Opinião

Constituição-candidata: "aike!", a quê?

Autor

  • Daniel A. Vila-Nova G.

    é doutor em Ciência Política (ICHF/UFF); mestre em Direito Estado e Constituição (FD/UnB); professor voluntário da FD/UnB; professor do IDP/DF; advogado. Autor da obra #Supremologia (O Supremo Tribunal Federal nas Encruzilhadas da Política & do Direito) pela Editora Amanuense.

5 de outubro de 2023, 13h20

No fundo da mata virgem, nasceu a "Carta Cidadã"… Ao redor da data em que se completam os 35 anos da Constituição vigente, o que nos diz a Carta que Ulysses Guimarães ergueu aos céus, naquela primavera brasileira de 1988? Será que há motivos para celebrar? Quais são as tarefas ainda em aberto?

Este ensaio é uma confessada homenagem a um pensamento constitucional que seja brasilianista por premissa. A Constituição existe, antes de tudo, para que possamos compreender melhor e imaginar um Brasil maior. Um país com menos injustiças, menos desigualdades e, também, menos violência. Como será isso possível?

Spacca
"O Brasil não é para principiantes"… Para propor um itinerário, vale considerar a nossa experiência constitucional presente como um exercício de memória e, também, de imaginação. Qual Janus, ao momento em que se concebe um "Ano Novo Constitucional", precisamos olhar para trás e para frente, com um sentimento de urgência e de presença.

O que existia antes da Carta Cidadã? Desde o início dos anos 1980, o povo brasileiro pleiteava "Diretas Já!", mas a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 5, de 1983, a "Emenda Dante Oliveira", sucumbiu. Ou seja, a "democracia" (se existente, no Brasil) não era caracterizada por voto direto. O regime, nominalmente "republicano", era baseado numa premissa  que perdurou por mais de duas décadas entre Nós  militares, não-eleitos, deveriam ostentar as posições de liderança no Estado Brasileiro.

O nome disso nunca foi movimento. É ditadura, mesmo.

O texto constitucional de 1988 foi promulgado por uma Assembleia Constituída que se tornara “Congresso Constituinte”. As pressões populares, os movimentos sociais organizados e em fase de organização, lobbies, pressões corporativas (do mercado e do Estado) e muitas idas-e-vindas produziram o documento cujo nome oficial é "Constituição da República Federativa do Brasil de 1988".

O nome pomposo e com uma feição burocrática na aparência trazia, em si, algumas novidades alvissareiras. Direitos fundamentais destacados na parte inicial da CRFB/1988, dentre os quais, é sempre válido meditar sobre o tal do "salário-mínimo". O texto do Inciso IV do Artigo 7º nos diz:

"(…) capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;".

Com a declaração de direitos com tamanha ênfase e intensidade, pelo texto, vale perguntar: como pode algo que promete o "mínimo" oferecer tanto? Atender as necessidades vitais básicas de uma pessoa  e de toda sua família  com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social? Ser brasileira ou brasileiro, no mínimo, parece algo interessante… Ao menos no papel.

Essa natureza contraditória também se reflete nas instituições que a Constituição de 1988 desenhou. Do ponto de vista da conjuntura política, o presidente que foi "eleito" não tomou posse. No Legislativo, por outro lado, o próprio Congresso encarregado de elaborar o texto a ser promulgado contava com "senadores biônicos" (jamais eleitos). No Supremo, a guarda da constituição seria efetivada, inicialmente, por 11 ministros  todos homens e brancos  indicados pela ditadura.

Por fim, para que fiquemos apenas com um dos aspectos federativos, um modelo que sobrecarrega, por exemplo, os entes menos estruturados com as maiores responsabilidades. A atenção básica na Saúde, assim como toda a educação infantil e fundamental foram atribuídas aos cerca de 4.500 municípios brasileiros então existentes (hoje, são 5.570!).

Neste intenso agora, o que podemos dizer sobre esse texto?

De lá para cá, nestas três décadas e meia, 131 emendas constitucionais de reforma, 6 emendas constitucionais de revisão, além dos três tratados que foram incorporados com "status" de texto constitucional. No total, 140 mudanças na redação originária da atual Constituição brasileira. Só neste mês de outubro de 2023, que mal acaba de começar, já foram mais duas novas emendas (um recorde para o mês de outubro nestes 35 anos). Em média, chegamos à impressionante média de quatro alterações por ano.

Há um fetiche em emendar o nosso Soneto Constitucional: um texto diferente a cada trimestre.

Seria esse documento algo a ser observado como uma referência canônica? A pedra-de-toque da organização jurídico-política e político-jurídica de nosso povo? Ou um conjunto de palavras, que assim como balancetes empresariais, precisam ser atualizados a cada estação?

É importante "(des-)sacralizar" esse Mito Fundador para "ressacralizar" a ideia de que só há sentido se falar em texto constitucional quando as suas disposições se fazem presentes como horizonte normativo e institucional das nossas liberdades. A partir dos 35 anos de idade, segundo o atual texto da CRFB, as cidadãs e os cidadãos brasileiros têm plena capacidade eleitoral (passiva e ativa). Isto é, podem ser votados para qualquer cargo eletivo e, naturalmente, votar. É a idade mínima para quem almeja ser presidente da República; senador(a); e, ainda, integrante do STF, na condição de ministra – ou de ministro.

Com mais de 35, a Carta-Cidadã se torna Constituição-Candidata.

Sim. Mas esse documento se Candidata a quê? Qual o seu programa?

Em seu discurso de posse, na condição de presidente do Supremo Tribunal Federal, ocorrido no último 28 de setembro, o ministro Luís Roberto Barroso elencou alguns consensos em torno dos quais nosso Constitucionalismo Democrático Brasileiro poderia ser edificado: "1) combate à pobreza; 2) desenvolvimento econômico e social sustentável; 3) prioridade máxima para a educação básica; 4) valorização da livre-iniciativa, assim como do trabalho formal; 5) investimento em ciência e tecnologia; 6) saneamento básico; 7) habitação popular; 8) liderança global em matéria ambiental".

Sem falsas ilusões, para cada um desses "consensos", há amplo campo estratégico de árduas disputas e lutas interpretativas em torno da Constituição. Nos últimos cinco anos, vimos o Brasil voltar ao chamado Mapa da Miséria  um problema que, ao final da primeira década deste século, parecia ser assunto do passado. As premissas do desenvolvimento econômico e social sustentável não pode ser um mero "selo" ou verniz verde.

A economia sustentável envolve lidar com elevadas taxas de desmatamento, com genocídio de povos originários e populações tradicionais e mudanças climáticas. No âmbito da educação básica, o ensino fundamental ainda é um calvário. A cada três pessoas que ingressam no ensino médio, 1 fica para trás.

O trabalho, no Brasil, principalmente a partir da flexibilização das leis trabalhistas, se tornou ainda mais precarizado, seja pelos fenômenos da ampliação da terceirização, do advento das novas modalidades de ocupação geradas pelas tecnologias emergentes (a "uberização", ou plataformização do trabalho), com destaque ainda para a permanência das mais que seculares tradições do trabalho escravo e da economia informal.

Em matéria de ciência e de conhecimento, para um país em que dois terços do Produto Interno Bruto (PIB) ainda repousam sobre a agricultura e a mineração (ambas atividades extremamente impactantes sobre o meio ambiente), a economia do conhecimento demanda rearranjos tecnológicos, produtivos, distributivos e educacionais que ainda estão longe de se fazerem uma realidade.

Como falar em saneamento básico, num país em que 100 milhões de brasileiras e de brasileiros não têm acesso a uma rede de esgoto; sendo que 35 milhões, sequer tem disponibilidade de água potável? O sonho da "casa própria" só é real para cerca de 15% da população nacional. E, mais, desde 1988, o déficit habitacional somente ampliou no país.

Diante das dificuldades para gerir e tentar conciliar as questões de desenvolvimento e de preservação ambiental no âmbito interno, a ambição de liderar globalmente o debate das mudanças climáticas se converte em um dilema não apenas nacional, mas, também, humanitário. Nas últimas semanas, apenas para ilustrar, chuvas torrenciais inundam a cidade de Nova Iorque, ao mesmo tempo em que centenas de botos cor-de-rosa aparecem mortos no rio Tefé, na Amazônia brasileira.

Embora não tenha sido expressamente pontuada pelo ministro Barroso, a questão da segurança (não apenas a segurança jurídica) é cada vez mais preocupante. O quadro geral de insegurança é cada vez mais disseminado. A violência policial implementa "pena de morte", sem guerra, oficialmente, declarada. Ações milicianas indicam a existência de uma espécie de aparato paralelo de (in)segurança e de extermínio: um "miliciato". 

No sistema penitenciário, a população carcerária cresceu mais de sete vezes nestes últimos 35 anos! Se seguirmos nesse ritmo, nos próximos 35, nos tornaremos o país que mais encarcera, em termos absolutos (hoje, a terceira maior população carcerária é brasileira) e relativos (ocupamos a lamentável segunda e incômoda posição). Na véspera do "aniversário", o STF declarou, na ADPF 347, um Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) representativo, segundo a maioria do Plenário da Corte, de um quadro "violação passiva de direitos" nas prisões e penitenciárias brasileiras.

Nessa conjuntura de inconstitucionalidade difundida, é possível "dourar a pílula" em verde-e-louro e dizer que tudo anda as mil maravilhas?

Ao encarar esses problemas, a primeira reação pode ser a de desânimo. Como diria Macunaíma após longo período de silêncio, "Ai! Que preguiça…". Após 35 anos de vivência dos impasses da "Carta Cidadã", o pensamento constitucional brasileiro precisa superar a inércia e a omissão.

É chegado o momento de enfrentar, de vez, os problemas nacionais como um projeto de construção de um país em que o "básico" seja a "regra"  e não o permanente e ampliado estado de exceção constitucional a que estamos, em nossa maioria, submetidos. Por menos "manuais" pré-formatados, simplificantes, esquematizantes e por mais ferramentas normativas e engenhos institucionais que nos permitam oferecer sustento, oportunidades, educação, emprego, tecnologia, saneamento, moradia e bem-estar ambiental.

A Constituição-Candidata, aos 35 anos, não pode ser apenas mais uma das 81 vozes do Senado. A Candidata — que nos constitui  precisa presidir o Congresso Nacional. Aos 35, ela precisa ser a voz, em coro, da maioria do Supremo  e não, apenas, os solos das ministras e dos ministros. Uma Constituição que presida os rumos do Brasil para materializar nossas liberdades, nossos direitos e nossos sonhos.

Por uma Constituição… Cidadã? Sim, mais candidata a quê? Eis a questão!

Autores

  • é advogado e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense, com Tese de Doutorado intitulada "Supremologia: o STF nas encruzilhadas do Direito & da Política no Brasil" e mestre em Direito, Estado & Constituição pela Universidade de Brasília.

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