Opinião

Equívoco da imprescritibilidade dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro

Autor

  • Thuan Gritz

    é sócio do Sade & Gritz Advogados especialista em Direito Criminal pela Associação Brasileira de Direito Constitucional (ABDCONST) pós-graduado em Direito Tributário pela ABDCONST) e pós-graduando em Direito Eleitoral pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

15 de outubro de 2023, 7h10

A Comissão de Segurança Pública (CSP) do Senado aprovou recentemente um projeto de lei que visa tornar imprescritíveis os crimes de corrupção ativa e passiva, bem como lavagem de dinheiro (PL 5.236/2020). Esse projeto levanta questões jurídicas e políticas cruciais que merecem análise detalhada.

Antes de discutir o mérito da imprescritibilidade, é fundamental entender o que são os crimes de corrupção ativa e passiva e como eles são definidos legalmente.

Ambos os crimes são trabalhados no Código Penal e estão definidos no rol de crimes contra a administração pública. O primeiro, no âmbito do artigo 317, prevê que o sujeito ativo do delito é o funcionário público, haja vista que a lei exige uma qualidade ou condição especial do sujeito que pratica o crime.

A previsão normativa descreve que se amolda ao tipo penal quem solicita ou recebe, para si ou terceiro, vantagem indevida (não amparada pelo ordenamento jurídico). Neste viés, solicita ou aceita promessa indevida que  necessariamente  possua nexo com a função do funcionário corrompido.

Ou seja, a solicitação ou recebimento se dá valendo-se desta função, não bastando que seja pela mera condição de funcionário público. O recebimento da vantagem indevida pode se dar diretamente pelo agente ou através de terceiros (indiretamente).

No caso da prática na modalidade solicitar basta que haja a solicitação para que o delito se consuma (crime formal), ao passo que quanto ao verbo receber exige o efetivo recebimento da vantagem ilícita (crime na modalidade material).

Há também previsão de que o crime se perfaça com a aceitação de promessa da vantagem indevida, o que também consuma o crime com a mera aceitação comprovada, tal qual a primeira hipótese.

De outro lado, a corrupção ativa está prevista no artigo 333, do CP, delito que pode ser praticado por qualquer pessoa, mas em regra é praticado pelo particular que busca algum benefício corrompendo o funcionário público. É o delito do corruptor.

Nesta perspectiva, há destaque para dois verbos que, se presentes, podem amoldar a conduta do agente corruptor ao delito, quais sejam oferecer ou prometer a vantagem indevida. Ambos delineiam um crime formal, já que não demandam qualquer tipo de resultado. Basta a prática de um dos verbos do tipo penal.

A finalidade é que o oferecimento ou promessa de vantagem futura se dê objetivando que o funcionário público pratique, deixe de praticar ou retarde algum ato inerente ao seu ofício.

A aprovação do Projeto de Lei 5.236/2020 suscita sérias preocupações. Em primeiro lugar, é importante destacar que esta iniciativa ainda não é lei e deve passar por várias etapas do processo legislativo.

A ideia por trás desse projeto parece refletir mais um populismo punitivista do que uma solução eficaz para combater a corrupção e a lavagem de dinheiro.  No caso, a linha seguida pelo projeto é absolutamente retrógrada e não sugere benefícios jurídicos em uma ideia constitucional de Direito e Processo Penal.

O discurso ao entorno de uma proposta como essa é que, caso passe e se torne lei, crimes "graves" não deixarão de ser "punidos" e agentes serão responsabilizados, independentemente de uma demora na investigação ou no processamento perante o Judiciário.

Acontece que, na realidade, este tipo de proposta endossa o descaso estatal com a duração razoável do processo e a própria eficiência do Estado, previstas constitucionalmente. É a assinatura, pelo legislativo, de que o Estado não busca melhorar, mas terceirizar ao particular, outra vez, sua completa ineficácia e incompetência na persecução de um determinado crime.

Assim, é mais fácil e barato fingir que os problemas serão resolvidos retirando os prazos máximos previstos em lei para que uma pessoa seja punida, permitindo, com a imprescritibilidade, que um cidadão possa passar uma vida toda sendo processado sem que o Estado lhe confira um veredito  de inocente ou culpado  a respeito de sua situação. É algo antiquado e que vai de encontro aos avanços que a Constituição da República tentou trazer e sedimentar.

Por vezes, reputa-se aos próprios investigados/acusados e aos advogados de defesa, uma suposta demora processual em decorrência de suas respectivas estratégias, com pedido de provas e recursos, por exemplo.

A questão é que isso é inerente ao devido processo legal e à ampla defesa que sempre é exercida com manifestações em prazos curtos e rígidos, muito menores do que a constante demora de meses (às vezes anos) em movimentações cartorárias, cumprimento de ofícios e diligências, ou decisões judiciais.

É o Estado que não contempla estrutura suficiente para julgar as centenas de milhares de processos que estão sob a sua tutela e isso não será resolvido com a permissão conferida por este mesmo Estado  a ele mesmo  em atestar a sua ineficiência para investigar, processar e julgar determinado cidadão. Isso acontece em todo tipo de crime, mas quer-se, agora, lançar mão da imprescritibilidade em crimes "midiáticos" para o cenário político atual (corrupção e lavagem).

É o atestado de incapacidade em melhorar o sistema penal e processual penal, com o uso de um artifício precário e absolutamente contrário às ideias mais atuais a respeito do assunto. 

Note que se busca a ideia de selecionar crimes que desde a operação "lava jato" vem à tona como sendo os "responsáveis" pelas mazelas sociais no país (especialmente delitos de corrupção) que, não raro, culminam com acusações também de lavagem de dinheiro.

Essa já era uma ideia, ainda que de forma diversa e indireta, precariamente trazida nas famosas "Dez Medidas Contra a Corrupção"  oportunidade em que o Ministério Público Federal chegou a afirmar que a prescrição se dava a partir de "manobras das defesas", deixando à margem o problema da estrutura de seus próprios agentes e do Estado. Ou seja, um acusado não está se defendendo por meio das ferramentas que a lei traz, mas fazendo "manobras".

Na oportunidade, ainda que não promovesse a imprescritibilidade de forma direta, durante a proposta os responsáveis fomentaram a realização de aumentos consideráveis das penas de delitos contra a administração pública e a alteração na forma de cálculo da prescrição, para evitar a ocorrência de prescrições e para que isso fosse apoiado pela população, especialmente por aqueles que não possuem conhecimento técnico suficiente a respeito dos verdadeiros responsáveis pela demora do Estado em processar e julgar.

Lembra-se que aumentos de penas alteram o cálculo previsto na "tabela" do Código Penal (artigo 109), que já prevê prazos prescricionais abstratamente  altíssimos  para alguns crimes (como vinte anos para delitos de penas maiores).

Aliás, vale dizer que com o estabelecimento do processo eletrônico em praticamente todos os locais do país, atualmente é muito difícil que casos mais recentes  que estejam relacionados a crimes da natureza da corrupção e da lavagem de dinheiro  tenham a incidência da prescrição, já que o processamento é muito mais rápido do que um dia já foi.

As alterações legislativas, por sinal, na teoria, incidiriam em fatos novos, ou seja, fatos penais que acontecessem depois da mudança legislativa, por se tratar de norma de natureza criminal material e que, portanto, repercute de forma pior ao réu e não pode, portanto, retroagir.

Não faz sentido, atualmente, tornar imprescritíveis crimes desta natureza, mas sim o já  muito debatido  investimento em procedimentos de investigação e processos mais eficientes tanto para o réu, quanto para o próprio Estado  prejudicado nestes crimes.

A lavagem de dinheiro, por exemplo, é um crime complexo que envolve uma série de técnicas e estratégias para ocultar a origem ilícita dos ativos. Não existe uma abordagem única para combatê-lo, e simplesmente torná-lo imprescritível não resolve os desafios associados a ele.

É necessário investir em investigações eficazes, cooperação internacional e regulamentação financeira mais rigorosa para combater efetivamente a lavagem de dinheiro e não fingir que nada acontece e definir sua imprescritibilidade pela falta de perspectiva de melhora por parte dos órgãos estatais.

Vale lembrar que as penas abstratamente previstas para os envolvidos em casos de corrupção ativa e passiva e lavagem de dinheiro são altas. Para os crimes de corrupção as penas previstas em sua modalidade comum são de dois a 12 anos. No caso da lavagem de dinheiro, a pena pode chegar a dez anos, sem contar outros delitos que, não raro, são colocados ao lado nas operações e denúncias desta natureza.

É possível que haja o bloqueio de bens e valores provenientes do ilícito e a perda em caso de condenação, bem como, seja pelo Código Penal, seja pela Lei de Lavagem de Dinheiro, que o agente perca ou tenha a interdição de cargo ou função pública, como efeito da condenação.

Muito se critica que pessoas primárias e sem um problema prévio com a justiça criminal, em caso de condenação, terão aplicadas penas baixas e que o caso possa repercutir em acordos com o ministério público ou mesmo regimes prisionais mais brandos e que viabilizem a substituição da pena privativa de liberdade por outras menos gravosas.

Neste cenário, é imperativo relacionar que o único motivo da alteração legislativa é que seu conteúdo não visa combater os crimes que se tornariam "imprescritíveis" ou mesmo combater a prescrição em si, mas jogar para o público a ideia de que é a prescrição o problema da corrupção e da lavagem de dinheiro, no país. Que os casos não possuem responsabilizações porque "prescrevem" e isso não procede em grande parte das situações.

O problema é muito maior do que esse e demanda o reconhecimento  totalmente oposto  pelo Estado, de que é falho em sua estrutura jurídico criminal e em seu sistema penal-processual penal, de modo a, primeiro reconhecer que o problema é causado pela sua própria ineficiência e, depois, perceber que não são os acusados por estes crimes e seus advogados que causam a "demora" na investigação ou nos processos, especialmente nos tempos de hoje em que convivemos com processos eletrônicos e muito mais céleres do que outrora.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!