Processo Familiar

Patrimônio comum do casal desfeito e bens sonegados, uma resiliência épica

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

15 de outubro de 2023, 9h21

Enquanto o casal tem a sua união desfeita (ou em processo contínuo de deterioração relacional), um dos consortes pode adredemente desfazer ou omitir os bens, dificultando a partilha do patrimônio comum, postergada diante de o divórcio ser decretado sem a prévia partilha deles. A questão dos bens sonegados está, agora, a se tornar um exemplo ácido de violência patrimonial, já visualizado pela Lei Maria da Penha. A subtração dos direitos de meação de uma das partes deve ser apurada e combatida, com os rigores legais.

Permitido pelo artigo 1.551 do Código Civil que "o divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha de bens", esclareça-se, de pronto, que a existência de bens partilháveis, enquanto não partilhados, há de exigir uma adequada administração dos bens comuns. Antes afeitos ao estado da mancomunhão, em propriedade de "mão comum" do casal, tornam-se eles, com a separação, submetidos a um condomínio, "regulado pelas regras que lhe são próprias, desfazendo-se desde a partilha a mancomunhão que decorria do direito de família" (EREsp 130.605/DF, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 23/4/2001). Em ser assim, nesse iter, tudo pondera por um gerenciamento seguro e satisfatório da "compropriedade", seja também como comunhão jurídica ordinária.

Sucede que a partilha como ato superveniente, embora podendo ser requerida a qualquer tempo, deve alcançar a sua imediatidade, a prevenir litígios futuros (artigo 648, II, CPC), cumprindo a tanto, observar a regra da máxima igualdade possível quanto ao valor, à natureza e à qualidade dos bens (artigo 648, I, CPC). Recomenda Rafael Calmon que, por isso, "os ex-consortes deveriam passar a titularizar cotas sobre cada um bem componente do acervo comum, à razão de 50%", podendo, assim, qualquer deles alienar tais cotas, observando as regras de extinção do condomínio tradicional (artigo 504, CC). (1) Demais disso, anota-se, que no mesmo iter, a posse e a fruição exclusiva por um só dos ex-consortes renderão ensejo a uma indenização pelo uso privativo do bem comum (STJ — REsp. 178.130-RS, 2002).

De conseguinte, vindo a ação de partilha de bens ser promovida unilateralmente pelo(a) divorciado(a), resta verificar pela exatidão dos bens descritos no rol, com suas especificidades, impondo-se fidelidade de descrição ao patrimônio comungado, ou seja, a petição de partilha deve contemplar todos os bens integrantes do patrimônio. Na sequência, a manifestação da outra parte colima a partilha, com a divisão material deles ou sua permanência em condomínio.

Quando, entretanto, tenham sido sonegados demais bens que componham o monte partilhável, a resposta haverá de, precisamente, indicar aqueles subtraídos, exigindo dilações cabíveis para a apuração devida da controvérsia, inclusive oportunizando provas periciais financeiras, expedição de ofícios às repartições competentes (v.g. Banco Central e Receita Federal), prova documental suplementar e outras providências, tais como a quebra de sigilo fiscal e bancários de pessoas jurídicas eventualmente relacionadas, acaso necessárias. Induvidosamente uma prova pericial sempre se faz necessária para comprovar a produção dos cálculos de subtração dos direitos de meação da parte contrária.

No ponto, questões de direito processual e de direito material devem ser alinhadas para a solução da controvérsia diante da omissão de bens, que desafiam medidas prontas para um devido processo eficiente e efetivo.

De saída, não há cogitar, de imediato, por uma ação de sobrepartilha (a teor do artigo 2.022, CC) ou ação de sonegados. Entendimento dominante é o de os bens sonegados serem apurados no mesmo processo da ação de partilha, em garantia constitucional da razoável duração do processo (artigo 5º, LXXVIII, CF) e em reprimenda à pretensão de enriquecimento indevido de um deles.

Não há como o magistrado desconsiderar a possibilidade de impugnação do rol dos bens nos próprios autos da ação aforada e dar curso regular ao processo, otimizando a jurisdição para aferir a existência ou não da imputada sonegação de outros bens partilháveis.

Defeso ao juiz proferir sentença terminativa, sem resolução do mérito, sob a premissa de (i) a arguida sonegação dos bens tornar exigível a reconvenção, "como uma modalidade de ação postulada em face do autor", afinal não apresentada pela parte demandada e (ii) eventual perda superveniente do direito de agir em face de uma partilha fática entre os bens inicialmente arrolados.

Resulta malferido o princípio da primazia do mérito quando as partes possuem pedido e causa de pedir suscetíveis de enfrentamento pelo juízo, em acertamento do real acervo patrimonial partilhável. Ou seja, decisão de tal espécie viola expressa disposição constitucional, a do inciso XXXV do artigo 5º da Constituição ao negar à parte contestante o devido acesso à jurisdição, em afastando o seu direito de, em impugnando a relação então insuficiente (incompleta) dos bens indicados pelo autor à partilha, fazer, prontamente, incluir outros bens partilháveis que individualmente venha especificar.

Assim, a inclusão no processo de partilha judicial, pela parte demandada, de outros bens ou de dívidas a partilhar, independe do ajuizamento de reconvenção. De efeito, incontroversas se apresentam, segundo o Superior Tribunal de Justiça, "a possibilidade de indicação de bens pelo demandado" e a "desnecessidade de reconvenção para que seja apreciado o pedido de partilha desses bens não relacionados na petição inicial." (STJ — 3ª Turma, AgInt no REsp n. 1.979.284/MG, relator ministro Moura Ribeiro, julgado em 15/8/2022, DJe de 17/8/2022.)

Mais recentemente, a Corte infraconstitucional pontificou:

"De fato, a jurisprudência deste STJ considera desnecessário o ajuizamento de reconvenção, pela parte demandada, para pedir a inclusão de bens/dívidas na partilha requerida pelo autor." (STJ – Agravo em REsp. n. 1.839.722-MA (2021/0044602-9, Rel. Min. Marco Buzzi, decisão de 28.06.2023; DJe/STJ nº 3666 de 30/06/2023).

De mais a mais, o requerimento mesmo que deduzido somente em contestação torna-se identificável como pretensão autônoma que, afinal, permite ao autor o pleno exercício do contraditório (REsp 1.624.051/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe 9/5/2019).

No que interessa, objetivamente:

(i) ciente o ex-consorte, de bens outros não relacionados na partilha proposta, caso é o de sua impugnação ofertada de imediato na resposta conduzir ao desate meritório, com a devida instrução processual. Precisamente: a não exigibilidade da reconvenção induvidosamente não remete a questão a uma necessária sobrepartilha, pena de denegação da jurisdição, antes exigindo o enfrentamento seguro e imediato do tema.

(ii) insciente o ex-consorte à época da partilha proposta, ficam os bens sonegados sujeitos à sobrepartilha de bens, com os ditames do artigo 2.022 do Código Civil.

Questão fundamental outra diz respeito à pena de sonegados no referido processo de partilha, cuja consequência consistirá na perda do direito de meação cabível sobre aqueles bens não declarados, em suporte análogo ao artigo 1..992 do Código Civil.

A não transparência patrimonial dos bens suscetíveis à partilha, com a sonegação de alguns bens e direitos, deve ser reprimida com o resultado lógico de aplicação da pena de sonegação, tal como defende Rolf Madaleno, expressando: "a aplicação da pena de sonegação é perfeitamente justificável no divórcio, como forma de reprimir a ocultação de patrimônio e assegurar a divisão justa dos bens" (3)

Nesse sentido, a jurisprudência confere a doutrina:

"AÇÃO DE DIVÓRCIO – PENA DE SONEGADOS – Em primeiro lugar, deixo registrado que é perfeitamente possível a aplicação da pena de sonegados ao divórcio, em analogia ao que dispõe o artigo 1.992 do Código Civil. Com efeito, não se pode premiar a conduta de sonegação de bens e valores, pela qual um dos cônjuges busca vantagem própria em prejuízo do outro. (…)" (TJ-SP – 2ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Fernando Marcondes, Apel. Cível nº 1008152-50.2020.8.26.0606, j. em 27.08.2022).

Noutro giro, a sobrepartilha dos bens sonegados, acaso necessária, impende uma prévia aferição do dolo, no efeito da aplicação da referida pena de sonegados. A esse propósito, o TJ-SP definiu:

"SOBREPARTILHA DE BENS — Pretensão de dividir os bens que não teriam sido objeto de partilha no divórcio — Nos termos do art. 669 do CC, ficam sujeitos à sobrepartilha os bens sonegados; os que se descobrirem tardiamente; os litigiosos; e os situados em lugar remoto – Na hipótese, o autor tinha, à época do divórcio, conhecimento da existência da construção cuja partilha ora se requer- Sobrepartilha de bens sonegados, ademais, que deve ser precedida da aferição de dolo Requisitos não observados — Sentença reformada (…)" (TJ-SP, 5ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Moreira Viegas, Apel. Cível nº 1008427-61.2019.8.26.0047, j. em 22.09.2021).

Induvidoso que a partilha de bens após o divórcio difere daquela tratada pelo direito sucessório, onde a questão de sonegação de bens deve ser resolvida, realmente, em ação própria, e não nos autos do inventário, por ser inadequada a via, aquela reclama, de fato, um processo exauriente e completo.

A casuística tem demonstrado as exigências de uma rigorosa apuração da sonegação, quando a omissão da existência de créditos, contas bancárias, bens e veículos, reflete a prática de uma incontestável má-fé contra o ex-consorte. Mais das vezes, praticada ainda no curso (ir)regular da vida em comum, anotam-se as hipóteses do desvio de bens para terceiros ou para sociedades constituídas com esse fim, o que vem de tipificar, outrossim, o crime de estelionato (artigo 171, CP).

Importa, outrossim, considerar que a separação de fato produz efeitos jurídicos imediatos e, em bom rigor, a extinção do regime de bens do casal casado (ou sob união estável), constituindo marco temporal de uma nova realidade jurídica em face dos ex-parceiros. A tanto, a pessoa separada pode constituir união estável com outrem, conforme exposto pelo artigo 1.723 § 1º do Código Civil. (4)

Dito isso, os efeitos projetados pela separação de fato sobre o bem patrimônio comum ganham relevância jurídica, orientando que a partilha seja feita.

A propósito, o instituto do arrolamento cautelar de bens, quando há comunhão, universal ou parcial dos bens integrantes do acervo patrimonial do casal, a ensejar uma posterior partilha, tem se revelado cabível e oportuno, como medida conservativa de direitos diante dos processos de separação judicial, de divórcio direto ou de dissolução de união estável.

Arrolam-se os bens para sua conservação, sempre que haja fundado receio de extravio ou de dissipação dos bens, caso em que presente um sério risco aos direitos do arrolante (artigos 855/860, do CPC/1973). Tudo objetivando salvaguardar o direito de meação do cônjuge ou do companheiro, procedendo-se ao depois a divisão equânime dos bens. Trata-se, portanto, de medida, estritamente conservativa, prevenindo o risco de dano e inibindo a sonegação de bens por aquele que inicie a partilha.

Também relevante se apresenta questão pertinente à imprescritibilidade do direito de partilhar os bens comuns, independente do tempo da separação de fato ou do próprio divórcio, matéria bastante controvertida.

Há quem sustente pelo prazo de dez anos, a teor do art. 205 do Código Civil, uma vez inexistente prazo legal específico quanto à prescrição da pretensão de partilha de bens, vinculando-se, portanto, ao prazo geral decenal.

A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça considerou prescrito um pedido de partilha de bens entre ex-cônjuges que se separaram de fato há mais de 30 anos, sem que tivesse havido o divórcio (5). Segundo Fernanda Tartuce, presidente da Comissão de Processo Civil do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), "a decisão causa espécie sob o prisma do acesso à Justiça e negar a possibilidade de divisão patrimonial com base em prescrição soa no mínimo estranho" (6).

Como a consagrada jurista, entendo, igualmente, pela imprescritibilidade do direito de partilhamento por se constituir um direito potestativo em ser desfeito o condomínio (v.g. artigo 1.320, CC).

A esse respeito, reflete Rafael Calmon que "a linha de pensamento que sustenta a prescritibilidade do direito à partilha talvez precise ser revista para que categorias jurídicas distintas não sejam confundidas entre si, tampouco projetem efeitos indevidos sobre as relações jurídicas mantidas por milhões de brasileiros". (7)

De fato. Argui o renomado doutrinador que a inexistência de prazo máximo, não previsto pelo legislador para o exercício do direito de partilhar bens (em decorrência da separação, do divórcio, da dissolução da união estável), "leva à inexorável conclusão de que a ação de partilha é uma ação perpetua, tal qual aquelas inerentes ao estado das pessoas, em geral, como a separação, ao divórcio e a parentalidade".

É preciso ter em conta que a presente questão de direito no contexto societário da vida em comum por ato de sua dissolução reflete de forma mais incisiva, o legitimo interesse jurídico, a todo tempo, pela partilha dos bens, integralmente de todos os existentes. Dano patrimonial impregnado da quebra dolosa do respeito ao outro cônjuge tem lugar quando incide a sonegação dos bens em manifesta violência patrimonial. O prejuízo dos direitos daquele consorte, torna possível compreender a necessidade de um avanço legislativo a inibir/punir, expressamente, a prática da sonegação.

Afinal, uma partilha justa e equitativa deve ser guerreada por quem sofra a ilicitude do ato de sonegação de bens. Que sempre haja uma resiliência épica, em superação do tanto quanto tenha sido alguém já vitimizado nas relações tóxicas de uma união fracassada.  A sonegação de bens é o ápice das graves ocorrências que antes demandaram o fracasso.

 

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Referências:
(1) CALMON, Rafael. “Manual de Partilha de bens(…)”. São Paulo: Saraivajur, 4ª ed., 2023.
(3) MADALENO, Rolf. MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família, 2019, p. 837.
(4) Art. 1.723 § 1º, do Código Civil: A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521, não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
(5) “Embora não haja previsão legal específica, a separação de fato ocorrida há mais de um ano também é causa de dissolução da sociedade conjugal e, por isso, permite a fluência do prazo prescricional para o pedido de partilha de bens dos ex-cônjuges” (STJ – Min. Moura Ribeiro). Web: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Separacao-de-fato-tambem-permite-curso-da-prescricao-para-pedido-de-partilha-de-bens.aspx
(6) IBDFAM. Aqui.
(7) Obra citada, p. 243-244

Autores

  • é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco, mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa, membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont), advogado, consultor jurídico e parecerista.

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