRA, Raquel Queiroz. Formação histórica do direito do trabalho. Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo VII: direito do trabalho e processo do trabalho/ coords. Pedro Paulo Teixeira Manus, Suely Gitelman – São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2020. p. 3.

[3] SCHIAVI, Mauro. Manual de direito processual do trabalho. 12ª Edição. São Paulo: LTr, 2017. pp. 223-224.

[4] MERÇON, Paulo. Relação de emprego: o mesmo e o novo conceito. Revista do Tribunal Superior do Trabalho. Brasília: Vol. 78, nº 2, abr/jan. p. 192.

[5] SCHIAVI, Mauro. Manual de direito processual do trabalho cit. p. 224.

[6] HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 49.

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